Todo preconceito se
baseia na premissa de que há algo pré-estabelecido em nosso olhar sobre o outro
e, desta análise errônea que fazemos, não há espaço para desconstrução. Por
esta razão, nos tolhemos de conviver com certas pessoas, experimentar
determinadas vivências e conhecer outras realidades, por causa dessa patética
mania que temos de superestimar nossos conceitos a partir de nossos olhares
distorcidos sobre a vida alheia. Por causa dessa nossa insensata postura,
subestimamos tudo e todos a nossa volta que fuja da normalidade captada por
nossas lentes desfocadas. Antes mesmo de sentenciar os “diferentes” a total
exclusão de nossas vidas, duvidamos de suas capacidades, questionamos sua
relevância e/ou desvalorizamos suas qualidades, mesmo que estas sejam
inquestionáveis, porque já fomos hipnotizados pela sociedade a ver sem enxergar.
Mais que discriminar, subestimar com base no que se vê de relance, nesse
sentido, é a forma mais genuína pré-conceitual de delimitar o muito de alguém
em pouco.
Tenho minhas reservas
com a expressão: “a primeira impressão é
a que fica.” Nem sempre ela dá conta de nos apresentar ao mundo como de
fato somos. Como toda apresentação, na ânsia de nos mostrar o melhor que
pudemos, há de nossa parte excessos, economia, exageros, cautelas, erros,
acertos, sem brechas para ensaios. E desse improviso de querer agradar ao
outro, deixamos escapar nossa naturalidade para assumir um perfil “Fake” de nós
mesmos. Então, numa piscadela, quem está do outro lado já presume quem somos,
ao ponto de nos incluir ou excluir definitivamente de suas vidas. É uma atitude
digna de, no mínimo, reflexão. Todavia, em sua essência, aquele dito popular
carrega em si a presunção usada por muitos para subestimar as pessoas a nossa
volta. Seja pela aparência, entonação da voz, gesticulação corporal, há sempre
algo usado para caracterizar o todo do outro, como se uma parte do que somos
fosse capaz de nos definir por completo.
Assim, sem ao menos nos
conhecer, temos a nossa personalidade questionável por pessoas ocupadas em nos
sentenciar meramente por aquilo que veem ao nosso respeito. Pior ainda é quando
essa análise visual interfere naquilo que de melhor temos a oferecer.
Recentemente, passei por isso, quando uma vizinha, que sabe da minha rotina
como professor, questionou a autenticidade dos textos que costumo escrever na
rede/blog. Seu tom de voz e expressão ocular revelavam total descrença de que
os artigos lidos por ela poderiam ter sido feitos por mim. Recebi aquela ofensa
da melhor maneira que pude e retruquei perguntando por que não seria de minha
autoria aquelas palavras. Ela, com a velocidade costumeira de nossos
preconceitos, disparou que não imaginava alguém como eu ser capaz de produzir
aqueles “textões”. A minha vontade era de lhe esbofetear com palavras, porém
minha sanidade sabia que não valeria a pena me expor daquela maneira. Então,
guardei na mente a frase dita por ela “alguém
como eu” para uma acurada reflexão.
Revisitei vivências
preconceituosas das quais já havia me esquecido. Ao subestimar as minhas
produções textuais, a minha vizinha não se referia ao texto propriamente dito,
mas, sobretudo, àquele que o produziu. Ou seja, um rapaz pobre, negro, morador
da periferia, gay, professor, nordestino, e tantos outros estigmas captados
pelo olhar daquela mulher. Por mais que me conhecesse há anos, ela não me via
como alguém capaz de tal feito. Para ela, assim como boa parte da sociedade, é
mais fácil subestimar os grupos minoritários do que dar a eles a chance de se
mostrarem como são, com suas deficiências, mas também com suas surpresas e
dotes pessoais. Por isso nos chocamos ao ver um médico negro, um nordestino
governando o país, uma mulher na liderança de uma empresa, entre outros casos à
revelia do sistema superestimado em que estamos inseridos, porque aprendemos
com o preconceito a desdenhar do outro, inferiorizando sua capacidade através
daquilo que se atribuiu a eles como menor, vil e sem valor.
Quando não é o
preconceito que nos subestima, somos nós mesmos que fazemos isso, seja
inconscientemente, seja para legitimar a discriminação social evitando um
embate entre nós e eles. Dessa forma, poucas pessoas nos enxergam por completo.
Em boa medida, isso se dá porque economizamos na amostra daquilo que somos.
Geralmente, exibimos versões incompletas de nós mesmos, fatiando nosso ser em
pedaços desordenados, os quais chegam ao outro como um quebra-cabeça confuso de
se montar. Então, quando é chegado o momento de revelar nossas potencialidades,
por mais claras que sejam, não somos percebidos ou devidamente valorizados por
nossas reais qualidades. Dessa autodegradação, contribuímos para o
desmerecimento de nossos poucos valores, em uma sociedade historicamente
construída no menosprezo, vilipêndio e depreciação das conquistas dos grupos
minoritários.
Subestimar o outro por
meio do nosso limitado alcance ocular é um erro que pode ainda desembocar em um
risco, o da vergonha alheia. Quantas vezes, precipitados em achismos rasos,
definimos alguém com base naquilo que queremos ver e não no que enxergamos de
fato? Inúmeras, pelo menos comigo. É que colocamos no mesmo bojo a ação de dois
verbos, que apesar de sinônimos, possuem aplicabilidades distintas. Ver todos
nós vemos, sobretudo aqueles que fisiologicamente foram agraciados com a dádiva
desse sentido. Já enxergar vai além de ver. Requer detalhe, minúcia, atenção e,
principalmente abertura. É preciso desnublar nossa visão daquilo que nos
invisibiliza de enxergar além do que nossa biologia corporal nos permite. De fato,
esse olhar quase biônico não se adquire facilmente. Passamos por longos
momentos de cegueira coletiva até apurar nossas lentes para aquilo que sempre
esteve a nossa frente clamando por atenção, mas ignorávamos porque havia tufos
preconceituosas ocupando nossa visão.
Na verdade, elas
continuarão lá embaçando nossas vistas, se não tomarmos uma atitude enérgica
para adquirir o controle dos nossos sentidos. Quando as rédeas passarem a estar
em nossas mãos, estaremos aptos a compreender melhor essa agigantada acepção
que há por trás da palavra preconceito. A ideia aqui não é apenas enxergar o
mundo de outra forma, mas deixar com que esse mundo se revele para nós como ele
sempre foi e a partir disso refletir sobre suas incontáveis incoerências. Não
obstante, isso não garante os inevitáveis momentos de cegueira ao longo da
vida. Por estar em sociedade, nem sempre enxergamos o mundo a partir de nossos
olhos. Todavia, certos embaraços na visão serão rapidamente sanados quando
entendermos o quão nocivo é para todos subestimar os outros pela primeira
olhadela. A quem, como eu, já foi vítima desse crivo equivocado, não poupe
esforços para se mostrar para o mundo. Não podemos deixar que o outro defina
nossa grandiosidade de forma mesquinha. Precisamos ajudá-los a nos ver de
verdade. Feito isso, o cada vez mais velho preconceito terá seus dias contatos,
pois qualquer tentativa de nos subestimar se mostrará inútil.
Até porque você não me
conhece, tão pouco eu lhe conheço. Então, não me subestime. Sou mais do que
você imagina e você também.