Antes de conceituar a relação existente entre a diegese e o discurso narrativo é preciso entender o conceito de ambas separadamente. O discurso narrativo é o elemento responsável pela inteligibilidade dos diálogos entre os personagens de uma narrativa. Esse recurso acontece de diversas formas, podendo ser direto, indireto ou indireto livre. Entretanto, não é do âmbito desse trabalho fazer uma distinção de cada um desses discursos. A fragmentação primária deles servirá apenas de arcabouço para a compreensão do conteúdo literário impregando nas obras de Memórias Póstumas e a Moreninha, obras respectivas de Machado de Assis e Joaquim Manoel de Macedo.
No discurso narrativo são analisadas as sequências de eventos que vão construir o enredo da obra. Assim, Tzvetan Todorov menciona a diferença que deve ser feita entre discurso narrativo de historia. Nas palavras dele, o discurso narrativo compreende uma cadeia de acontecimentos que serão moldados pelo personagem no desenrolar de uma obra. Já na história apenas são relatados os fatos, mas sem uma preocupação maior com a narrativa propriamente dita. Ainda na história, segundo esse estudioso, é apenas um coadjuvante no palco onde o discurso narrativo impera.
O outro elemento essencial para a construção de uma obra literaria é a diegese. Esse mecanismo literário está intimamente ligado aos estudos da narratologia e das ciências que estudam os fenômenos que estão imbricados aos acontecimentos de uma obra literária. Na diegese ocorre o que se pode chamar de analise externa de uma obra, ou seja, a visão que o leitor vai ter a partir da codificação do texto lido. Em outras palavras, seria a realidade externa de quem lê a obra, determinando o espaço e tempo diegético das personagens. Muitas vezes essa liberdade de entendimento acaba dando ao leitor uma gama polissemica imensa, prejudicando a interpretabilidade de um texto.
É importante, nesse sentido, destacar a independência de cada uma dessas estruturas literárias. Tanto o dicuscurso narrativo quanto a diegese podem operar dentro de uma obra de forma paralela. Entretanto, a junção de ambas dá ao texto uma maior possibilidade de compreensão e inteligibilidade. Pode-se dizer que existe uma relação de hipônimo e hiperônimo literário, na qual o discurso seria o todo e a diegese exerce uma pequena parcela desse todo.
Na obra a Moreninha, encontra-se um discurso tipico de uma época na qual as convenções sociais imperavam, num Brasil onde a moralidade e os bons constumes esbarravam em escândalos, conflitos amorosos e diversos outros temas que eram tabus na época em que o livro foi escrito. É perceptivel que o discurso utilizado pelo autor para retratar a realidade da sociedade tinha que estar pautado no dialogismo utilizado também pela sociedade daquele tempo. Christian Metz atribui a isso o nome de discurso social. O discurso narrativo ganha um ar de social a partir do momento que retrata uma vivência de acontecimentos que interfere na estrutura de um grupo de pessoas, o que fielmente Joaquim Manoel de Macedo retratou na sua obra A Moreninha. Nos estudos diegéticos dessa obra, merece destacar o cuidado que o autor teve em transfigurar para o papel a realidade da sociedade da época. Fielmente, o autor de A Moreninha, retrata os tipos humanos que circulavam pelas casas e festas burguesas do Rio de Janeiro: o estudante conquistador, a moça namoradeira, o velhote metido a galã. Todos esses personagens fazem parte da inferência diegética que o leitor faz no momento que entra em contato com a atmosfera da obra de Joaquim Manoel de Macedo.
Memórias Póstumas de Brás Cubas também merece um imenso destaque na analise da estrutura discursiva do seu enredo. Machado de Assis inovou na produção de um discurso no qual o personagem principal da trama é um defunto que começa a narrar as suas peripércias durante a obra. Diferente de muitas outras obras, Memorias Póstumas quebra com o tradicionalismo dos textos produzidos até então pelo romantismo, dando inicio a uma era discursiva inovadora na literatura brasileira. O ponto alto dessa obra é a liberdade que o defunto autor tem em se impor diante da realidade social da época, na qual ele retrata a hipocrisia das relações humanas. As reflexões sarcásticas de Brás cubas vão tomando conta do texto com um pessimismo radical. Nada resiste a essa analise impiedosa, e suas ultimas palavras resulmem bem essa concepção amarga da vida: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Esse último trecho da obra machadiana revela a questão diegética do texto. A partir do momento que o leitor se depara com essa mensagem, ele acaba se perguntando o que levou o autor a um pessimismo tão extremista. A resposta, no entanto, é intermitente, já que opera de forma conjunta com os fenômenos socias que contribuiram para a sua construção. De certa forma a macroestrutura do texto machadiano não permite uma clara decodificação, sem haver uma prévia analise das suas estruturas textuais. A diegese, nesse âmbito, servirá de suporte para que o leitor obtenha uma maior compreensão da obra em toda a sua estrutura. Em suma, para ler Memórias Póstumas é preciso haver um mecanismo que vai além dos conhecimentos diegétios e de narrativa discursiva. É necessário que o leitor entenda a sistematicidade e, sobretudo, a complexidade que Machado de Assis passou para essa obra, que tem como foco a atemporalidade de temas que envolvem a temática do ser.
Tempo Cronológico e Tempo Pscológico
A definição espacial de uma obra é representada pelo tempo em que são encadeados os acontecimentos dos personagens. Em épocas e obras distintas esse tempo pode apresentar multiplas vertentes que servirão de mote para o entendimento da narrativa. Na maioria das vezes, centralizam-se em dois tempos especificos: o cronológico e o psicológico. Ambos podem aparecer simultaneamente numa obra ou apenas um deles. Como se sabe, o tempo cronológico representa o andamento dos eventos que ocorrem numa obra literaria. Esse cronomêtro, por assim dizer, é o que delimita o tempo real, ou seja, aquele que é contado em dias, meses e anos em que a obra narrada. Já o tempo psicológico envolve algo bem mais complexo, pois se encontra no interior de cada individuo/personagem de forma subjetiva. Em outras palavras, seria o desenrolar de um personagem independente da linearidade do texto.
Esses conceitos, no entanto, não podem ser vistos como algo definitivo para analisar profundamente os textos literarios. Parâmetros como esses servem apenas para ilustrar didaticamente como se deve identificar o andamento do personagem no texto. Para os estudos diegéticos, vistos a pouco, é necessário compreender que o tempo narrativo é inconcebível fora do fluxo do tempo. Com isso a diegese quer dizer que, sendo cronologico ou psicologico, o tempo da narração tem que ser estudado levando em consideração os fatores estruturais que formam a base de cada personagem. Para Thomas Mann a identificação dos tempos da narração é fundamental para o leitor, pois este acaba ingressando de forma direta no universo elaborado pelo autor da obra.
Para o melhor entendimento da distinção entre o tempo cronoçogico e o pscologico, faz-se prudente analisar como ambas se manifestam nas obras estudadas nesse artigo: A Moreninha e Memorias Póstumas de Brás Cubas. Na primeira obra, a linearidade temporal é facilmente identificada, visto que os eventos ou ações dos personagens acontencem seguindo uma linha tênue, não deixando margem para dubialidade por parte do leitor. Nessa obra, a narração é contada durante um período de três semanas e meia, de forma que o leitor percebe claramente o desenrolar cronológico dos personagens. Mesmo tratanto de temas ligados a essencia humana, Joaquim Manuel de Macedo não dá tanta ênfase a personagens com um fundo psicologico aprofundado. Na sua obra, encontra-se resquicios que até poderiam evidenciar o grau psicologico de certos personagens, mas para um estudo mais aprofundado seria preciso fazer um levantamento completo de toda a obra, algo que infelizmente não será feito nesse trabalho.
Em Machado de Assis, porém, encontra-se uma imensa riqueza no quesito personagem com fundo psicológico. Trabalhando com as facetas que a mente humana pode produzir, ele cria um personagem incomum em toda a literatura da época. Um personagem que, após a morte começa a narrar os acontecimentos vividos durante sua passagem pela terra. Essa caracteristica, de certa forma, dá ao leitor o primeiro aspecto psicologico da obra. Com isso, o tempo psicologico nessa obra é então inevitavel, visto que a complexidade em que a narrativa machadiana é constituida contribui para formar na mente dos leitores uma maneira de entender como um defunto pode ser autor de sua propria história. Nesse sentido a diegese participa ativamente, pois, como fora conceituado antes, a diegese é a parte dos elementos que estão no texto, no qual o leitor terá que encontrar, entender e decodificar a mensagem da literariedade proposta pelo autor.
A obra é apoiada em dois tempos: um é o tempo psicológico, do autor além-túmulo, que, desse modo, pode contar sua vida de maneira arbitrária, com digressões e manipulando os fatos à revelia, sem seguir uma ordem temporal linear. A morte, por exemplo, é contada antes do nascimento e dos fatos da vida. No tempo cronológico, os acontecimentos obedecem a uma ordem lógica: infância, adolescência, ida para Coimbra, volta ao Brasil e morte. A estranheza da obra começa pelo título, que sugere as memórias narradas por um defunto. O próprio narrador, no início do livro, ressalta sua condição: trata-se de um defunto-autor, e não de um autor defunto. Isso consiste em afirmar seus méritos não como os de um grande escritor que morreu, mas de um morto que é capaz de escrever. O pacto de verossimilhança sofre um choque aqui, pois os leitores da época, acostumados com a linearidade das obras (início, meio e fim), veem-se obrigados a situar-se nessa incomum situação. E é essa quebra da linearidade que faz com que Machado de Assis se consagre como um dos maiores escritores de todos os tempos.
Considerar a importância da temporalidade litarária é de suma relevância para a compreensão de obras literárias. Em se tratando de dois grandes nomes como Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis, a necessidade de estudar cada personagem aumenta ainda mais, de modo que sejam considerados os feitos que ambos realizaram (um inaugurando o romantismo no Brasil, enquanto o outro o realismo). Fazer uma obra que retrate com o máximo de fidelidade possivel os costumes vividos pela sociedade brasileira foi o principal legado desses dois autores. Trabalhando com a temática do ser, cada um deles, do seu modo, tentou explicar como certos valores eram vistos pelas pessoas da época em que lançaram seus respectivos livros. Joaquim, mais nacionalistas, fala de uma sociedade mais galante, escrevendo o que o povo realemente queria ler. Machado, no entanto, prefere trabalhar com a universalidade do ser: a mentira, inveja, cobiça e todos esses sentimentos atemporais que fundamentam a estrutura do homen social.
nonfiefnipref
ResponderExcluirSou professora doutora em Teoria da Literatura e gostei muito do teu comentário, excelente, posso usar o texto com meus alunos de Letras?
ResponderExcluirPode sim, sem problemas. Será uma honra! Grande abraço ;)
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