31 julho 2019



Durante muito tempo a figura caricaturada do pastor/político Silas Malafaia me divertia à beça. Com seu jeitão de símbolo máximo da moral e dos bons costumes, entonação alteradíssima – com direito a gestos espalhafatosos – ele me garantia prolongadas gargalhadas. Seu Stand Up conservador chegava até a aliviar meu estresse quando no roteiro tinha como pauta o boicote de alguma marca ou emissora, seguido à risca por seus fãs tão caricatos quanto ele. Esse espetáculo divertidíssimo me servia de escape diante das barbaridades ditas por Malafaia e sua trupe. Na época, eu quis acreditar, por meio do humor, que era impensável alguém chegar na política, assim como ele chegou, trazendo ao público ideais tão cômicos com ares de seriedade. Porém, a Ministra Damares Alves deu vida aos meus principais temores. Sua persona não é apenas ridícula, mas também trágica numa era onde só há dois caminhos: ou transformamos em risível os dilemas nacionais ou problematizamos essa tragicomédia da qual nos tornamos a principal piada.

A priori, gosto da ideia de que rir atua milagrosamente em nossas vidas, desde que não nos percamos no riso ao ponto de nos alienarmos da realidade. Assim, confesso que dei, e ainda dou, jubilosas gargalhadas quando a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos vem a público dar vasão ao seu roteiro paranoico de ministrar. Porém, tão rápido quando as luzes da ribalta, me recomponho para não deixar que o riso me deixe de fora do resto do show dessa “artista”. Digo isso porque as questões trazidas por ela são inegavelmente irrelevantes frente a importância do cargo que esta ocupa. Há muitas temáticas transversais urgentes sobre a mulher, família e, sobretudo, os Direitos Humanos, que precisam ser discutidas e, principalmente, solucionadas. Contudo, nossa humorista/ministra já fez de tudo para desviar nossa atenção para o que, de fato, é importante: de meninos vestem azul a meninas vestem rosa, Jesus no pé de goiabeira, Frozen ser lésbica e, a mais atual e insana de todas – se é que possível - calcinhas para as meninas exploradas sexualmente na Ilha do Marajó.

Diante de tamanha ridicularização da mentalidade social, Damares Alves consegue chacotear problemas gravíssimos que acometem a sociedade: sexismo, machismo, homofobia, exploração sexual infanto-juvenil, todos eles sob à luz sagrada da fé cristã que ilumina o palco do seu governo. É importante trazer à tona esse parêntese, uma vez que tanto a Ministra quando Malafaia, além da jocosidade que os compõem, são evangélicos fervorosos, (leia-se fanáticos), usando da graça divina para implantar um projeto político de perseguição e não de inclusão das minorias. Caso fosse o oposto, ao invés de propor uma fábrica de calcinhas, Damares teria feito ações assertivas para entender e erradicar a exploração sexual que vitimiza aquelas garotas. Contudo, seu compromisso recreativo é debochar de nossas mazelas e não resolvê-las. Usar do burlesco para encobrir a incapacidade de suas ações, quiçá sua má vontade de ministrar igualitariamente em uma nação onde o diferente é a ameaça. A questão é, o que diferencia Damares de Malafaia, além do curto hiato temporal, é apenas o poder que ela exerce em meio a um plano de governo tão tragicômico.

Meio que bobo da corte da atual política manicômica do país, a Damares Alves não merece ser vista como alguém que quer nos divertir com suas pautas hilariantes. Ela tem se prestado, antes de tudo, como desvio midiático, enquanto os soberanos que (des)governam a nação estão nos bastidores rindo das desgraças nacionais ao passo que quantificam o número cada vez maior de imbecis que os glorificam. É a cultura de pão e circo sendo ressignificada a cada governo, o qual acredita que o país não passa fome. Logo, pseudoalimentados, a população merece ser divertida com a figura grotesca de Damares. Em parte tem funcionado. Estamos dando a ela não apenas nossos risos, mas também aplausos, pagando seu espetáculo de horror e estendendo sua temporada, quando deveríamos estar, assim como Fafá de Belém, repudiando seus atos e cobrando uma postura mais producente de alguém que ocupa um ministério nunca antes tão imperativo.

Não vejo o mesmo empenho popular contra as loucuras dessa mulher tomando forma dentro e fora das redes sociais assim como ocorreu com a ridicularização de Tiririca, quando este ocupou durante um bom tempo o cargo de Deputado Federal. Ele, humorista de fato, teve sua profissão usada como chacota por aqueles que questionavam a presença de um comediante na política nacional. Hoje temos a figura de Damares, que mesmo não tendo viés artístico algum, consegue ser tão icônica quanto Tiririca. Esse silêncio de grande parte da sociedade denota algo muito perturbador: há muitas pessoas comungando do discurso dela. Ou seja, indivíduos que creem na distribuição de calcinhas para meninas exploradas sexualmente, de que há cores específicas para sexos específicos, dentre outras barbaridades ditas e defendidas pela zorra do governo. É uma piada que não deveria ter graça, mas que está literalmente entretendo a sociedade de um lado e, do outro, servindo de espelho para representar o sanatório que se tornou o Brasil.

Na verdade, Damares é a única capaz de roubar o estrelato conquistado a duras penas por Bolsonaro semanalmente. Inconformada com a figuração, ela faz de tudo – e isso é literal – para ganhar seus minutos de fama. Seu êxito é inegável. Do outro lado do palco, o seu colega de coxia Jair Bolsonaro age incólume diante das pitorescas colocações de Damares. Faz sentido, ela tem servido ao propósito presidencial, pois não há nada mais desviante das mazelas sociais do que atribuir valor cômico a elas. E Damares é uma artista no sentido jocoso da palavra. Em contrapartida, há muita tragédia na sua presença cômica na política. Há alguém à frente de pautas caras à mulher, família e Direitos Humanos, incapaz de empreender um projeto de governo competente para atender tais demandas. Existe também o vilipêndio a inteligência daqueles que lutam para trazer rotas mais racionais para os descaminhos criados pela lorota que se transformou a política nacional. Por fim, há o fanatismo religioso usado como subterfúgio para atribuir sanidade a quem inegavelmente precisa de ajuda terapêutica.

Malafaia agora me parece ainda mais divertido, pois é menos louco e perigoso que Damares.

21 julho 2019



        Impactado com o rumo da política nacional, resolvi me abster deliberadamente de quaisquer discussões nessa seara. Por longas semanas me privei de alfinetar o (des)governo que nos rege. Nada de compartilhar matérias. Nada de encher os stories com imagens de cunho político. Nada de elaborar textões para extravasar meus dissabores. Absolutamente nada de Bolsonaro. Tive boas razões para isso: era preciso oxigenar o cérebro diante de tanta burrice legislada em menos de um ano de governo; além do descrédito dado às palavras nessa era anti-intelectual do Brasil.
            Talvez não tenha sido o único a enclausurar minha militância. Muitos esgotaram suas forças em meio ao avanço inconteste da insanidade no país. Então, enfraquecidos pela loucura generalizada, o mais sensato parecia ignorar o desenrolar dos fatos e torcer para que esse onirismo trouxesse para nós ao acordar uma perspectiva menos tumultuada da realidade. Porém, não foi uma decisão sábia. Individualizar-se perante a temas comuns a todos não é a escolha mais sensata. Logo, para resgatar o pacto com o outro - que aliás está se perdendo no fio de nossas vaidades - é preciso nutrir nossas bases mentais e seguir na luta antes que a compacta noção de sociedade se nacionalize.
            Felizmente, as boas novas do nosso chefe de Estado são capazes de trazer dos mortos qualquer militante. Eu, por exemplo, fui trazido do limbo ao saber da recente ofensa de Bolsonaro ao Nordeste, numa clara acepção de que seu governo, desde o começo, não prioriza o país como um todo. Mais que isso, o antagonista do atual governo, o PT, ainda na figura de Lula, tinha uma enorme aprovação nacional, sobretudo no Nordeste. Talvez, na visão rubra do atual presidente, ele enxergue o vermelho - sua cor odiada - em tal região. Porém, antes de conjecturar, é inegável que a atitude dele resvala do preconceito que o levou a ocupar o cargo máximo da nação.
            Depois de modular as mentes dos mais fracos permitindo a disseminação de discursos de ódio disfarçados de opinião, Bolsonaro representa uma grande parcela social que burla o politicamente correto, desrespeitando quaisquer minorias. Assim, para quem já atacou mulheres, índios e gays, falar mal do Nordeste completa o combo de intolerâncias desse ser que cada vez se distancia da classificação de humano. Fechado em si, ele pretende com tais atitudes compactar os seus no seu clube politicamente incorreto. Tem funcionado. Muitos apenas assistem aos vômitos presidenciais e continuam alheios a tamanha falta de respeito ou, na pior das hipóteses, ressonam essas violências.
            Enquanto isso, os dele são agraciados com indicações políticas nacionais e internacionais, em um claro misto de nepotismo e meritocracia. Na sua falta de civilidade, boa parte da família Bolsonaro ocupa, por "merecimento", cargos públicos e um deles está prestes a alçar o posto de embaixador do país nos Estados Unidos. É controversa tal postura presidencial, já que seu posicionamento neoliberal insufla a sociedade a conquistar seus espaços por mérito próprio, ignorando entraves sociais, econômicos e, principalmente étnicos. Certamente, seu filho hétero, branco, rico, deve ter tido “muitas” dificuldades para alcançar a chance de estar no poder como a maioria dos brasileiros.
            Na indigesta sucessão de barbaridades, Bolsonaro afirmou que ninguém passa fome no Brasil. Ler isso não me surpreendeu. Quando um presidente eleito por meio das Fake News, e que ainda usa deste recurso cibernético para incitar o ódio pelas redes, diz que não há fome na nação, ele apenas está sendo coerente com todas as mentiras que formam o seu plano político – se é que há. Logo, fiel aos seus ideais fascistas, é esperado dele desmistificar os indicadores econômicos nacionais e internacionais sobre a miséria à brasileira, sobretudo porque o pobre não é e nem será a prioridade de seu governo. Decerto, para quem vem atacando a educação e desestruturando a previdência, a fome para Bolsonaro de fato é algo a longo prazo, pois a de antes e a de agora não demoverá seu cético compromisso em destruir o país, do saber à mesa.
            Nesse sentido, não basta desnutrir o corpo e a mente, a comitiva avassaladora do presidente quer deixar sua contribuição nociva também no meio ambiente e na cultura. Firme em suas alegações anticientíficas, Bolsonaro contradiz anos de pesquisas frente ao desmatamento da Amazônia, acusando os profissionais que protegem a maior riqueza nacional de mentirosos, pois, para ele, há exageros nas alegações científicas. Aliás, a ciência, seja ela humana, estatística (vide o IBGE), seja ela acadêmica, ambiental, ou qualquer outra, não tem a maior relevância na era da burrice da qual encontrou na presidência sua principal representação.
            Censurar também as produções artísticas será o próximo passo do governo. Após criticar a Ancine (Agência Nacional do Cinema), não no que diz respeito a destinação de verbas públicas para a cultura, mas as produções feitas pelo cinema nacional, é provável que ele estenda a censura às mídias televisivas, exposições de arte, shows musicais, caso estas tenham um conteúdo “impróprio” as normas governamentais. Ou seja, firam o decoro branco + hétero + cristão + conservador + elitista que controla a nação. Quiçá a Record, e suas produções bíblicas infindáveis, passe incólume nas sanções políticas atuais, uma vez que retrata o país dos sonhos do clã Bolsonaro.
            No entanto, na Cruzada das intransigências do Governo, ler que Bolsonaro acredita ser o emissário de Deus para salvar o Brasil foi a mais impactante das notícias. Isto porque, em um país cristão, esta menção é perigosíssima, sobretudo com as alianças políticas feitas em acordos duvidosos com a bancada evangélica no congresso, a qual tem grande poder de barrar e criar diversos projetos. Além disso, confere ao presidente eleito um elemento sobrenatural, que além de subjetivo, é inconstitucional numa democracia dita laica. Portanto, ao se apossar do discurso divino em benefício próprio não só é uma tática clara de charlatanismo, como também uma maneira desonesta de ludibriar a fé do povo para conquistar benesses terrenas.
            Diante de tudo isso, em apenas seis meses de governo, Bolsonaro tenta compactar sua loucura em um grande manicômio a seu aberto, infelizmente com outros doidos compactuando espontaneamente dessas e muitas outras loucuras que virão. Eu, por outro lado, assim como os poucos sãos que vagam pela sociedade, preciso criar um pacto ainda mais forte comigo e com o outrem cujo desconhecimento de causa tem sido fisgado por esse Asilo Arkham que se tornou o Brasil. Não temos um Batman, mas temos um ao outro. Precisamos resgatar esse senso de coletividade. Não soltar a mão de ninguém e, se possível, dar os braços para assegurar as amarras de nossas lutas. Esse é o pacto com o outro contra o compacto do eu individualista que impera na nação que urge ser posto em prática.
            Por mais impactante que seja a realidade, o impacto da vida poderá ser menor se o pacto for o bem de todos.
            Voltei para somar. Falta você!