Vivemos sob um modelo
social que supervaloriza à vida, à longevidade, à existência. Logo, quando
alguém subverte esse esquema, é duramente julgado por isso. Os suicidas fazem
parte desse grupo de pessoas subversivas, incompreendidas em suas ações e,
muitas vezes, demonizadas por tomar a decisão mais complexa frente àquele
panorama, interromper a própria vida. De fato, há de se pensar que nada seria
capaz de justificar tamanha autoviolência, sobretudo quando esta ocorre na
juventude. Entretanto, a falta de problematização em torno desse tema tem
ampliado o tabu em torno do suicídio, ao passo que pouco se questiona acerca
das possíveis causas que podem levar um indivíduo a cometer esse ato. Quando
isto é feito isento de juízos de valor, percebe-se que, muito mais que uma
atitude extrema, o autocídio é o único caminho visto por aqueles que, perdidos
em suas dores, encontram na morte um fim para os seus sofrimentos; após verem
seus temores serem negligenciados por uma sociedade dividida entre os vivos e
os que não podem morrer, mesmo que apenas subsistam entre os demais.
Relativizar é a palavra
usada para por em xeque os sinais dados por quem pretende se matar. Assim,
tristezas a longo prazo, isolamento, irritabilidade, mudanças bruscas de humor,
são interpretadas como fases. Na pior e mais costumeira das hipóteses, é visto
como frescura, aprofundando ainda mais o fosso de tormento vivido pelo outro.
Evidentemente, cada um manifesta seus sintomas de acordo com o fardo do qual
está carregando. Há aqueles que não apresentam nenhuma das características
atribuídas aos suicidas, e mesmo assim surpreendem a todos ceifando a própria
vida. Porém, algumas destas marcas são nítidas, mas passam despercebidas quando
analisadas grosseiramente. Isso se dá, a priori, pela falta de diálogo sobre as
instâncias vida e morte. O que há é a exaltação da primeira e a superstição da
segunda. Mesmo aprisionados nesse modelo de viver a todo custo, muitos não se
sentem confortáveis o suficiente para manter uma existência incompleta, vazia e
começam a deixar vestígios dessa insatisfação. Então, sem a devida atenção, o
que parecia ser um breve momento triste, vira depressão, a qual isola a pessoa
do convívio em sociedade e, por mim, a morte deixa de ser antagonista.
Esse ciclo mortífero
poderia ser evitado se a sociedade desse ao suicida a chance de viver. Contudo,
sufocada em seu mundo opressor, a coletividade está cada vez mais alheia aos
dilemas do outrem, compactuando silenciosamente para o suicídio de muitos. Em
suas múltiplas células sociais, a família é a principal e a mais omissa nesse
sentido. Em muitos lares atarefados com contas a pagar, metas a cumprir e
valores externos para corresponder, muitos dos seus integrantes esquecem de privilegiar
aqueles a sua volta através de simples diálogos capazes de dissipar certos
traumas antes que se transformem em feridas incicatrizáveis. Entretanto, as
demandas diárias insuflam o tempo com superficialidades impedindo que determinados
papos mais profundos ganhem destaque. De forma acumulativa, membros do mesmo
espaço familiar passam a se desentender, vivendo como estranhos apenas por mera
conveniência. Isso é um bom exemplo de como a sociedade compreende o viver, um
modelo de reprodução de práticas sociais mais emergencial do que lidar com
questões existencialistas tão imediatas quanto.
Não é de se admirar que
os jovens sejam os mais susceptíveis a cometer suicídio. Por transitarem numa
fase da vida onde o novo é o protagonista, a juventude se vê cada vez mais
submersa em questionamentos que não são respondidos pelos adultos, e quando
são, chegam de forma rasa, sem penetrar na raiz dos problemas vividos por
aqueles. Sem abertura em casa, na escola e entre amigos, as mídias sociais se
tornaram a aliada fiel desse grupo, o qual encontra nelas o refúgio para fugir
de seus sofrimentos. Nem sempre, porém, essa válvula de escape mostra-se ser o
caminho mais seguro. O jogo da baleia azul foi uma prova disso. Tão pouco há
meios virtuais focados a trocar experiências construtivas entre eles, de modo
que possam debater sobre esse tema e, quem sabe, impedir que cheguem ao
suicídio propriamente dito. Então, perdidos no mundo real e virtual, a
juventude tem se matado deliberadamente, às vezes deixando cartas dolorosas nas
quais expõem as razões do autocídio, noutras vezes não há qualquer evidência
que “justifique” alguém na tenra idade tirar a própria vida.
Entretanto, ninguém
insubordinadamente cometeria suicídio se as provações das quais passam algumas
pessoas fossem percebidas, compreendidas e, sobretudo resolvidas sem o julgo da
condenação divina. Isto porque, algo dessa natureza não seria posto como opção
se outras alternativas fossem previamente apresentadas. Infelizmente, isso não
ocorre. A sociedade que sentencia o suicida é a mesma que não destina tempo e
esforços para impedir que alguém chegue até o ápice do sofrimento, através da
inconversável realidade da qual todos estão inseridos. Nela, traumas,
desilusões, fracassos, perdas, inaceitações, falta de perspectivas, são nuances
cada vez mais frágeis do ser humano, exigindo uma atenção redobrada de todos.
Logo, qualquer omissão pode resultar numa fenda e desta um vale onde muitos
indivíduos se lançam como amparo para suas agonias. Suicidar-se tem a ver com
isso: quando o vazio preenche todas as lacunas deixadas pela esperança, só
resta ao suicida entregar-se ao desespero, abandonar a crença em qualquer
mudança, rendendo-se aos braços da morte como única aliada, já que a vida
oferecida a muitos deles era cheia de ausências, medos e esvaziada de sentido.
Por essa razão, a
maioria das pessoas que cogita cometer o autocídio, ou as que já tentaram,
fazem de tudo para chamar atenção para si. Usam desse recurso como se
dissessem: “sociedade, eu não quero
morrer, mas você não está me dando outra alternativa.” É como se a morte
assumisse um papel de renascimento na vida desses indivíduos, que quando
estavam vivos não desfrutavam plenamente suas existências. É uma maneira cruel
de ressiginificar as premissas viver e morrer, pois a primeira não garante a
todos as possibilidades de uma existência dignamente plena e tão pouco a última
se caracteriza por encerrar as probabilidades de existir. Ou seja, os suicidas
querem viver depois da morte, como se deixassem a todos um legado: o de que o
modelo de vida imposto a todos não é o bastante para suprir nossas infinitas
carências, logo, não pode ser vista como ideal, imutável e adequada a todas as
realidades humanas, mas sim ajustáveis a pluralidade das pessoas, com suas
neuras e pendências a serem solucionadas. O suicida, assim, é uma afronta
corajosa a falha ideia que se criou em torno da vida.
Covarde é a maioria da
sociedade, convencida de que esse modelo de vida é perfeito, de modo que é
inadmissível ir de encontro a ele sem ser catalogado com alguma patologia ou
possuído por algum espírito maligno. Em boa medida, não é descartável a
possibilidade do adoecimento da mente ser preponderante ao suicídio, mesmo que
isso seja fruto de uma sociedade patologicamente adoecida quanto o que se
entende de vida e morte. Entretanto, cabe à ciência investigar os insondáveis
labirintos da mente humana e traçar rotas de fuga para ajudar aos possíveis
suicidas. Para quem enquadra o autocídio no bojo da fé, não há remédio a não
ser respeitar os dogmas nesse sentido, embora muitas vezes certos princípios
religiosos mais compliquem a realidade do suicida do que facilitem. Seja como
for, o flagelo vivido por muitos indivíduos é oriundo de uma precária estrutura
social discursiva, falta de problematização dos dilemas humanos em casa, na
escola, na mídia, etc., bem como a exaltação de um perfil de vida, que é lindo
em sua ideologia, mas precário em seu exercício. Caso tudo isso não seja
reavaliado, a sociedade continuará no desengano de acreditar que a vida é isso
aí que se vê e quem não se adequa, paciência.
É a única coisa que o
suicida tem em excesso, paciência, mas até ela tem limites.
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