19 janeiro 2020


O olhar é um dos sentidos humanos mais complexos. É a partir dele que captamos o mundo, ao passo que nosso íntimo é fisgado pelas lentes alheias. Porém, em uma sociedade dissimulada, as relações humanas são ofuscadas pelo consumo, pela mídia, pelas possibilidades da internet, lentes desviantes que nos impedem de ver a singularidade do outro a nossa volta, renegando-o a invisibilidade. Assim, determinados dilemas surgem à nossa frente como um holograma, mera representação de uma realidade paralela, distante, mas, ao mesmo tempo, cabível de existir caso fôssemos capazes de captar as relíquias individuais que há em cada pessoa com suas histórias, dramas, particularidades, sonhos. A Vida que Ninguém Vê faz um compêndio visceral das existências daqueles que subsistem pelo país. São narrativas intrigantes construídas sob o pilar crítico do texto jornalístico de Eliane Brum cuja sensibilidade com a palavra nos faz ver o não visto.

A priori, chamou a minha atenção a maneira como Brum conduziu àquelas histórias. Dona de uma escrita inegavelmente empática, suas crônicas tocam mais profundamente pelo senso de humanidade da escritora em torno daquelas narrativas. Cada uma delas Brum deu uma roupagem textual digna de seus enredos. Não fez isso pelo simples artifício de ornamentar tais trajetórias, como se quisesse suavizar seus dissabores, mas, na minha perspectiva, para permitir que víssemos com os mesmos olhos dela aquelas vidas apagadas pelo esquecimento. Só a palavra é capaz de reavivar a existência daqueles cuja vida foi destinada ao vazio do silêncio. Eliane Brum é a porta-voz desses emudecidos, além de luneta para as nossas visões míopes sobre o outrem. Após concluída cada crônica, insurge uma inquieta constatação: o que nos fez cegar diante dessas pessoas que, apesar de únicas, possuem histórias semelhantes a muitos de nós, mas que não notamos frente ao turbilhão de coisas que embaçam nossas vistas?

Talvez não seja a intenção da autora buscar uma resposta a esta e tantas outras indagações. Senti que o que está em jogo nas crônicas é um exercício de identificação. É permitir ao outro exilado em seu limbo a chance de voltar à luz não apenas em suas palavras, mas no nosso vislumbre. Isto porque o espanto também é capaz de suscitar grandes reflexões sobre a coisificação do outro, seu apagamento perante aos demais, garantindo a tais espectros que vagueiam pela cidade a chance de encarnarem seus corpos por meio da corporificação das palavras de Brum que nos penetram a alma. Por isso, a cada nova crônica, sentimos algo transcendental, como se aqueles personagens transitassem entre dois mundos, ambos desconhecidos por nós, porém resgatados pelo jornalismo holístico de Brum.

Nesse sentido, é preciso também enaltecer o trabalho dessa jornalista. Já a conheço de longas datas das colunas que escrevia na Revista Época e agora no El País Brasil. Contudo, esse é o meu primeiro contato com seu livro. Brum, tanto nas colunas quanto aqui, é excepcional no trato com as palavras. Sua linguística é preenchida de uma dignidade que a diferencia de muitos outros jornalistas. Destaca-se ainda o enfoque que dá as suas notícias vide crônicas. Nelas o clichê não encontra morada. Não há uma preocupação com o noticialesco. Ela não banaliza os comezinhos do cotidiano. Seu trabalho centra-se nos meandros, nas imperceptibilidades, no não visto, naquilo que seria fatalmente ignorado por outros repórteres. Dessas sutilezas, ela emerge em carne viva a realidade sanguinolenta, sofrível, às vezes auspiciosa e inebriante de pessoas carcomidas pelo abandono. O impacto que recebemos nos faz adultecer.

Após passar a vê a vida que não via, me encantei com muitas crônicas relatadas por Brum: história de um olhar; Adail quer voar; Enterro de pobre; O sapo; O menino do alto; O exílio; Sinal fechado para Camila e o doce velhinho dos comerciais, foram as que mais me chamaram atenção. Nelas uma parte de mim, meus temores mais secretos, se manifestaram em meio aquelas verdades vividas por desconhecidos que poderiam estar transitando, e estão, pela minha cidade. Esse é sem dúvida outro ponto a ser destacado deste livro: muitos daqueles personagens não se restringem às ruas de Porto Alegre. Há muitos outros com narrativas tão fantásticas, tristonhas e desafiadoras próximas de nós, mas não as vemos porque estamos hipnotizados pela profusão das alvíssaras criadas pelo capitalismo, responsável por coisificar humanos e humanizar as coisas. Dessa inversão, há os invisíveis e os invisibilizados. Próximos em semântica, mas opostos na sintaxe. O invisibilizado é aquele ignorado pelos privilegiados, mas que se insurgem seja pela violência, seja pela engenharia de suas habitações no panorama urbano das cidades. Os invisíveis, porém, são aqueles que nem ricos nem pobres notam. Sua presença é destituída de valor por fazer parte da subcategoria anterior. Por isso não os vemos porque em nenhum momento atribui-se vida a eles. São seres sem alma numa sociedade desalmada.

Por tudo isso, A Vida que Ninguém Vê é um relicário, uma abertura jornalista para aqueles sem espaço dentro e fora dos meios midiáticos. É uma coletânea indigesta para quem tem brio de admitir a estrábica visão que nutrimos pelos nossos semelhantes. De tal maneira, em muitas páginas me senti grogue, desconcertado dentro da minha atmosfera a qual considerava difícil de suportar. Todavia, ao ler as histórias singulares daquelas pessoas, percebi como a leitura consegue realocar nosso egocentrismo para fora do nosso orgulho, fazendo-nos entender que apenas enxergando o outro em suas complexas construções poderemos conferir algum sentido a nossa existência. Daí a importância do choque, encandear às vistas para passar a ver de verdade. Assim, as lágrimas dos meus olhos, que antes não viam, passaram a se inundar com a vida daqueles desconhecidos. Dessa forma, aconselho não apenas ler esse livro o quanto antes, mas também se permitir romper a represa contida em seus olhos. Deixem suas lágrimas desaguarem por eles, por você, por nós, mas não por pena dos envolvidos, e sim para que todo humano tenha o direito de ser visto como tal.

12 janeiro 2020


Estou revendo os meus conceitos sobre determinadas leituras. Mesmo sendo um cara flexível quanto a determinados livros, me descobri nos últimos anos nutrindo preconceitos - sempre rasos e desnecessários - sobre o que poderia ler. Porém, não faço parte do time dos classistas que levantam a bandeira dos cânones literários para menosprezar outros livros. Longe disso. Apenas olhava de soslaio para determinadas leituras que me pareciam badaladas demais, ou com o quê de autoajuda do qual não sou fã, e de fato isso eu assumo. Porém, esse empedernido leitor costuma, pelo menos no presente, rever certas posições antiquadas que tinha. Foi o que fiz dessa vez ao ler o livro Me Poupe da jornalista Nathalia Arcuri.

O título comercialesco já adianta o seu teor: trata-se de um livro para ajudar pessoas, que assim como eu, não sabem administrar suas finanças. Para ser honesto, não foi comprado de livre espontânea vontade, mas por pressão (pressão mesmo) de um colega de trabalho preocupado com os gastos excessivos que faço diante da minha difícil, mas passageira, situação financeira. No dia, tinha outros seis livros a mão e me permiti levar o Me Poupe. Contudo, já tinha ouvido falar tanto da obra quando da autora. Por estar conectado à rede, acessei rapidamente o canal dela no YouTube. Cheguei a fazer minha inscrição, mas não tive coragem de ver um vídeo sequer. O medo? De ouvir certas verdades inconvenientes.

Entretanto, há forças, que costumo chamar de destino, sempre dispostas a nos expor na face àquilo que temíamos. Então, de posse do Me Poupe, comecei sua leitura. Como a autora diz, o livro pretende ajudar a quem não sabe cuidar do próprio dinheiro. O livro é curto, de linguagem levíssima, até com uma dose de humor um tanto bobo (para o meu paladar), e repleto de dicas, muitas até praticadas no próprio livro, para que possamos rever os erros que cometemos com as nossas verbas e aquelas que pretendemos ter. Há indiscutivelmente muita pessoalidade no livro, talvez para aproximar o leitor de um panorama resolutivo de suas dividias. Em boa medida isso funciona, porque exemplos precisam ser partilhados e copiados, mas noutros, não.

Digo isso e já antecipo a primeira falha do livro: sua visão elitista das finanças. Isto porque, Arcuri se mostra imbuída das melhores intenções - e não estou duvidando disso -, certamente há nela um propósito maior do que apenas vender livros ou fazer seu canal no YouTube ganhar novos seguidores. Por essa iniciativa, sua escrita já merece meu respeito, sobretudo numa nação onde pouco se discute sobre economia com os mais necessitados. Porém, sua falha está na disparidade social que é uma das responsáveis pelo endividamento populacional. Sua origem, apesar de não ser em berço de ouro, está distante da dê muitos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês. Ou seja, para quem leu a obra, sabe que mesmo com dificuldades, ela conseguiu ter uma base satisfatória para poupar, diferente de muitos de nós.

Também considero exagero algumas medidas tomadas por ela para poupar dinheiro, mas isso diz muito da perspectiva de vida dela que desde menina tem esse espírito empreendedor. A minha discordância reside nas proporções as quais poderiam ficar mais equiparadas se fosse levado em consideração outras questões econômicas não citadas na obra: a desigualdade social, étnica e de gênero que assume proporções significativas na economia, ou não, de muita gente. Quando estes prismas são elencados, e devem em se tratando de um país cuja renda populacional atravessa estigmas históricos sociais incontestáveis, as dicas de Arcuri ganhariam proporções ainda maiores do que já ganham.

Fora isso, fui lentamente simpatizando com as suas dicas, algumas coloquei em prática logo após ler as primeiras páginas. Achei massa essa interatividade e a simplicidade com que ela trata termos técnicos do campo financeiro. Facilitar a compreensão de certas nomenclaturas ajuda muito na hora de não entrar numa roubada com o banco. Entre eles, o juro composto foi o que me chamou mais atenção. Não fazia ideia (eu, e como ela disse, muitas outras pessoas) de que havia alguma positividade na palavra juros. Sempre os vi como inimigos, que por sinal tem me acompanhado nos últimos meses. Entretanto, mesmo sem condições no momento de investir, me senti tentado com essa possibilidade num futuro próximo.

Além disso, as reflexões trazidas por ela são no mínimo interessantes. Nos mostram as falhas que cometemos a comprar coisas por impulso (eu sou desse time), o que podemos fazer para controlar essa impulsão, investir, poupar e assegurar alguma grana para o futuro. Esse para mim foi o lance maior de Me Poupe, projetar um amanhã. Faço parte do grupo de milhões que afoga as mágoas nas compras, que se endivida a longuíssimo prazo e não tem qualquer controle sobre as próprias finanças, ou seja, um paciente financeiro difícil, às vezes até irremediável. Todavia, com o tempo, a maturidade e as quedas, estou paulatinamente revendo essas falhas. Por sorte, comprei à força o Me Poupe e sinto que não serei mais o mesmo após ele. Na verdade, ninguém é o mesmo após ler qualquer livro. A palavra e a mudança são agentes transformadores da vida.

Portanto, o Me Poupe de Nathalia Arcuri é um livro interessante, e só. Não resumo a isso como forma de menosprezo, mas porque foi o meu primeiro contato com esse tipo de leitura, logo, precisarei de outras para escolher outro adjetivo para ele. Claro, sou um desajustado das finanças e por essa razão contumaz a mudanças nesse campo. Precisaria de algo profundamente tocante para rever bruscamente os meus defeitos. O que Arcuri me proporcionou ao ler seu livro foi a chance de aplicar parte de suas dicas a minha realidade financeira guardadas as minhas proporções atuais. Talvez em um futuro próximo eu precisarei revisitar suas páginas para tirar novos proveitos de suas instruções. Até lá, Me Poupe me parece um bom guia para encontramos ao nosso modo os caminhos para escapar das armadilhas que a “dinheirofobia” incute sobre nós.
Certas épocas em nossas vidas determinam o curso de nossa história. De tal premissa, depreende-se uma verdade incontestável, embora, na adolescência, mais precisamente em sua transição, haja maiores movimentos de corpo, mente e alma-, que noutras etapas humanas. Talvez também isso se dê devido ao turbilhão de sentimentos que nos eleva, todos alheios a nossa vontade, em boa medida, contudo, contributivos a formação da nossa personalidade. Em meio a isso, percebi que Amiga Genial, de Elena Ferrante, transcorre por essas águas nebulosas onde a juventude navega à deriva, mas também nos precede uma história de convivência, descobertas, alianças, dissabores e transformações para além dos ímpetos hormônicos da adolescência.

Enquanto obra, Amiga Genial possui algumas características semelhantes a Dias de Abandono do ponto de vista estrutural, embora este último tenha um detalhe a mais o uso falarei logo adiante. Afora isso, o livro é disposto em parágrafos curtos os quais dão uma fluidez a leitura. A escrita envolvente de Ferrante é outro detalhe a ser mencionado: o cuidado vocabular, sem preciosismos desnecessários nem empobrecimentos pretensiosos. Tudo o que está ali está por uma razão, e é compreensível numa leitura não tão atenta. Chama atenção ao artifício do título. Este aparece uma única vez em todo o livro, um recurso da autora para que Amiga Genial seja entendida por si só em sua narrativa. Funcionou!

A priori, as primeiras páginas me deixaram aflito pela quantidade de personagens, bem como a descrição de cada qual no enredo que iniciara. Juguei precipitadamente que aquilo poderia turvar a compreensão do todo, que conflitaria a história ao ponto de figurar negativamente qualquer interpretação. Contudo, infelizmente, estava enganado. Ao longo das páginas, todas aquelas pessoas conseguiram alocar-se no enredo sem confundir este raso leitor, graças a forma, reitero, precisa da escrita de Ferrante. Ainda no quesito estrutural, Amiga Genial tem um ritmo com poucas variações, apesar de instigante. Começa morno, complacente e depois ganha nova temperatura, mas nada quentíssimo a se intitular com clímax. Vou classificá-lo como semi-quente, mas ainda incorrerei a imprecisão.

Continuo a me impressionar com a capacidade de Ferrante em dar roupagem elegante a enredos batidos. Neste, a história de duas amigas, aparentemente distintas em personalidade, se desenrola da infância, perpassa a adolescência e beira os primeiros degraus da vida adulta delas. Entrementes, os conflitos que as envolvem são conhecidíssimos de todos nós, embora, guardada as devidas proporções de tempo e espaço, (a história se passa em Nápoles em meados dos anos 1950), tudo redimensiona para um clichezão, desfeito pela construção linguística de Ferrante, a qual não nos deixa brecha para criticar, tão pouco encontrar indícios claros de que o clichê está presente, mesmo estando ali desde o início.

No entanto, ao retomar Dias de Abandono, meu primeiro contato com Elena Ferrante, é impossível não fazer comparações, mesmo ciente de que Amiga Genial inicia a tetralogia que certamente lerei mais adiante. Por ora, compararei o que senti em abundância em minha primeira leitura de Ferrante e senti falta aqui: o traço psicológico dos personagens. Lá, mesmo distante de mim em enredo, a narrativa me prendeu loucamente, ao passo que, em muitos instantes, senti a dor daquela personagem abandonada pelo marido. Esse quesito imersão ocorreu também em Amiga Genial, mas em menor proporção, embora, devo admitir, sua história é bem mais próxima da minha realidade.

Nesse sentido, é preciso destacar o quão envolto eu fiquei ao ler diversas passagens da vida de Elena e Lila. De cara, me vi transfigurado em uma das partes, porém, ao longo das páginas me vi transplantado nas duas, o que me inquietou. Talvez tenha sido este outro recurso de Ferrante, não criar mocinhos nem vilões, mas humanos em seu maniqueísmo mais puro, a adolescência. Por isso me permiti regressar a minha juventude quando, em boa medida, fui Amiga Genial de alguém e também seu espectador, nem sei mensurar o quanto de ambos, é nem vem ao curso. O que sucinta é o regresso a essa época quando as descobertas pouco tem espaço para serem experimentadas e são rapidamente suprimidas pela ânsia da vida adulta.

Seja como for, Amiga Genial é um bom livro, mas não é o melhor de Ferrante, como apregoa os muitíssimos críticos da internet. Na minha incipiente opinião - passível é aberta à discussão - Dias de Abandono é mais impactante. Todavia, precisarei ler o restante da tetralogia para legitimar essa minha precipitada colocação. Conquanto, volto a reafirmar isso, é preciso ler Elena Ferrante. Primeiro porque ela desconstrói aquela menção elitista de que a literatura contemporânea é pobre, por essa visão generalizante, perdemos leituras agradáveis como essa. Segundo porque é no mínimo interessante ver o malabarismo - e não leiam isso de forma pejorativa - que a autora ressignifica os nossos clichês. Por último, após ler Amiga Genial ou melhor, Ferrante, certamente, com doses peculiares de empatia, teremos o prazer da retomada as nossas bases por meio de uma leitura mais leve.