30 maio 2018

Não me subestime: Sou mais do que você imagina.



Todo preconceito se baseia na premissa de que há algo pré-estabelecido em nosso olhar sobre o outro e, desta análise errônea que fazemos, não há espaço para desconstrução. Por esta razão, nos tolhemos de conviver com certas pessoas, experimentar determinadas vivências e conhecer outras realidades, por causa dessa patética mania que temos de superestimar nossos conceitos a partir de nossos olhares distorcidos sobre a vida alheia. Por causa dessa nossa insensata postura, subestimamos tudo e todos a nossa volta que fuja da normalidade captada por nossas lentes desfocadas. Antes mesmo de sentenciar os “diferentes” a total exclusão de nossas vidas, duvidamos de suas capacidades, questionamos sua relevância e/ou desvalorizamos suas qualidades, mesmo que estas sejam inquestionáveis, porque já fomos hipnotizados pela sociedade a ver sem enxergar. Mais que discriminar, subestimar com base no que se vê de relance, nesse sentido, é a forma mais genuína pré-conceitual de delimitar o muito de alguém em pouco.  

Tenho minhas reservas com a expressão: “a primeira impressão é a que fica.” Nem sempre ela dá conta de nos apresentar ao mundo como de fato somos. Como toda apresentação, na ânsia de nos mostrar o melhor que pudemos, há de nossa parte excessos, economia, exageros, cautelas, erros, acertos, sem brechas para ensaios. E desse improviso de querer agradar ao outro, deixamos escapar nossa naturalidade para assumir um perfil “Fake” de nós mesmos. Então, numa piscadela, quem está do outro lado já presume quem somos, ao ponto de nos incluir ou excluir definitivamente de suas vidas. É uma atitude digna de, no mínimo, reflexão. Todavia, em sua essência, aquele dito popular carrega em si a presunção usada por muitos para subestimar as pessoas a nossa volta. Seja pela aparência, entonação da voz, gesticulação corporal, há sempre algo usado para caracterizar o todo do outro, como se uma parte do que somos fosse capaz de nos definir por completo.

Assim, sem ao menos nos conhecer, temos a nossa personalidade questionável por pessoas ocupadas em nos sentenciar meramente por aquilo que veem ao nosso respeito. Pior ainda é quando essa análise visual interfere naquilo que de melhor temos a oferecer. Recentemente, passei por isso, quando uma vizinha, que sabe da minha rotina como professor, questionou a autenticidade dos textos que costumo escrever na rede/blog. Seu tom de voz e expressão ocular revelavam total descrença de que os artigos lidos por ela poderiam ter sido feitos por mim. Recebi aquela ofensa da melhor maneira que pude e retruquei perguntando por que não seria de minha autoria aquelas palavras. Ela, com a velocidade costumeira de nossos preconceitos, disparou que não imaginava alguém como eu ser capaz de produzir aqueles “textões”. A minha vontade era de lhe esbofetear com palavras, porém minha sanidade sabia que não valeria a pena me expor daquela maneira. Então, guardei na mente a frase dita por ela “alguém como eu” para uma acurada reflexão.

Revisitei vivências preconceituosas das quais já havia me esquecido. Ao subestimar as minhas produções textuais, a minha vizinha não se referia ao texto propriamente dito, mas, sobretudo, àquele que o produziu. Ou seja, um rapaz pobre, negro, morador da periferia, gay, professor, nordestino, e tantos outros estigmas captados pelo olhar daquela mulher. Por mais que me conhecesse há anos, ela não me via como alguém capaz de tal feito. Para ela, assim como boa parte da sociedade, é mais fácil subestimar os grupos minoritários do que dar a eles a chance de se mostrarem como são, com suas deficiências, mas também com suas surpresas e dotes pessoais. Por isso nos chocamos ao ver um médico negro, um nordestino governando o país, uma mulher na liderança de uma empresa, entre outros casos à revelia do sistema superestimado em que estamos inseridos, porque aprendemos com o preconceito a desdenhar do outro, inferiorizando sua capacidade através daquilo que se atribuiu a eles como menor, vil e sem valor.

Quando não é o preconceito que nos subestima, somos nós mesmos que fazemos isso, seja inconscientemente, seja para legitimar a discriminação social evitando um embate entre nós e eles. Dessa forma, poucas pessoas nos enxergam por completo. Em boa medida, isso se dá porque economizamos na amostra daquilo que somos. Geralmente, exibimos versões incompletas de nós mesmos, fatiando nosso ser em pedaços desordenados, os quais chegam ao outro como um quebra-cabeça confuso de se montar. Então, quando é chegado o momento de revelar nossas potencialidades, por mais claras que sejam, não somos percebidos ou devidamente valorizados por nossas reais qualidades. Dessa autodegradação, contribuímos para o desmerecimento de nossos poucos valores, em uma sociedade historicamente construída no menosprezo, vilipêndio e depreciação das conquistas dos grupos minoritários.

Subestimar o outro por meio do nosso limitado alcance ocular é um erro que pode ainda desembocar em um risco, o da vergonha alheia. Quantas vezes, precipitados em achismos rasos, definimos alguém com base naquilo que queremos ver e não no que enxergamos de fato? Inúmeras, pelo menos comigo. É que colocamos no mesmo bojo a ação de dois verbos, que apesar de sinônimos, possuem aplicabilidades distintas. Ver todos nós vemos, sobretudo aqueles que fisiologicamente foram agraciados com a dádiva desse sentido. Já enxergar vai além de ver. Requer detalhe, minúcia, atenção e, principalmente abertura. É preciso desnublar nossa visão daquilo que nos invisibiliza de enxergar além do que nossa biologia corporal nos permite. De fato, esse olhar quase biônico não se adquire facilmente. Passamos por longos momentos de cegueira coletiva até apurar nossas lentes para aquilo que sempre esteve a nossa frente clamando por atenção, mas ignorávamos porque havia tufos preconceituosas ocupando nossa visão.

Na verdade, elas continuarão lá embaçando nossas vistas, se não tomarmos uma atitude enérgica para adquirir o controle dos nossos sentidos. Quando as rédeas passarem a estar em nossas mãos, estaremos aptos a compreender melhor essa agigantada acepção que há por trás da palavra preconceito. A ideia aqui não é apenas enxergar o mundo de outra forma, mas deixar com que esse mundo se revele para nós como ele sempre foi e a partir disso refletir sobre suas incontáveis incoerências. Não obstante, isso não garante os inevitáveis momentos de cegueira ao longo da vida. Por estar em sociedade, nem sempre enxergamos o mundo a partir de nossos olhos. Todavia, certos embaraços na visão serão rapidamente sanados quando entendermos o quão nocivo é para todos subestimar os outros pela primeira olhadela. A quem, como eu, já foi vítima desse crivo equivocado, não poupe esforços para se mostrar para o mundo. Não podemos deixar que o outro defina nossa grandiosidade de forma mesquinha. Precisamos ajudá-los a nos ver de verdade. Feito isso, o cada vez mais velho preconceito terá seus dias contatos, pois qualquer tentativa de nos subestimar se mostrará inútil.

Até porque você não me conhece, tão pouco eu lhe conheço. Então, não me subestime. Sou mais do que você imagina e você também.

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