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10 abril 2018


Ainda Assim Eu Me Levanto – (“Still I Rise”)


Você pode me inscrever na História
Com as mentiras amargas que contar,
Você pode me arrastar no pó
Mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.
Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo
Jorrando em minha sala de estar.
Assim como lua e o sol,
Com a certeza das ondas do mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar
Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído?
Ombros curvados com lágrimas
Com a alma a gritar enfraquecida?
Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse
Minas de ouro no meu quintal.
Você pode me fuzilar com suas palavras,
E me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas assim, como o ar, eu vou me levantar
A minha sensualidade o aborrece?
E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse,
Diamantes na altura da virilha?
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!

21 fevereiro 2018



A linguagem nunca viveu momentos tão difíceis. Para se expressar, o indivíduo de hoje precisa ser o mais minucioso possível, pois qualquer deslize na comunicação pode levá-lo ao terreno minado da não interpretação, ou pior, da distorção da palavra. Texto, contexto, discurso, enunciação, são instâncias indissociáveis, mas suas categorias perderam seu sentido inaugural nestes tempos sombrios. Fatia significativa deste fenômeno se deve a difusão das redes sociais e o acesso praticamente irrestrito da população, em sua maioria iletrada no campo da leitura - o que resvala na compreensão de textos - na internet. Por essa inadequação linguística, recentemente o hit “Que tiro foi esse?”, da cantora Jojo Todynho, caiu em desgraça após ser considerado como apologia à violência reinante no Brasil, mesmo a funkeira esclarecendo o significado pretentido da música. Entretanto, é preciso aproveitar esse equívoco para uma finalidade mais nobre. De fato, o primeiro sentido dado a “Que tiro foi esse?” parece mais apropriado agora que o governo Temer permitiu que a intervenção militar entrasse mais uma vez em cena na história do país.

Após ser aprovada pela Câmara de Deputados, toda sorte de comentários, análises, debates, discussões, textos e mais textos, em suas múltiplas manifestações, foram, e serão, elaborados para atribuir juízo de valor à Intervenção Militar. Mais que justo, diante da forma como essa manobra inegavelmente política e inconstitucional tem sido feita. Em sua maioria, o que se versa é sobre a ilegitiminidade dada a operação, ao fracasso da segurança pública no Rio de Janeiro dentre sucessivos governos e os interesses escusos, mas óbvios, do presidente mais odioso da história brasileira. Então, quando “as palavras incomodam o suficiente”, como disse Martha Medeiros em uma de suas crônicas, elas despertam a inflexão inesperada daquilo que se almejava. Menos de um dia após ser facultado o direito ao Exército de ter plenos poderes na “seguridade” das favelas cariocas (que este espaço fique bem claro), o próprio Exército se manifestou nas redes, afirmando que Intervenção Federal não é o mesmo que Intervenção Militar. A explicação se tornou ainda mais ambígua do que a sua mera conceituação, sobretudo quando se leva em conta o histórico de truculência militar no Rio e em todo o país.

Voltemos brevemente ao hit da Jojo Todynho. Os problematizadores de plantão enxergaram na letra uma incitação da violência, destacando um trecho da música para chegar a tal conclusão. O Exército da Intervenção Militar incorre pelo mesmo erro. Não se podem analisar textos falados, escritos e imagéticos, desatrelado do contexto a que estes estão intimamente vinculados. As experiências das produções textuais, sejam elas quais foram, são oriundas de uma época, cumulativo de sentimentos e experimentações, visões de mundo empíricas e factuais, das quais não podem ser desconsideradas. Sem esse entendimento qualquer linguagem soará imprecisa, desconectada da realidade, de modo a perder sua total relevância e funcionalidade. Foi o que ocorreu com “Que tiro foi esse?” e é o que, sordidamente, o Exército Brasileiro está se propondo a fazer. Enquanto o tiro de Jojo Todynho foi de alegria, pluma e purpurina, o da Intervenção Militar será digno dos bombardeios do Oriente Médio. Ou seja, tentar substituir a abruta participação das Forças Armadas por outras palavras não surtirá o mesmo efeito enquanto o contexto de atuação for o mesmo.

Essa tentativa fraudulenta de eufemizar a linguagem para evitar maiores alardes talvez funcionasse em momentos mais remotos da história nacional, quando o acesso à informação era mais limitado. Porém, no boom da tecnologia, apesar da carência no quesito interpretação de texto, ainda há muitas pessoas capazes de discernir táticas arbitrárias, principalmente contra os mais desfavorecidos. E não é clichê redizer o quanto são os favelados, pobres, negros, jovens, o público alvo dessa operação. As estatísticas antes disso já comprovam porque tais vivem na mira dos criminalizadores do poder. Também não é irrelevante reiterar a ineficiência do poder público para gerir um projeto de Segurança Pública comprometido com o bem de todos, e não apenas os mais abastados. Uma segurança repaginada, desde a contratação, passando pela política de apreensão de suspeitos, aparato policial, condições dignas de trabalho, menor morosidade nos trâmites legais, resvalando diretamente na reconfiguração das cadeias. Tudo isso é sabido e possível de ser concretizado, mas o mais rentável é manter a política antidrogas, incentivar o porte de armas e criminalizar as minorias.

Há um artigo muito pertinente sobre essa abissal realidade brasileira da Jornalista e Escritora, Eliane Brum, chamado “Também Somos o Chumbo das Balas”. Brum mostra-se chocada com a falta de empatia com os moradores mortos no morro da Maré, no Rio, em detrimento dos da Avenida Paulista nos protestos de 13 de junho de 2013; enfatiza a brutalidade como os policiais incidem sobre a população, não distinguindo bandidos de possíveis criminosos; alerta para a utilização indistinta de balas de borracha nas avenidas brasileiras e de fuzis nas favelas; ainda sobre a polícia, o texto fala sobre como a militarização desses servidores só se insurgem contra os moradores daquelas áreas periféricas e o mais chocante disso tudo, a população brasileira, em especial à classe média, se mostra apática diante de tal massacre do povo pobre, preto e favelado. Pelo visto, a Intervenção Militar não será diferente. Os paladinos de Temer não hesitarão em ferir inocentes para que a “ordem” burguesa seja restabelecida, já que a proteção daqueles moradores está em enésima posição de importância. Será um remake, remasterizado em Full HD do aclamado por muitos, Tropa de Elite. Acontece que Temer, sua corja e a burguesia, assistirá ao massacre no conforto de suas casas. Já os residentes das favelas cariocas farão de suas moradias as trincheiras de mais uma guerra.

 É estranhamente curioso que essa Intervenção Militar se dê às portas das eleições presidenciais, quando um dos possíveis candidatos é abertamente a favor da militarização como forma regulamentadora da proteção da sociedade. O partidarismo da questão é o responsável por suplantar mais uma vez os direitos daqueles que desconhecem esta premissa. Outrossim, não se pode esperar bonanças dessas ações ao famigerado presidente Temer. Seria pretencioso de mais da parte dele almejar algum louro da população, ao expô-la à barbárie. Ele não seria tolo. O que está em jogo, além dos claros interesses políticos, é o esvaziamento da linguagem, através de uma resposta amadora à violência, para que a população se veja crente de que apenas a panaceia das Forças Armadas apaziguará o longo caminho da criminalidade, sustentado em boa medida pelo próprio governo, que agora se rebela contra sua obra. Aos mais apocalípticos, é preciso dar a devida atenção: talvez o regresso dos horrores da Ditadura Militar não seja uma obra da mera fantasia. Parece que o Brasil está trilhando o mesmo caminho, mas, como de praxe, nessa cultura da deseducação, da não leitura e da total irreflexão, até que o fatídico interesse dos malfeitores ganhe forma, eles tentarão de todas as maneiras embaralhar a linguagem até que não faça o menor sentido. Tudo para justificar as ações já claramente injustificáveis.

A serviço de algo maior, “Que tiro foi esse?” foi só a primeira de muitas distorções.


Muito se estudou e se conhece do período colonial no Brasil. A produção histórica de conhecimento é muito vasta e existe um arsenal enorme de informações sobre todo o período da colonização brasileira desde os livros didáticos, passando pelo desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas e chegando até os debates bancados pelos movimentos sociais e populares. Mas até onde filtramos essas informações ou, sem sermos contraditórios, nos colocamos na tarefa de aprofundar os impactos que mais de 60% de recorte histórico brasileiro deixou de cicatrizes em nossa estrutura? Como pensar a plataforma estruturada com a colonização e o regime de escravidão e massacre sob povos tradicionais e negros como base para formação de um país extremamente desigual? Estamos 130 anos após a Abolição da escravidão no Brasil e essas perguntas precisam ser base de debates políticos importantes se almejarmos pensar o país de hoje e onde chegamos. Um grande desafio, mas necessário. Os desfiles carnavalescos deste ano colocaram na ordem do dia o contexto. A Paraíso do Tuiuti deu um show e gritou: Não sou escravo de nenhum senhor!
A COLONIZAÇÃO, A ESCRAVIDÃO E A ABOLIÇÃO!
A expansão marítima moderna, como parte de uma articulação sistêmica e muito bem esboçada, foi o início de uma encruzilhada com novos povos, novas culturas e novos tipos de exploração. O interesse por áreas comerciais e a necessidade de fincar-se que o capitalismo tinha o fez recorrer ao método colonizador de dominação, que pode ser analisada sob diversos vieses: territorial, cultural, político e sobretudo econômico. Vieses estes que não são fragmentários, mas se relacionam de forma compactuada. O processo de expansão do capital tem, desde muito tempo, ditado a realidade do povo negro. A concretização do sistema mercantil do capitalismo, ainda na sua fase de estruturação, já mostrava que as benesses do capital sempre iriam se contrapor à população mais vulnerável. Em todos esses aspectos, a capacidade de transformação humana da natureza se fazia necessária, como parte elementar do próprio sistema capitalista. Em um período onde as grandes confusões com os novos métodos da classe em ascensão eram difundidas popularmente, cabia aos exploradores europeus voltarem todas as facetas criativas para justificar o plano de dominação. Com isso, as ciências e a religião, com grande influência civilizatória, passaram a ser justificativas menores para a dizimação de civilizações nativas e para escravização delas para subserviência de mão-de-obra. O processo de submissão de qualquer tipo de conhecimento que não seja o atrelado ao europeu- branco foi base para a consolidação do sistema escravagista brasileiro, a construção da estrutura do racismo se deu, milimetricamente, de forma institucional, e com o respaldo da ciência e da religião. O programa racista que interpela todos os vieses citados estava em vigor de forma muito mais profunda do que versículos bíblicos que justificam e tratados científicos que encorajam. A branquitude europeia incorporava o plano já nascido mesmo antes do próprio capitalismo e colocava suas cartas com muita violência e capacidade destrutiva. 1500 não é fruto de um acidente histórico, é uma trama engendrada globalmente com extrema capacidade dizimativa! Como disse MC Carol na música “Não foi Cabral”: “Ninguém trouxa família/Muito menos filho/Porque já sabia/Que ia matar vários índios/Treze caravelas/Trouxe muita morte.”
O conceito de “descoberta” utilizado em livros didáticos é eurocêntrico, porque além de forjado por aqueles que escreveram os livros serve a difusão de uma narrativa que esconde o programa, e só o esconde porque ele ainda está em vigor, não teve fim e alcança seus objetivos de forma a satisfazer os do andar de cima. A escolha por arrancar os povos africanos de seus territórios para utilizarem de mão de obra bebe no fato de exterminarem com nativos para facilitar a exploração e tomada de novos mundos e também porque o racismo foi forjado como arma ideológica de dominação global para servir a isso em ampliação do racismo como justificação de privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas, como Clóvis Moura descreve bem. Com isso, a colonização como programa das novas classes dominantes e o racismo remodelado desenvolve uma combinação histórica que impossibilita a compreensão marxista de luta de classes separada da luta racial, afinal a classe explorada do Brasil tem na base piramidal os povos arrancados das Áfricas e esmagados na “nova terra”.
Na base econômica do Brasil colônia, a produção teve um destaque rotatório que influenciou no desenvolvimento urbano e civilizatório. O primeiro estado criado, a Bahia, tinha no açúcar a sua matéria base no modelo plantation. Recorria obviamente à mão-de-obra escrava. Salvador, capital baiana, é a cidade mais negra fora d’África. Na Amazônia, a ocupação desenfreada ditada nos moldes do desenvolvimento, das missões jesuíticas ao advento do ciclo da borracha demonstrou o caráter desenfreado de exploração de mão de obra escrava, seja indígena ou negra africana. Durante a exploração do ouro nas Minas Gerais, a “corrida do ouro” fez com que a disputa pela exploração e trabalho do ouro se desse por outros grupos não-negros e não-nativos, os tropeiros imigrantes é um exemplo. O modelo colonial já começava a sofrer tremores maiores com as lutas travadas internas e a auto-organização do povo escravizado, além de idealistas brancos com outros interesses que raras as vezes se encontravam. O surgimento de vários Quilombos e a fortificação de muitos outros, figuras símbolos de resistência como Dandara e Zumbi dos Palmares já eram conhecidas e reivindicadas como exemplos da luta negra organizada no país e muitas revoltas como A Revolta da Cabanagem, protagonizada por negros e indígenas insatisfeitos com o governo regencial e com a intensa exploração na província do Grão-Pará, e a Revolta dos Malês em 1835 em Salvador foram marcas de um bruto período de resistência diária de um povo vítima da pior exploração possível. Todos esses antecedentes preparam a nossa libertação, mas não foram suficientes para impedir que a Lei Áurea de 13 de Maio de 1888 tenha sido o “fim da escravidão”, mas a continuidade de nós na parte de baixo da pirâmide, como aqueles que não tinham direitos ou que precisávamos vender os poucos conquistados para comer e viver.

 
O PÓS-ABOLIÇÃO: SAÍMOS DAQUI E FOMOS PARA ONDE?

Durante a abolição da escravidão no Brasil, a capital já era o Rio de Janeiro, a mesma cidade que hoje passa por uma situação radical de violência com raiz no racismo proibicionista das drogas e no modelo urbano segregacionista. A Lei Áurea não incluiu o negro no desenvolvimento acelerado e não o orientou a integrar-se no trabalho assalariado, não por simples erro construtivo da Lei, mas por abertura dominante a permitir que o racismo continuasse como justificativa de exploração. Em “A integração do negro na sociedade de classes” Florestan Fernandes afirmou:

“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (…) Essas facetas da situação (…) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”.
Este é um dos aspectos mais importantes, mas não devemos desconsiderar a periferização da população negra urbana em contrapartida à aceleração industrial e arquitetônica, à criminalização cultural, à negação de serviços e a direitos básicos, à perseguição violenta com recursos do Estado, à continuidade da difusão ideológica de dominação a partir também das teorias de branqueamento, etc. No Pós-Abolição fomos para uma situação de abolicionados e serviência a uma propaganda da abolição que não era destinada a nós, afinal estávamos muito ocupadas e ocupados tentando sobreviver.
130 ANOS DEPOIS…
No final do ano passado, foi divulgado um levantamento feito pelo Ministério da Justiça do Brasil que apresentava uma informação sobre o sistema carcerário brasileiro: somos a terceira maior população carcerária do mundo. Multiplicamos oito vezes em 26 anos e temos o dobro de presos em relação a vagas reais nas penitenciárias. Um mês antes, levantamento feito pelo Fórum de Segurança Pública trazia o dado de que 71% das vítimas de homicídios no Brasil são negros. Em dezembro, o Anuário do Fórum de Segurança Pública também trazia que o número de negros mortos por policiais é o dobro de brancos, e mesmo do lado da polícia, os que mais morrem são negros (223, contra 171 brancos e 179 não identificados). O encarceramento de mulheres brancas caiu, o de mulheres negras cresceu. A taxa de escolarização das mulheres brancas é de mais de 20%, a de mulheres negras é menor que 10%. Por que todas essas estatísticas apontam contra nós? O argumento de proporcionalidade numérica não dá conta, porque nas estatísticas positivas não somos nós que estamos no topo! Por que não são pessoas negras que ocupam o posto das pessoas mais ricas do país, mas são homens brancos.
Em momentos de intensificação de crises econômicas do capital, os do andar de cima, que não abrem mão de suas parcelas de lucro, acirram a retirada de direitos e a exploração dos de baixo. A base piramidal da sociedade se enlarga para sustentar a fatia gorda dos de cima. Encaramos medidas como a Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização e Reforma da Previdência. Nós que já somos maioria no mercado informal, somos jogados ainda mais para os piores postos de trabalho. Cresce o número de moradores de rua, de adoecimentos da mente, de vendedoras de doces e lanches e até de universitários desempregados, a maioria de regra tem uma cor. O Nordeste é a região com maior número de desempregados e o Norte vem logo após. A Bahia em agosto de 2017 foi o estado com estatísticas mais cruéis, apontou o IBGE. No Pará, estado com a maior população autodeclarada negra do Brasil, Belém padece como a capital com maior proporção de pessoas vivendo em periferias no país, e uma das mais perigosas do mundo, reflexo óbvio do quanto a pobreza nesse país tem cor. A realidade é mais dura para quem é negro no Brasil, ainda ocupamos os lugares mais ínfimos da sociedade, os espaços políticos ainda são de maioria branca, as Universidades – mesmo com a política de cotas – são espaços de hegemonia branca, e a permanência do estudante negro e pobre na academia não é amparada pelas tímidas políticas afirmativas. A mentalidade escravagista domina a sociedade brasileira, após a abolição da escravidão os negros brasileiros ainda continuam tendo uma vida muito difícil, sem acesso aos equipamentos da cidade, morando nas periferias, que cada vez mais longes do centro, se tornam reduto da ausência do Estado. Em 2018, completamos 130 anos da abolição da escravidão no Brasil, mas o racismo ainda é a base programática do capitalismo. Para superá-lo é preciso, portanto, estratégias que revelem e derrubem o racismo junto com os muros econômicos e políticos da ordem.
POR UMA REVOLUÇÃO RACIAL
O Brasil neocolonial revestiu as facetas da colonial. Precisamos derrubar o radical desses dois e fazer do sufixo o nosso motim geracional! Precisamos recuperar a teoria de Florestan Fernandes, como foi bem desenvolvida em análise essa proposição pelo professor Maycon Bezerra em “O marxismo descolonial de Florestan Fernandes e a esquerda socialista do século XXI”, na organização da rebeldia constante e persistente da negritude sob os regimes sem servirmos de sustentação burocrática e passiva para a burguesia nacional e internacional. Sobre Florestan, Bezerra coloca:
“[…] Teoricamente, nunca aceitou o marxismo deformado pela ótica positivista da burocracia stalinista, nunca dissociou materialismo de dialética em sua compreensão do marxismo. Politicamente, nunca teve acordo com a estratégia de colocar os trabalhadores passivamente a reboque do desenvolvimentismo da “burguesia nacional”. Ainda quando julgou que a modernização burguesa da sociedade brasileira tivesse o potencial de levar o processo histórico além dos interesses restritos dos capitalistas […]”
Florestan Fernandes e muitos outros pensadores e pensadoras como Angela Davis são parte de um arsenal teórico que precisamos recorrer para pensar estratégias de organização da negritude no Brasil e no mundo. O Black Live Matter nos EUA segue sendo um grande exemplo no enfrentamento ao racismo no centro do imperialismo, onde a crise também é responsável pelo aumento da desigualdade. O número de moradores de rua nos EUA cresceu enormemente, em Los Angeles aumentou em 23% chegando a quase 60 mil. O país da maior população carcerária do mundo é também o país articulador de um programa racista mundial. Se como disse Angela Davis, não basta não sermos racistas, é preciso sermos antirracistas. Colocar essa máxima em prática é desenvolver a partir de elementos desiguais e combinados possibilidades de expor as feridas, de nos mantermos vivos e de construir a longo prazo uma saída. Partem de nossas tarefas: outra política de drogas, o fim dos antecedentes criminais que impossibilitam novos empregos, a luta contra as medidas de extinção de direitos trabalhistas e a organização de trabalhadores do mercado informal, da manutenção de cotas nas universidades e por uma real permanência estudantil, batendo de frente com os poderosos engravatados que assim como o reitor da USP afirmam que a universidade não é para a gente. Partem dessas tarefas sem perder o horizonte estratégico da fundação do new society, sem nunca perder a intrínseca relação classe, raça e gênero também como método de superação da velha esquerda que separa e acusa. É preciso muita coragem e ousadia e que as multidões sejam contaminadas pelo sangue de nossos ancestrais e pelo sonho de mudar a nossa realidade, algo que o sambódromo do Rio de Janeiro e o mundo acompanhou no desfile da Paraíso do Tuiuti no Carnaval deste ano e que precisamos colocar como tarefa nossa.

*Por Iago Gomes do Juntos! BA e Matheus Lisboa do Juntos! PA
 
Visto no: Juntos

17 novembro 2016


Em termos psíquicos, na pele se encontram as marcas que nos constituem enquanto pessoas. Seu revestimento narra as pancadas e as contusões, os direitos e os avessos, as feridas e as cicatrizes trazidas desde a totalidade do corpo até a unidade com alma. Por detrás de cada sinal, deixado por um adoecimento dermatológico, há uma história para se contar e, talvez, um conflito emocional a se resolver.“Nesse caso a pele revelaria no exterior o estado interior, pois ao mesmo tempo em que protege nosso meio interno, por meio de sua forma, textura, coloração e cicatrizes, ela o revela” [1, p.83]. Lá estão registradas sucessivas lutas, inúmeras vergonhas e orgulhosas conquistas.
Por meio da pele sentimos habitar em um corpo que é só nosso e de mais ninguém. Nela se cruzam os limites postos pela individualidade que alcançamos e pela coletividade que nos foi transmitida. No contato da pele experimentamos a nós mesmos e fazemos a experiência do outro. Ela atua diretamente na fronteira entre o ‘eu’ e o ‘não eu’ [2]. Muito do que somos hoje, inclusive para a formação do psiquismo [3], provém das sensações mais afetivas, bem como das percepções mais antigas, vivenciadas de maneira saudável ou patológica através da pele.
Já em termos fisiológicos, a pele é compreendida como uma membrana responsável por envolver a estrutura corporal. Além de abrangê-la, por inteiro, também tem a função de isolar os órgãos vitais, protegê-los de agentes patológicos, ao mesmo tempo em que cuida e regula a temperatura interna do corpo. Ela possui três extensas divisões de tecidos: a epiderme superficial, a derme intermediária e a hipoderme profunda [4]. Suscetível a tantos estímulos, “as ligações existentes com o sistema nervoso tornam a pele altamente sensível às emoções, independente da consciência. A pele expressa os sentimentos, mesmo quando não se está ciente deles” [5].
Hoje em dia, o saber psicológico e o conhecimento médico têm se integrado, a partir de um trabalho multidisciplinar e psicossomático, visando o entendimento das doenças que se manifestam na pele, mesmo sem uma causa orgânica visível. Não raro os próprios dermatologistas encaminham os seus pacientes para a avaliação psicológica. Nesses atendimentos deve-se evitar toda espécie de psicologização, isto é, a defesa de que as doenças cutâneas são de origem estritamente emocional.
Afinal, nem todo adoecimento é psíquico. Mas, uma grande parcela é provocada por estados mentais conflituosos [4, p. 72, 481-482]. Cabe destacar aqui o bonito trabalho dos psicólogos que acompanham mães de recém-nascidos e crianças com patologias na pele. Isso porque “Crianças […] podem tornar-se inábeis para lidar com a ansiedade, podendo desencadear sintomas na pele quando estressadas, cuja profundidade é proporcional à profundidade do dano psíquico” [6]. Se a compreensão já é difícil para um adulto, quanto não será para os menores.
Tanto o corpo (do grego sôma) quanto à alma (do latim anima) falam da nossa unidade primeira. O que ocorre em uma dimensão tem consequência direta sobre a outra. Tal totalidade pode ter sido rompida pelos embates da vida, a ponto de nos deixar fragmentados e adoentados. Logo, alguns pacientes trarão na pele as marcas de uma relação possessiva da qual tiveram que se libertar, enquanto outros testemunharão no corpo as feridas do abandono e da separação, como por exemplo, em situações de luto, no término de um namoro, na condução de um divórcio, no processo de adoção e até no aparecimento de outras doenças. De uma maneira bastante precisa “a pele lesionada parece representar esse rasgo, esse corte marcadamente simbólico da ruptura com o outro fusionado, necessária para a continuidade do desenvolvimento psíquico saudável” [2, p. 185].
Muitas dessas afecções possuem uma íntima relação com conflitos emocionais negados ou reprimidos por anos afins. São as chamadas psicodermatoses. Os termos técnicos têm ares de difíceis. Entretanto, a maior dificuldade está no dia a dia dos pacientes, cujo sofrimento atua sob a forma concreta da Dermatite Atópica, do Vitiligo, da Psoríase, do Lúpus, do Herpes, dentre outras patologias. As terríveis inflamações, as repetidas coceiras, as decorrentes ardências e os constantes pruridos “não deixam retocar a impressão excessivamente honesta que a pele transmite” [7].
A pele é o maior órgão do corpo humano. Sua funcionalidade também se remete à contenção. Em determinadas ocasiões, ela também passa a repelir as repetidas invasões dos agentes externos. Engana-se quem os pensa apenas como vírus ou bactérias. Muito além disso, podem ser também os considerados bisbilhoteiros, os denominados abelhudos e os sabidos curiosos de plantão. Por esse motivo, os pacientes acometidos por transtornos dermatológicos dão a merecida importância aos espaços que precisam ser respeitados, aos limites que não deveriam ser ultrapassados e ao alcance que os demais terão sobre suas existências.
Tem coisas que não adianta explicar. Às vezes, é desgastante por demais fazer-se compreender. Alguns não vão entender mesmo a utilização de roupa comprida para esconder as cicatrizes das feridas passadas. O que para eles soa como estranho, para os doentes ressoa como proteção. Outros podem não perceber o porquê do isolamento no quarto, em especial, nos dias de crise aguda, quando a vermelhidão, a inflamação e a escamação parecem ter vida própria ao se alastrarem pelo corpo. Questionarão até mesmo o motivo de tanta coceira como se ela fosse uma questão de simples escolha. Talvez, a incompreensão venha do desconhecimento da doença e de estarem distantes da angústia sentida pelos psicodermatos.  
Chega um período em que a pele adoecida clama por solução. Chega um momento em que a irritabilidade pede para ser trabalhada. Chega uma estação em que a imagem corporal, outrora distorcida pela doença, solicita pela reconciliação com o próprio corpo. É chegada, então, a hora de diminuir as defesas. Junto do tratamento dermatológico, o acompanhamento psicológico é fundamental. As feridas das lesões e a expansão das despigmentações tendem a ser amenizadas à medida que elaboramos o que não havia sido elaborado e verbalizamos o que havia sido silenciado. Damos um sentido à dor: simbolizando-a! A doença dermatológica não é de todo ruim. No fim, “não é ela que é curada, mas ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la” [8]. Que ela possa, então, contribuir com o desenvolvimento psíquico que nos impulsiona para a vida.

Paulo Crespolini – Psicólogo – CRP 06/132391
Graduado em Filosofia e pesquisador em Psicologia Analítica.
Textos profissionais: facebook.com/conflitopsiquico

REFERÊNCIAS
[ 1 ] Sant’Anna PA, Giovanetti RM, Castanho AG, Bazhuni NFN, La Selva VA. A expressão de conflitos psíquicos em afecções dermatológicas: um estudo de caso de uma paciente com vitiligo atendida com o jogo de areia. Psicologia: Teoria e Prática. 2003;5(1):81-96.
[ 2 ] Jorge HZ, Ludwig MDB, Muller MC. A pele como órgão de relação e suas implicações no desenvolvimento psicológico. Werlang BSG, Oliveira MS, organizadoras. Temas em Psicologia Clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2006, p. 183-190.
[ 3 ] Souza CGP, Sei MB, Arruda SLS. Reflexões sobre a relação mãe-filho e doenças psicossomáticas: um estudo teórico-clínico sobre psoríase infantil. Boletim de Psicologia. 2010;60(132):45-59.
[ 4 ] Rivitti EA. Manual de Dermatologia Clínica de Sampaio e Rivitti. São Paulo: Artes Médicas; 2014, p. 1-14, 72, 481-482.
[ 5 ] Silva JDT, Muller MC. Uma integração teórica entre psicossomática, stress e doenças crônicas de pele. Estudos de Psicologia. 2007;24(2):247-256.
[ 6 ] Silva AK, Castoldi L, Kijner LC. A pele expressando afeto: uma intervenção grupal com pacientes portadores de psicodermatoses.
[ 7 ] Dahlke R. A doença como linguagem da alma: os sintomas como oportunidades de desenvolvimento. Pignatari D, tradutor. São Paulo: Cultrix; 1992, p. 55.
[ 8 ] Jung CG. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes; 2000, p. 160-161.