Mostrando postagens com marcador Religião. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Religião. Mostrar todas as postagens

28 março 2018



Na Antiguidade, a imagem se inseria, ainda mais profundamente que a escrita, na vida cotidiana, recontando narrativas míticas e familiarizando seus integrantes uns com os outros através de representações de situações idealizadas e vivenciadas. A visão da nudez, mesmo em imagem, por estar sempre pronta a despertar emoção erótica, parece dificilmente compatível com a suposta pureza da contemplação estética. Mas, sem dúvida, sem o poder de Eros, não haveria nem escultura, nem pintura. O interesse tão especial dispensado na arte à nudez do corpo humano é complexo, logo, impuro: para aqui convergem todos os instintos elementares, todas as pulsões obscuras, assim como todos os subterfúgios e todo o sucesso da sublimação. É por isso que o Nu é o tema artístico por excelência: motivo de fervor, oportunidade de entusiasmo e, às vezes, em certos casos cruamente realistas, sujeito à compaixão, objeto de repulsa fascinada, símbolo de obscenidade.
Durante a Idade Média europeia, dizem, apenas nos banhos públicos era permitido se mostrar sem roupa. Em qualquer outro lugar, nada de nudez. Não podia ser vista em lugar nenhum, nem mesmo na pintura. Quase que nada na escultura. A responsabilidade por esta privação costuma ser atribuída ao cristianismo. Ao contrário do paganismo helênico e romano que a precederam, esta religião, rigorosa e obstinada, pregou por mais de mil anos a depreciação do corpo, o desprezo pela carne e a proscrição da nudez. Tal é a reputação que lhe foi atribuída, e há, certamente, alguma verdade nesta ideia geral. Quando o homem e a mulher aparecem nus em certas representações medievais, pois isso acontece, percebemos que se sentem extremamente constrangidos. A nudez, nessa época, é antes de tudo a dos nossos primeiros antepassados, disformes, dignos de pena, depois do pecado. Em seguida, vem aquela dos condenados, que vemos cair no Inferno por ocasião do Juízo final. O corpo sem vestes é patético: corpo vergonhoso de Adão e Eva, corpo atormentado dos malditos; ou, então, o corpo supliciado do Cristo, e os corpos torturados, de vários modos, dos mártires. Não simplifiquemos: existe também, podia existir, nesses tempos austeros, uma nudez feliz, sinal de inocência, a gozar, com toda a candura, dos benefícios inauditos do paraíso terrestre. Mas a desgraça é sempre iminente. Como a Europa olhava para alhures de forma completamente exótica – para não dizer “estranha” – franceses e holandeses que retratavam nossa terra e seus primeiros habitantes, pintavam-lhes sempre na presença de frutas, cestos, tartarugas e tatus. Coisas que o europeu não conhecia. Mas isso não era fator de burrice por parte dos homens brancos. Ao contrário: o retrato da miséria da terra brasilis estava agora ligado ao nu.
Nos tempos da Idade Moderna, podemos ressaltar as duas visões completamente opostas sobre esse assunto: a pureza\inocência – já que foi citada - e a pobreza\selvageria. Para falar do primeiro ponto, é necessário que se faça um levantamento das características do Renascimento Cultural. Sabe-se que o controle da produção cultural e o poder ideológico eram detidos pela Igreja Católica desde o medievo e norteavam a vida dos europeus. Por isso, os valores teocêntricos que exaltavam o poder de Deus, bem como os preceitos do catolicismo romano, sempre preponderaram as produções artísticas até então. Porém, a reformulação do pensamento artístico e científico trazida pela Renascença Italiana mudaram completamente os modelos de fazer arte. Ao retomarem os apegos artísticos greco-romanos, os renascentistas como Michelangelo, Da Vinci e Rafael Sanzio, decidiram pintar homens e mulheres de uma forma que pudesse representar a pureza e o caráter divino dos seres humanos. Por isso, em obras como Davi, o homem sempre era representado com um pênis pequeno, pois, se, baseados no antropocentrismo e no humanismo, o macho se aproxima ou até mesmo é sua própria divindade, por que dar um caráter bestial a algo tão sacro¿ Não era vergonha na época do Renascimento mandar um “nude” se você era “bisquí”. Era divino.
A Renascença também trouxe avanços científicos e, não se pode deixar de destacar, o consequente desenvolvimento das artes náuticas. Em 1415, Portugal se lança no tão temido “Além-Mediterrâneo” para descobrir novas terras e angariar novas fontes de riqueza para a Coroa. 22 de abril de 1500, a tão “desconhecida” Terra de Vera Cruz passa a ser explorada e antes mesmo que se chegasse à beira da praia, “seis ou sete homens nus, sem qualquer vergonha andavam por ali”, como escreveu Pero Vaz de Caminha em sua carta. Retomando pensamentos tidos como “neoplatônicos”, o bom e o belo se interligavam pela pureza dos corpos de uma comunidade que não conhecia a fonte dos pecados sexuais, exatamente por não terem cognição daquilo que educava o europeu. O “índio” por não conhecer os preceitos do povo cabralino e, mais tarde, anchietano, andavam nus o tempo inteiro porque eram inocentes. Puros...não, não. Aí já é demais. Manuel da Nóbrega, em tempos de catequese, pedia a seus superiores em cartas “panos para cobrir as vergonhas dos selvagens desta terra”. O erotismo e a sexualidade não eram colocados aí. Apenas a inocência e, consequentemente, pela ausência da tardia educação cristã-europeia, uma visão transformada do nu: receptáculos muito fáceis de forças diabólicas.
Pulemos para a ponte da contemporaneidade e das pós-modernidade. A mulher, paulatinamente, cresce dentro da sociedade e com isso vem seu empoderamento: o grito mais audível referente a tal assertiva é o quadro “A liberdade guiando o povo”, obra que retrata a Revolução Francesa. O sentimento de ser livre é associado a uma mulher mostrando os seios. Eu vejo isso como um “nude”, afinal o que é um nude senão algo que choca, excita, anima, traz risada ou, até mesmo, vergonha? Ver a liberdade representada por uma mulher que expunha os seios é tudo, menos, conservador para a virada do século XVIII-XIX. Era o maior exemplo de como se viver sem ninguém – Igreja, Estado ou qualquer outra instituição – dizer que roupa você deve vestir ou SE deve vestir. Mulheres...tão estigmatizadas desde Eva e, por isso, maquiadas por uma falsa máscara de subversão, quando na realidade, são revolucionárias. O século XX esteve aí para nos mostrar que, mesmo num mundo dividido pelas incertezas do capital e do social, lá estavam as mulheres queimando seus sutiãs, andando nuas e dizendo “we can do it!”. Embora, em alguns casos, não terem ateado fogo nas suas peças íntimas, que nude inflamável, hein? O corpo e o nu, mais uma vez, representavam assim o novo, o poder e a vontade mais que possível de serem livres de qualquer opressão.
E Bauman já nos fala dessa sociedade líquida da pós-modernidade, na qual as coisas são fluidas como água e que, para o bem ou para mal, são aproveitadas. Com esse mundo, vem os smartphones, as redes sociais e, em especial, o Snapchat. Dois, três, cinco ou até 10 segundos de provocação podem ser liberados com um nude. Muitos se escondem atrás da tela do celular, já outros, sequer precisam disso. O nu, para muitos, ainda é motivo de vergonha. Para outros, mandar um nude é algo natural, excitante, engraçado...e, porque não, libertador para um passo além das câmeras. Os modelos que pintam o corpo estão aí também para provar que a nudez pode ter suas diversas faces em ganhar o pão de cada dia, afinal, é necessário materializar os discursos e “meu corpo, minhas regras”. Meu nude, então, oras. “Não se tem muito o que falar da nudez nos tempos atuais, afinal é algo tão banal”, dizem. Sorte seria se essa nudez fosse ligada à inocência e não fosse fonte de suplantar, abusar e desvalorizar o próximo. E a sociedade brasileira acha que está acostumada com o corpo nu por causa dos avanços cibernéticos e o por conta do próprio nude em si. Coitados dos brasileiros. Não falamos nem em sair sem blusa por aí, mas no dia em que – e o problema é seu se você não aceita e tenta mascarar a realidade rasteira do seu país – meninas andarem mostrando apenas a barriga ou usarem um short não forem alvos de violação...o nude, então, será fichinha e algo completamente normal. Sem medos, sem vergonha, sem abuso, sem nada...ops! Nude.
Os nudes são estupendos, sob vários pontos de vista. De um modo geral, para cada flash acionado, uma parte da obra foi escolhida. Foi isolada, ampliada e os filtros são usados. Essa focalização inabitual faz surgir vários detalhes nunca vistos, vários aspectos nunca percebidos dessa maneira. Ele, o nude, cria, de certa forma, seu objeto. E mais, em certos casos, o fato de o olho ter se aproximado produz algo de perturbador. O olhar está muito próximo de uma carne doce e firme. Não se poderia estar mais próximo de uma carnação milagrosa. Prestes a tocar a pele nua. E o que vemos? Depende.
E aí...manda nudes?

21 fevereiro 2018


Muito se estudou e se conhece do período colonial no Brasil. A produção histórica de conhecimento é muito vasta e existe um arsenal enorme de informações sobre todo o período da colonização brasileira desde os livros didáticos, passando pelo desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas e chegando até os debates bancados pelos movimentos sociais e populares. Mas até onde filtramos essas informações ou, sem sermos contraditórios, nos colocamos na tarefa de aprofundar os impactos que mais de 60% de recorte histórico brasileiro deixou de cicatrizes em nossa estrutura? Como pensar a plataforma estruturada com a colonização e o regime de escravidão e massacre sob povos tradicionais e negros como base para formação de um país extremamente desigual? Estamos 130 anos após a Abolição da escravidão no Brasil e essas perguntas precisam ser base de debates políticos importantes se almejarmos pensar o país de hoje e onde chegamos. Um grande desafio, mas necessário. Os desfiles carnavalescos deste ano colocaram na ordem do dia o contexto. A Paraíso do Tuiuti deu um show e gritou: Não sou escravo de nenhum senhor!
A COLONIZAÇÃO, A ESCRAVIDÃO E A ABOLIÇÃO!
A expansão marítima moderna, como parte de uma articulação sistêmica e muito bem esboçada, foi o início de uma encruzilhada com novos povos, novas culturas e novos tipos de exploração. O interesse por áreas comerciais e a necessidade de fincar-se que o capitalismo tinha o fez recorrer ao método colonizador de dominação, que pode ser analisada sob diversos vieses: territorial, cultural, político e sobretudo econômico. Vieses estes que não são fragmentários, mas se relacionam de forma compactuada. O processo de expansão do capital tem, desde muito tempo, ditado a realidade do povo negro. A concretização do sistema mercantil do capitalismo, ainda na sua fase de estruturação, já mostrava que as benesses do capital sempre iriam se contrapor à população mais vulnerável. Em todos esses aspectos, a capacidade de transformação humana da natureza se fazia necessária, como parte elementar do próprio sistema capitalista. Em um período onde as grandes confusões com os novos métodos da classe em ascensão eram difundidas popularmente, cabia aos exploradores europeus voltarem todas as facetas criativas para justificar o plano de dominação. Com isso, as ciências e a religião, com grande influência civilizatória, passaram a ser justificativas menores para a dizimação de civilizações nativas e para escravização delas para subserviência de mão-de-obra. O processo de submissão de qualquer tipo de conhecimento que não seja o atrelado ao europeu- branco foi base para a consolidação do sistema escravagista brasileiro, a construção da estrutura do racismo se deu, milimetricamente, de forma institucional, e com o respaldo da ciência e da religião. O programa racista que interpela todos os vieses citados estava em vigor de forma muito mais profunda do que versículos bíblicos que justificam e tratados científicos que encorajam. A branquitude europeia incorporava o plano já nascido mesmo antes do próprio capitalismo e colocava suas cartas com muita violência e capacidade destrutiva. 1500 não é fruto de um acidente histórico, é uma trama engendrada globalmente com extrema capacidade dizimativa! Como disse MC Carol na música “Não foi Cabral”: “Ninguém trouxa família/Muito menos filho/Porque já sabia/Que ia matar vários índios/Treze caravelas/Trouxe muita morte.”
O conceito de “descoberta” utilizado em livros didáticos é eurocêntrico, porque além de forjado por aqueles que escreveram os livros serve a difusão de uma narrativa que esconde o programa, e só o esconde porque ele ainda está em vigor, não teve fim e alcança seus objetivos de forma a satisfazer os do andar de cima. A escolha por arrancar os povos africanos de seus territórios para utilizarem de mão de obra bebe no fato de exterminarem com nativos para facilitar a exploração e tomada de novos mundos e também porque o racismo foi forjado como arma ideológica de dominação global para servir a isso em ampliação do racismo como justificação de privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas, como Clóvis Moura descreve bem. Com isso, a colonização como programa das novas classes dominantes e o racismo remodelado desenvolve uma combinação histórica que impossibilita a compreensão marxista de luta de classes separada da luta racial, afinal a classe explorada do Brasil tem na base piramidal os povos arrancados das Áfricas e esmagados na “nova terra”.
Na base econômica do Brasil colônia, a produção teve um destaque rotatório que influenciou no desenvolvimento urbano e civilizatório. O primeiro estado criado, a Bahia, tinha no açúcar a sua matéria base no modelo plantation. Recorria obviamente à mão-de-obra escrava. Salvador, capital baiana, é a cidade mais negra fora d’África. Na Amazônia, a ocupação desenfreada ditada nos moldes do desenvolvimento, das missões jesuíticas ao advento do ciclo da borracha demonstrou o caráter desenfreado de exploração de mão de obra escrava, seja indígena ou negra africana. Durante a exploração do ouro nas Minas Gerais, a “corrida do ouro” fez com que a disputa pela exploração e trabalho do ouro se desse por outros grupos não-negros e não-nativos, os tropeiros imigrantes é um exemplo. O modelo colonial já começava a sofrer tremores maiores com as lutas travadas internas e a auto-organização do povo escravizado, além de idealistas brancos com outros interesses que raras as vezes se encontravam. O surgimento de vários Quilombos e a fortificação de muitos outros, figuras símbolos de resistência como Dandara e Zumbi dos Palmares já eram conhecidas e reivindicadas como exemplos da luta negra organizada no país e muitas revoltas como A Revolta da Cabanagem, protagonizada por negros e indígenas insatisfeitos com o governo regencial e com a intensa exploração na província do Grão-Pará, e a Revolta dos Malês em 1835 em Salvador foram marcas de um bruto período de resistência diária de um povo vítima da pior exploração possível. Todos esses antecedentes preparam a nossa libertação, mas não foram suficientes para impedir que a Lei Áurea de 13 de Maio de 1888 tenha sido o “fim da escravidão”, mas a continuidade de nós na parte de baixo da pirâmide, como aqueles que não tinham direitos ou que precisávamos vender os poucos conquistados para comer e viver.

 
O PÓS-ABOLIÇÃO: SAÍMOS DAQUI E FOMOS PARA ONDE?

Durante a abolição da escravidão no Brasil, a capital já era o Rio de Janeiro, a mesma cidade que hoje passa por uma situação radical de violência com raiz no racismo proibicionista das drogas e no modelo urbano segregacionista. A Lei Áurea não incluiu o negro no desenvolvimento acelerado e não o orientou a integrar-se no trabalho assalariado, não por simples erro construtivo da Lei, mas por abertura dominante a permitir que o racismo continuasse como justificativa de exploração. Em “A integração do negro na sociedade de classes” Florestan Fernandes afirmou:

“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (…) Essas facetas da situação (…) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”.
Este é um dos aspectos mais importantes, mas não devemos desconsiderar a periferização da população negra urbana em contrapartida à aceleração industrial e arquitetônica, à criminalização cultural, à negação de serviços e a direitos básicos, à perseguição violenta com recursos do Estado, à continuidade da difusão ideológica de dominação a partir também das teorias de branqueamento, etc. No Pós-Abolição fomos para uma situação de abolicionados e serviência a uma propaganda da abolição que não era destinada a nós, afinal estávamos muito ocupadas e ocupados tentando sobreviver.
130 ANOS DEPOIS…
No final do ano passado, foi divulgado um levantamento feito pelo Ministério da Justiça do Brasil que apresentava uma informação sobre o sistema carcerário brasileiro: somos a terceira maior população carcerária do mundo. Multiplicamos oito vezes em 26 anos e temos o dobro de presos em relação a vagas reais nas penitenciárias. Um mês antes, levantamento feito pelo Fórum de Segurança Pública trazia o dado de que 71% das vítimas de homicídios no Brasil são negros. Em dezembro, o Anuário do Fórum de Segurança Pública também trazia que o número de negros mortos por policiais é o dobro de brancos, e mesmo do lado da polícia, os que mais morrem são negros (223, contra 171 brancos e 179 não identificados). O encarceramento de mulheres brancas caiu, o de mulheres negras cresceu. A taxa de escolarização das mulheres brancas é de mais de 20%, a de mulheres negras é menor que 10%. Por que todas essas estatísticas apontam contra nós? O argumento de proporcionalidade numérica não dá conta, porque nas estatísticas positivas não somos nós que estamos no topo! Por que não são pessoas negras que ocupam o posto das pessoas mais ricas do país, mas são homens brancos.
Em momentos de intensificação de crises econômicas do capital, os do andar de cima, que não abrem mão de suas parcelas de lucro, acirram a retirada de direitos e a exploração dos de baixo. A base piramidal da sociedade se enlarga para sustentar a fatia gorda dos de cima. Encaramos medidas como a Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização e Reforma da Previdência. Nós que já somos maioria no mercado informal, somos jogados ainda mais para os piores postos de trabalho. Cresce o número de moradores de rua, de adoecimentos da mente, de vendedoras de doces e lanches e até de universitários desempregados, a maioria de regra tem uma cor. O Nordeste é a região com maior número de desempregados e o Norte vem logo após. A Bahia em agosto de 2017 foi o estado com estatísticas mais cruéis, apontou o IBGE. No Pará, estado com a maior população autodeclarada negra do Brasil, Belém padece como a capital com maior proporção de pessoas vivendo em periferias no país, e uma das mais perigosas do mundo, reflexo óbvio do quanto a pobreza nesse país tem cor. A realidade é mais dura para quem é negro no Brasil, ainda ocupamos os lugares mais ínfimos da sociedade, os espaços políticos ainda são de maioria branca, as Universidades – mesmo com a política de cotas – são espaços de hegemonia branca, e a permanência do estudante negro e pobre na academia não é amparada pelas tímidas políticas afirmativas. A mentalidade escravagista domina a sociedade brasileira, após a abolição da escravidão os negros brasileiros ainda continuam tendo uma vida muito difícil, sem acesso aos equipamentos da cidade, morando nas periferias, que cada vez mais longes do centro, se tornam reduto da ausência do Estado. Em 2018, completamos 130 anos da abolição da escravidão no Brasil, mas o racismo ainda é a base programática do capitalismo. Para superá-lo é preciso, portanto, estratégias que revelem e derrubem o racismo junto com os muros econômicos e políticos da ordem.
POR UMA REVOLUÇÃO RACIAL
O Brasil neocolonial revestiu as facetas da colonial. Precisamos derrubar o radical desses dois e fazer do sufixo o nosso motim geracional! Precisamos recuperar a teoria de Florestan Fernandes, como foi bem desenvolvida em análise essa proposição pelo professor Maycon Bezerra em “O marxismo descolonial de Florestan Fernandes e a esquerda socialista do século XXI”, na organização da rebeldia constante e persistente da negritude sob os regimes sem servirmos de sustentação burocrática e passiva para a burguesia nacional e internacional. Sobre Florestan, Bezerra coloca:
“[…] Teoricamente, nunca aceitou o marxismo deformado pela ótica positivista da burocracia stalinista, nunca dissociou materialismo de dialética em sua compreensão do marxismo. Politicamente, nunca teve acordo com a estratégia de colocar os trabalhadores passivamente a reboque do desenvolvimentismo da “burguesia nacional”. Ainda quando julgou que a modernização burguesa da sociedade brasileira tivesse o potencial de levar o processo histórico além dos interesses restritos dos capitalistas […]”
Florestan Fernandes e muitos outros pensadores e pensadoras como Angela Davis são parte de um arsenal teórico que precisamos recorrer para pensar estratégias de organização da negritude no Brasil e no mundo. O Black Live Matter nos EUA segue sendo um grande exemplo no enfrentamento ao racismo no centro do imperialismo, onde a crise também é responsável pelo aumento da desigualdade. O número de moradores de rua nos EUA cresceu enormemente, em Los Angeles aumentou em 23% chegando a quase 60 mil. O país da maior população carcerária do mundo é também o país articulador de um programa racista mundial. Se como disse Angela Davis, não basta não sermos racistas, é preciso sermos antirracistas. Colocar essa máxima em prática é desenvolver a partir de elementos desiguais e combinados possibilidades de expor as feridas, de nos mantermos vivos e de construir a longo prazo uma saída. Partem de nossas tarefas: outra política de drogas, o fim dos antecedentes criminais que impossibilitam novos empregos, a luta contra as medidas de extinção de direitos trabalhistas e a organização de trabalhadores do mercado informal, da manutenção de cotas nas universidades e por uma real permanência estudantil, batendo de frente com os poderosos engravatados que assim como o reitor da USP afirmam que a universidade não é para a gente. Partem dessas tarefas sem perder o horizonte estratégico da fundação do new society, sem nunca perder a intrínseca relação classe, raça e gênero também como método de superação da velha esquerda que separa e acusa. É preciso muita coragem e ousadia e que as multidões sejam contaminadas pelo sangue de nossos ancestrais e pelo sonho de mudar a nossa realidade, algo que o sambódromo do Rio de Janeiro e o mundo acompanhou no desfile da Paraíso do Tuiuti no Carnaval deste ano e que precisamos colocar como tarefa nossa.

*Por Iago Gomes do Juntos! BA e Matheus Lisboa do Juntos! PA
 
Visto no: Juntos

O beijo do desenho “Star vs. as Forças do Mal”


Será que ninguém percebeu a cortina de fumaça que é o tal boicote proposto por Silas Malafaia à Disney? A melhor maneira de distrair a opinião pública de um fato é protagonizando outro.
Sinto-me tão ofendido com o beijo gay num desenho da Disney quanto com as travessuras do Pica-Pau ou com as maldades de Tom & Jerry. O que Silas Malafaia e seu séquito precisam entender é que a arte retrata a realidade. Há beijos entre pessoas do mesmo sexo nas ruas, nos shoppings, nos comerciais etc.
Se quisermos que nossos filhos sejam seres humanos menos preconceituosos e mais tolerantes, devemos, desde já, mostrar-lhes o mundo como ele é, com toda a sua diversidade. O que não podemos é colocá-los dentro de uma bolha, num mundo de faz-de-conta, pois quando crescerem não estarão preparados para as demandas da vida real.
Eu ficaria muito desapontado se soubesse que um filho meu participou de um bullying com um colega gay da escola. Mas me sentiria orgulhoso se soubesse que ele saiu em sua defesa. Na minha época de garoto, não havia este tipo de cena em desenhos. Em compensação, sempre houve muita violência. Entretanto, havia entre os garotos da escola a prática conhecida como “meinha”, na qual trocavam favores sexuais, mesmo sendo héteros.
Apesar de estudar numa escola de orientação batista, cansei de flagrar colegas nesta prática no banheiro ou num terreno baldio nos fundos da escola. Mesmo tendo meus escrúpulos cristãos desafiados, eu evitava emitir qualquer juízo condenatório. Simplesmente, me afastava. Se houvesse algum colega gay, muitos implicavam, batiam e ainda por cima abusavam sexualmente dele. Isso era deplorável. Sua hipocrisia me enojava. Alguns desses algozes tinham pais cristãos.
Ora, se os pais não ensinam, a arte acaba preenchendo a lacuna. Não sou eu quem vai condenar um desenho animado pelo simples fato de apresentar um gesto afetuoso entre pessoas do mesmo sexo.
E por falar em homossexualidade, deixando o moralismo hipócrita de lado, como a Bíblia realmente trata a questão?
PUBLICIDADE
Você se considera tímido? Então, responda-me com sinceridade: como se sente ao saber que os tímidos encabeçam a lista dos que passarão toda a eternidade sendo torturados no inferno? Pelo menos é o que lemos em Apocalipse 21:8.
Confira: “Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos que se prostituem, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte.”
Quando postei esta pergunta em meu perfil no facebook, a primeira resposta que obtive foi: “Sinto q se eu n for p o inferno de um jeito, vou de outro…rs”
Obviamente que esta resposta bem humorada está baseada na crença de que ir ou não para o inferno tenha a ver com o fato de constar de uma lista. Se depender exclusivamente disso, seria aconselhável dar uma checada noutras listas apresentadas nas Escrituras:
“Mas, ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira.”Apocalipse 22:15
E então, escapou desta? Você se considera um “cão”, seja lá o que isso signifique? Pratica feitiçaria? Anda se prostituindo por aí? Já matou alguém? Possui ídolos? Se prostra perante eles? Conta uma mentirinha de vez em quando? Não!? Tem certeza? Ok. Digamos que desta você escapou por pouco. Mas não termina aí. Vamos à próxima lista?
“Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.”

1 Coríntios 6:9,10

A coisa agora começou a apertar pra você, não? Já está até suando frio, hein? Mas que bom que você não é o que se poderia chamar de devasso, muito menos de adúltero… quer dizer, desde que não leve em conta aquela estória de que basta uma olhada para a mulher alheia e você já adulterou com ela…
Mas, tudo bem, né? Ninguém é de ferro. Mas pelo menos, você não é GAY! Isso mesmo! Tudo, menos isso. Você pode até ser um maldizente (vulgo, fofoqueiro), mas não anda por aí desmunhecando. Quer saber… Deus nem vai se importar com os outros itens da lista. Desde que você não seja gay.
Está vendo como a gente trata logo de arrumar uma desculpa para salvar nossa pele? O importante é garantir que você esteja dentro e não fora, incluído e não excluído dos VIP’s que herdarão o reino dos céus.
É relativamente fácil dar uma manipulada quando nossas vicissitudes se encontram perdidas entre tantas outras. Parecem ser apenas detalhes que passam despercebidos. Mas aquela lista de Apocalipse é intragável. Pelos simples fato de ser encabeçada por uma vicissitude que julgamos ser trivial. Sete em cada dez pessoas se consideram tímidas. E agora?
Já sei. Há uma saída! Vamos vasculhar o texto em seu idioma original. Quem sabe a palavra “tímido” tenha outro significado. Talvez assim, a gente consiga salvar a pele de muita gente, inclusive a nossa.
Depois de uma breve pesquisada, a gente descobre que a palavra traduzida por “tímido” naquela passagem é ‘deilos’, encontrada em outros dois textos do Novo Testamento. Vamos dar uma conferida neles para ver se a gente escapa da lista?
Ambas as passagens relatam o episódio em que Jesus socorreu os Seus discípulos numa tempestade que quase os levou ao naufrágio (Mt.8:26, Mc.4:40). “Por que sois tão tímidos? Ainda não tendes fé?”, repreendeu-os Jesus. Concluímos daí que a tal timidez de que fala Apocalipse deve estar ligada à falta de fé. Não é o nosso caso, não é mesmo? Quer dizer… pensando bem, houve momentos em nossa caminhada em que nos intimidamos diante das circunstâncias.
Ser “tímido” não teria a ver com ser introspectivo, calado, ter pavor de falar em público, e sim com sentir-se intimidado diante de uma situação. Então, sinto em lhe informar que por mais que nos desdobremos para fazer uma exegese que livre a nossa cara, estamos todos numa situação delicada. Então, que tal colocar tudo isso na conta da misericórdia divina? Se Jesus pôde sair em socorro daqueles discípulos, certamente se compadecerá de nós e não nos deixará de fora.
Concordo plenamente. Só não concordo quando usamos duas medidas. Uma para livrar nossa pele, e outra para condenar os que consideramos indignos de desfrutar da mesma salvação. Esquecemo-nos de que estamos todos no mesmo barco, enfrentando a mesma tempestade. Somos humanos. Falíveis. Vulneráveis. Desesperadamente carentes da graça de Deus.
Reparou que numa das listas que apresentei acima encontramos os “efeminados” e “sodomitas”? É baseada nesta lista que afirmamos com convicção de que homossexuais são indignos de serem alcançados pela mesma graça que nos alcançou.
Que tal sermos honestos para fazer o mesmo tipo de exegese que fizemos para tentar salvar a pele dos tímidos?
O termo grego traduzido por “efeminados” é “malakoi”, que pode ser literalmente traduzido como “mole”, “macio”, “suave ao toque” (algo como “molengão”). Alguém sem fibra, que se entregava facilmente diante de uma situação de pressão. Em época de implacável perseguição contra os cristãos, o mínimo exigido de um seguidor de Cristo é que fosse firme. O termo “malakoi” aponta para uma inaceitável fraqueza de caráter.
Por que traduziram este termo como “efeminado”? Porque nas culturas antigas, a feminilidade era vista como sinônimo de fragilidade. Seria mais ou menos como dizer a um filho hoje em dia: Seja homem! Não seja uma mulherzinha! É óbvio que o objetivo de quem usa tal expressão não é diminuir o valor da mulher, mas encorajar o filho a portar-se varonilmente.
Dicionários teológicos associam malakos (singular de “malakoi”) a um homem afeminado, mas reconhecem que o termo pode significar pessoas promíscuas, isto é, dadas aos prazeres da carne, tanto homens, quanto mulheres. Porém, há estudos que relacionam malakoi com a prostituição masculina praticada na época de Paulo, principalmente em Corinto, cidade famosa por sua depravação sexual.
Já o termo “arsenokoitai”, traduzido como “sodomita” na versão de Ferreira de Almeida, só passou a se referir a prática homossexual a partir da Alta Idade Média. Etimologicamente, o radical linguístico “arsen” significa macho, enquanto “koitos” significa leito. Bem da verdade, “arsenokoitai” é um termo de significado obscuro, que não possui qualquer registro na literatura clássica grega. O que levou alguns a considerar tratar-se de neologismo do próprio Paulo.
Convém lembrar que há uma enorme quantidade de vocábulos do grego clássico usados para designar o comportamento homossexual, porém, Paulo não lançou mão de nenhum deles. Logo, podemos deduzir que o apóstolo estivesse falando de algo bem particular e não propriamente da homossexualidade. A Bíblia de Jerusalém, considerada uma das melhores traduções das Escrituras, traduz o termo “arsenokoitai” como “pessoas de costumes infames”.
É plausível crer que Paulo estivesse se referindo à prática da prostituição cúltica tão disseminada no império romano, onde homens, independentemente de sua orientação sexual, tinham relações tanto com pessoas do mesmo sexo, quanto com do sexo oposto, atribuindo a isso um valor devocional.
Festas religiosas como a dedicada a Dionísio, deus do vinho (conhecido também como Baco; daí o termo “bacanal”, festival de Baco) eram verdadeiras orgias, onde famílias inteiras se entregavam aos prazeres desenfreados da carne, julgando com isso estarem cultuando ao seu ídolo.
É também neste contexto de idolatria que Paulo expressa seu repúdio no primeiro capítulo de sua epístola aos Romanos, onde denuncia aqueles que, “dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis”(Rm.1:22-23).
Razão pela qual “Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos entre si; pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador”(vv.24-25). Repare que tudo começa na idolatria. Este é o contexto imediato. Como juízo, Deus os entrega a si mesmos, como se dissesse: É isso mesmo que vocês querem? Então, lá vai…
A partir deste ponto, Paulo descreve as tais “paixões infames” às quais Deus os abandonou.
“Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.” Romanos 1:26-27
Interessante notar que, se a interpretação que tem sido feita está correta, é a primeira vez que encontramos nas Escrituras qualquer menção à homossexualidade feminina. Em Levíticos 18:22 lemos sobre a proibição de homem deitar-se com outro homem como se fosse mulher, mas não vemos nada acerca da mulher que se relaciona sexualmente com outra. Acho que isso mereceria certa atenção. Porque se o assunto é, de fato, homossexualidade, então, não se poderia deixar de fora as mulheres. Há quem acredite que Paulo teria corrigido isso.
Será que Paulo estava falando de homoafetividade? Ou estaria falando de uma prática diretamente ligada à idolatria?
Imagine homens de orientação heterossexual mantendo relações homossexuais só para agradar a uma divindade pagã! Pois era justamente isso que acontecia naquela sociedade. Nada mais antinatural. Por isso, eles se embriagavam e usavam máscaras. A embriaguez era para tomar coragem e desafiar sua própria natureza.
A máscara era para proteger o anonimato, e assim, ajudá-los a lidar com a culpa e a vergonha. Não se tratava de homossexualidade propriamente, mas de orgia, de promiscuidade elevada ao mais alto grau. Seres humanos reduzidos a objetos de prazer. Tudo em nome do culto a uma divindade pagã.
Assim como é antinatural a um homem ter relações com outro homem, sendo ambos héteros, também é antinatural forçar um homossexual a casar-se com alguém do sexo oposto para suprir as expectativas da sociedade que prima pela hipocrisia.
Mas digamos que a exegese apresentada aqui não o tenha convencido. Você prefere crer que homossexuais estão fadados a serem punidos para sempre no inferno, desde que sua própria timidez seja alvo da misericórdia divina. Que tal se avançarmos um pouco na leitura de Romanos 1?
A severidade com que Deus julgará os idólatras, também julgará os que não se importaram de ter conhecimento de Deus (e aqui, o apóstolo mira sua metralhadora giratória para os judeus), que, mesmo não praticando tais coisas, aprovavam os que a praticavam (v.32).
Por isso, o mesmo Deus que entregou os gentios às suas próprias paixões, também os entregou “a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm; estando cheios de toda a iniquidade, fornicação, malícia, avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade; sendo murmuradores, detratores, aborrecedores de Deus, injuriadores, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais e às mães; néscios, infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia” (vv. 28-31).
E por falar em lista, sabe o que mais me chama atenção nesta em particular? O último item. De que adiantaria escaparmos de todas as listas apresentadas nas Escrituras, mas cairmos justamente no último item desta?
A falta de misericórdia nos faz inescusáveis perante Deus. Não foi à toa que Jesus disse que bem-aventurados são os misericordiosos, pois alcançarão misericórdia. Sinceramente, espero ser contado entre estes. Se tiver que pecar pelo excesso, que peque pelo excesso de misericórdia e não de juízo.
O objetivo de Paulo nos primeiros capítulos de Romanos é mostrar que todos somos farinha do mesmo saco. Judeus e gentios, héteros e homossexuais, homens e mulheres, só escaparemos do severo juízo divino se formos tão misericordiosos com os outros quanto somos condescendentes conosco mesmos. “Portanto”, arremata o apóstolo, “és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer se sejas, pois te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro” (Rm.2:1).
Quando vejo o sofrimento de milhões de seres humanos, reputados como escória pelo simples fato de serem gays, meu coração é tomado de misericórdia. Não me vejo à vontade diante de um discurso odioso, que, direta ou indiretamente, fomenta o preconceito. Quando recebo e-mails e mensagens in box de seres humanos dispostos a tirar a própria vida por não se aceitarem, ou por não conseguirem lidar com a pressão social, meu coração se enternece.

Foi o que senti ao assistir ao vídeo postado por Viviany Beleboni, a transexual que encenou a crucificação na Parada Gay em SP, que em prantos denunciou a agressão sofrida por alguém que a chamava de “demônio” e dizia “Você não é de Deus!” Com o olho roxo e feridas à faca abertas no rosto e no braço, Viviany lamentava o episodio. Como ela, muitos têm sido agredidos e até mortos por causa de sua orientação sexual. Espero que este singelo texto ajude a desarmar espíritos e conduzir-nos pelas sendas da compreensão, do amor e da misericórdia.
Visto no: DCM

20 fevereiro 2018


O que nos define como homem ou mulher? Há tempos as sentenças biológicas XX e XY eram responsáveis por responder essa questão. Hoje, porém, elas são vistas como limitadoras das nossas masculinidades e feminilidades. Por essa razão, falar na possibilidade de mexer nelas causa tanto alvoroço, sobretudo se levarmos em consideração a bifurcação menino-João-azul-carrinho para eles e, para elas, menina-Maria-rosa-boneca, defendida pelos mais conservadores. Entretanto, o mundo caminha em direção ao gênero neutro, focado não em limitar aquele pilar biológico, mas ampliá-lo. Trata-se de repensar todos os valores culturais aprisionados aos gêneros existentes, dando a eles outras experimentações possíveis. No Brasil, contudo, onde tudo parece nos colocar sempre a um passo atrás do resto do mundo, isso será de grande valia, se levarmos em conta tantas perdas geradas pelo nosso atual modelo sócio-econômico-educacional e político, responsável por reduzir humanos às genitálias.

Os que torcem o rosto para essas mudanças têm bons motivos para fazê-lo, afinal de contas, manter a hegemonia vigente é assegurar a permanência dos lucros. Lojas de departamentos de moda, brinquedos, enxoval, por exemplo, faturam muita grana com a categorização dos gêneros que resvalam das genitálias. As cores, os modelos de roupa, cortes de cabelo e demais apetrechos, se tornam elementos indispensáveis aos país ávidos por enquadrar seus filhos num ideal de gênero aceito pela maioria. O que não seria errado, caso o debate de gênero estivesse presente nas discussões familiares desde sempre. Como não é isso que ocorre, sem perceber, muitos de nós, ao naturalizar que menino é assim e menina é assado, estamos contribuindo para a formação de práticas ou possíveis características machistas/homofóbicas/misóginas dessas crianças no futuro.  Além de retirar da infância a curiosidade que lhe é peculiar, ao permitir que garotos brinquem com boneca e garotas de futebol, sem serem repreendidos por essas experiências.

O não enfoque em torno do gênero sufoca todas aquelas masculinidades e feminilidades fora do que é esperado pela sociedade “macho alpha e fêmea gama”. Por exemplo, é bem possível ser um garoto-sensível-meigo-choroso, que usa rosa e seja fã do Liniker, sem precisar ser gay por conta disso. Mas, como falta uma discussão educacional sobre isso, crianças/jovens com esse perfil são hostilizadas na vida escolar, ignoradas por professores-coordenadores-diretores, indo de traumas ao longo da vida ou ao suicídio na adolescência. Ou seja, o tão famigerado bullying poderia ser evitado com práticas educacionais a frente do seu tempo, da mesma forma que a evasão escolar motivada por esse tipo de preconceito. Porém, se a sociedade não é democrática, a escola tão pouco o é. Os Planos Nacionais de Educação retiraram as pautas ligadas a questão de gênero, identidade, sexualidade, até de partes da Lei Mº da Penha, pois políticos religiosos cristãos – sempre eles – disseram que esses temas são desconhecidos da sociedade. E, pelo visto, continuarão sendo, já que a escola, espaço voltado para disseminar as atuais mudanças sociais, é vedada de exercer esta função.

 Mais inflamada fica a discussão quando se traz a público a liberdade familiar/pessoal de criar, ou se autodeclarar, um ser não-binário, agênero, gênero fluido, etc. Definitivamente é o apocalipse na terra. Se já é nebuloso se afirmar de alguma forma na sociedade, imagina então não se enquadrar no que é esperado pelo sistema? Talvez foi isso o que tenha acontecido com o bebê Ariel, quando os pais o batizaram com esse nome afirmando que, ao crescer, ele decidiria se seria menino ou menina. Rapidamente muitos internautas repudiaram a atitude do casal, que depois de várias ameaças, tiveram que retirar a reportagem do ar. A demanda central agora não estava naquela criança, mas na afronta contida no nome Ariel e sua nítida unisexualidade. Em outras palavras, a interferência no batismo da criança fomentou a revolta popular, a qual teria menor proporção se o garoto recebesse os nomes mais esperados para o seu “gênero”. É a linguagem a serviço da discriminação. Felizmente, há mudanças ocorrendo pelo mundo. Na Suécia se adotou o pronome pessoal “hen” para designar a neutralidade entre os gêneros. O Dicionário Oxford adotou desde 2015 o verbete Mx., uma variação para Mr. e Ms., senhor e senhora respectivamente. E o Brasil?

Por aqui a coisa é lenta, mas a nossa genialidade me faz nutrir uma faísca de esperança para o futuro. Isto porque, tenho um amigo, que nos momentos de descontração, criou o pronome pessoal “Êla” para designar aqueles colegas que não se veem dentro do que é e adotado como parâmetro para homem e mulher. Enquanto não há no país uma definição linguística para esta contenda, a internet tem elaborado construções neutras bem interessantes como “amig@s”. Quem sabe elas não sejam acopladas um dia pelo nosso idioma. Até lá, porém, o Brasil precisa avançar em outros quesitos para então pensar em uma nomenclatura oficial para este público. Entre as pendências, falta uma política voltada a igualdade de gênero semelhante ao que já ocorre em muitos países de primeiro mundo. O Fórum Econômico Mundial faz um relatório anual sobre essa temática e Islândia, Finlândia e Noruega ocupam o pódio entre as nações nesse sentido. A nossa pátria aparece numa posição vexatória, cuja menção nem é válida, fruto da ridicularização em torno da “ideologia de gênero”, termo criado por fundamentalistas para banalizar essa discussão.

Ao adiar o necessário debate sobre gênero, estamos tardando a resolução de problemas oriundos dos estereótipos construídos pela sociedade. Da mesma forma, estamos replicando humanos a partir de um único molde. Porém, a unisexualidade não veio para extinguir a espécie. Pelo contrário, sua aparição mostra o quão dinâmico, versátil, é a natureza humana, apesar dos rótulos encarcerarem nossa essência. Significa romper barreiras impostas por vários setores da sociedade e cobrar dos órgãos públicos a plena efetivação dos direitos individuais e coletivos. Diz respeito a planos educacionais mais amplos, humanísticos, antenados as transformações atuais. Pouparia crianças/adolescentes de inúmeros sofrimentos, constrangimentos e demais violências. Ajudaria a entender a sexualidade daqueles que não se identificam com o sexo biológico que nasceram. Como também aliviaria as dúvidas daqueles que têm sua sexualidade questionada apenas por ter comportamentos fora dos padrões. Diminuiria as relações abusivas, a hipersexualização do corpo feminino, a violência doméstica, o ato abortivo, a homofobia, a cultura do estupro, bem como outras violências que nascem da ausência da discussão de gênero. Macho e fêmea continuariam existindo, mas suas masculinidades e feminilidades seriam ampliadas a partir do momento em que alguém perguntasse: é menino ou menina? É um ser humano.

17 novembro 2016



A professora de psicologia Bruna Suruagy, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, fez 42 entrevistas para sua tese de doutorado Religião e política: ideologia e ação da“Bancada Evangélica’ na Câmara Federal”. Ouviu parlamentares da bancada evangélica (de 2007 a 2011), assessores e jornalistas.
Continuou acompanhando o movimento dos políticos evangélicos e o crescimento da bancada no Congresso. Em entrevista à Pública, Bruna explica como acontece a seleção dos candidatos dentro das igrejas, o esquema político das principais denominações pentecostais e o que querem os políticos evangélicos.
Como começou sua pesquisa sobre a bancada evangélica?
Meu objetivo era entender como se processava a articulação entre os discursos religiosos e políticos. Foi na legislatura de 2007 a 2011, que aconteceu logo após a CPI das Sanguessugas que apresentou alguns nomes de parlamentares evangélicos.

Na ocasião, a Igreja Universal retirou a candidatura de muitos parlamentares e o início da legislatura de 2007 foi bastante tenso por conta desse processo. Teve uma redução significativa da bancada. Na época eles estavam com 45 membros.
Quando os evangélicos passaram a se organizar politicamente?
Antes da década de 1990, já existiam vários parlamentares evangélicos, mesmo antes da Constituinte – muitos protestantes históricos e alguns pentecostais, mas não existia uma organização institucional da campanha desse grupo específico. Eram evangélicos que decidiam se candidatar e eventualmente recebiam o apoio de suas igrejas.

Claro que, embora independentes, havia na Câmara uma certa articulação em nome sobretudo da manutenção dos interesses e valores morais próprios desse grupo. Mas no início da década de 1990 a Universal passou a protagonizar a participação política entre os evangélicos e já começou atuando com um plano político. Ela criou uma forma de fazer política no sentido de quase atuar como partido.
Funciona assim: A cúpula da igreja, formada por um conselho de bispos da confiança de Edir Macedo, indica candidatos em um procedimento absolutamente verticalizado, sem a participação da comunidade. Os critérios para a escolha desses candidatos geralmente têm base em um certo recenseamento que se faz do número de eleitores em cada igreja ou em cada distrito. E cada templo, cada região, tem apenas dois candidatos, que seriam o candidato federal e o estadual.
Ela desenvolve uma racionalidade eleitoral a partir de uma distribuição geográfica dos candidatos e a partir de uma distribuição partidária dos candidatos. Isso mudou um pouco agora porque existe um partido que é da Universal, o PRB, que fica cada vez mais forte no Congresso.
Na época, havia uma distribuição por vários partidos para garantir a eleição. E são escolhidos bispos com um carisma midiático, que conduziram programas, radialistas e mesmo não bispos, mas figuras que se destacavam como comunicadores. Porque existe uma interface da mídia religiosa com a igreja e a política.
Não são parlamentares que se destacam na questão litúrgica como grandes estudiosos da Bíblia – até porque a tradição pentecostal está mais na produção de emoções e de momentos afetivos do que de fato na liturgia. Então os bispos e líderes religiosos que promovem essas catarses coletivas e demonstram esse carisma institucional são normalmente os escolhidos para candidatos. A Universal se tornou um modelo para outras igrejas porque a cada novo mandato havia um aumento significativo dos parlamentares da Universal.
A Assembleia de Deus, que hoje tem a maioria dos deputados, mas que não funcionava assim, passou a ter a Universal como modelo. Não atuando da mesma forma porque o funcionamento institucional é outro. A Assembleia é uma igreja com muitas dissidências e muitas divisões internas, por isso não é possível estabelecer hierarquicamente os candidatos oficiais. As igrejas têm fortes lideranças regionais e uma fragilidade do ponto de vista nacional.
A sede não tem tanta força e, por isso, eles criam prévias eleitorais. As pessoas se apresentam voluntariamente ou são levadas pela própria igreja e ainda há a ideia de que alguns são indicados por Deus porque mobilizam grandes multidões, ou contagiam, como dizia Freud, também termina sendo um critério.
Então tem uma lista, depois uma pré-seleção que passa por um conselho de pastores – isso em cada ministério [a Assembleia de Deus é uma igreja com muitas ramificações]. É interessante que os que pretendem se candidatar assinam um documento se comprometendo a apoiar o candidato oficial caso ele não seja escolhido.
Na Universal, como o poder é nacional, tem uma sede hierarquizada que consegue controlar a instituição, candidaturas independentes não acontecem. Até porque os parlamentares que foram eleitos com esse apoio institucional e que na segunda legislatura tentaram se candidatar de forma independente não ganharam as eleições.
A vitória está totalmente atrelada à instituição. Existe uma estratégia bem construída porque eles preveem uma fidelidade de 20%, que não é alta. A Assembleia de Deus está tentando construir essa fidelidade e essa unidade política que são extremamente difíceis devido a essa fragmentação interna. E faz as prévias nacionais com a participação de pastores e obreiros, novamente sem a participação da comunidade – não é um processo transparente.
No Congresso então você tem essas lideranças religiosas que demonstram uma maior habilidade na interlocução com o sujeito, um carisma que gera catarse, contágio, impacto afetivo e as lideranças que foram identificadas e constituídas pela igreja como nomes importantes para ocupar o cenário nacional.
A bancada evangélica é homogênea?
Na bancada evangélica no Congresso e também nas bancadas estaduais e municipais, você tem uma diversidade tão grande de integrantes que não dá pra pensar esse grupo como um bloco coeso, homogêneo. Muitos vêm representando a Assembleia de Deus e a Universal e algumas neopentecostais que tentam imitar essa estratégia, como, por exemplo, Sara Nossa Terra, de onde saiu o Cunha.
Você tem muitos parlamentares das chamadas protestantes históricas [batistas, presbiterianas, luteranas, metodistas] que têm uma candidatura totalmente independente porque não há um plano político já estabelecido dentro das igrejas. Eles simplesmente são evangélicos, mas a trajetória política geralmente não se dá dentro da igreja e não há uma vinculação direta ao exercício da fé.
Esses parlamentares gostam de dizer que separam bem a fé no âmbito privado da política na esfera pública. Mas é uma distinção contraditória porque eles tomam, sim, como referência algumas crenças e valores para orientar suas práticas parlamentares e votações como quando se discute aborto e homofobia, por exemplo.
Lembro que um parlamentar me disse na época em que fiz as entrevistas que não há como fazer uma separação absoluta porque um marxista, por exemplo, vai acabar se submetendo a essa orientação de consciência na hora de atuar. E que ele, como cristão, se submete a essa orientação de consciência.
Mas que vota orientado pela consciência, e não por uma filiação religiosa ou institucional específica. Então, nas protestantes históricas, não há essa presença ostensiva da instituição. A pentecostal, que traz consigo a teologia da prosperidade, que tem a presença do neoliberalismo, do conservadorismo institucional e moral, já tem essa coisa de práticas políticas fisiológicas e clientelistas.
É um grupo heterogêneo, mas os parlamentares pentecostais têm uma posição mais orientada pelas instituições religiosas. O mandato não é do parlamentar; é pouco do partido, é mais da instituição.
Isso já é combinado com relação aos temas que eles vão defender? “Te ponho lá mas você me garante que o aborto não sai!”
No começo, a gente tem a impressão de que a igreja interfere totalmente em tudo. Mas o Edir Macedo, por exemplo, é um líder muito complexo. Alguns parlamentares me contaram que ele determinou que eles precisavam ter uma formação política. Então eles frequentam cursos de formação política na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Alguns outros cursos são dirigidos para bispos e parlamentares da Igreja Universal. Eles disseram isso explicando que não iam totalmente despreparados.
“A gente tem uma formação, antes de vir tenta entender e conhecer.” O grande paradoxo da Universal é que no período eleitoral há uma mistura entre religião e política que é clara, não é velada. Ela se dá dentro do templo, o templo vira palco, o púlpito vira palanque político e as discussões pragmáticas sobre as eleições acontecem no púlpito. Tem toda uma pedagogia eleitoral que acontece dentro do templo. E no Parlamento eles tentam separar o discurso político do discurso religioso.
Na verdade, isso começou a ser exigido pela cúpula da Universal depois de aparecerem escândalos e irregularidades envolvendo parlamentares evangélicos. Na época, quem era o grande líder político era o Bispo Rodrigues, que era o braço-direito do Edir Macedo.
Depois dos escândalos do caso Waldomiro e do mensalão [que o levou à condenação a seis anos e três meses de prisão por lavagem de dinheiro], ele renunciou em 2005, perdeu o título de bispo e retiraram todas as candidaturas dos parlamentares justamente para não arranhar a imagem da igreja. Dizem que o Edir Macedo tem o privilégio de não participar desses momentos.
O templo vira palco, o púlpito vira palanque político e as discussões pragmáticas sobre as eleições acontecem no púlpito
Tem até um líder de outra igreja, o Robson Rodovalho, que é da Sara Nossa Terra, que se candidatou e se elegeu, que dizia que era muito difícil para ele como líder estar ali. Que para o Edir Macedo era muito mais fácil porque, se algum parlamentar fosse citado ou cometesse alguma irregularidade, ele simplesmente diria que não sabia de nada.
No caso dele, a igreja correria o risco de se enfraquecer. O que me chamou atenção quando fiz as entrevistas foi que nenhum tinha mais o título de bispo. Com os outros, eu começava sem perguntar nada sobre a religião, e eles mesmos em algum momento entravam nessa parte da fé. Já os parlamentares da Universal não falavam de Deus, era um discurso totalmente parlamentar.
Não mais progressista, mas eles queriam separar os processos. E, segundo um deles, o próprio Edir Macedo orienta os parlamentares a seguir as orientações do partido nas votações exatamente para que eles não tenham divergências e eventualmente percam as verbas públicas destinadas às emendas parlamentares.
Então qual é o grande interesse da Universal?
Quando as temáticas são institucionais, relacionadas a isenção fiscal, alvará de funcionamentos das igrejas, doações de terrenos, distribuição de concessão de rádios e TV, a transformação de eventos evangélicos em eventos culturais pra receber financiamento da Lei Rouanet, questões relacionadas à lei do silêncio. Aí eles atuam de forma articulada, como um bloco, convergem em nome desses interesses, como em relação a questões morais.
Com algumas diferenças, mas muitas aproximações. Alguns cargos dos gabinetes têm que ficar à disposição da igreja, que indica quem vai ocupar. É uma igreja pragmática, tem muito mais interesses institucionais do que morais. Se for analisar do ponto de vista moral, é muito mais flexível e aberta do que igrejas como a Assembleia de Deus. Essa, sim, tem um discurso de natureza moral além do institucional, de manutenção da ordem.
Quando há convergência nesses temas institucionais e morais, a bancada se articula. É importante salientar que poucas vezes você verifica a articulação desse bloco de forma totalmente coesa. Eles excluem a política nessa discussão de pauta dos parlamentares evangélicos para criar uma falsa aparência de unidade.
Muitas vezes a imprensa anuncia a bancada evangélica como um ser único, e para a bancada é muito interessante aparecer assim como um corpo único, um bloco suprapartidário…
E dizer “a bancada” convenientemente não dá nomes, né?
Exatamente, uma entidade com um poder e as divisões não aparecem. Mas no discurso desses parlamentares que estão à frente e que normalmente são os das igrejas pentecostais apresentam a bancada dessa forma. “A bancada decidiu”.
Eles se reúnem?
A mídia faz parecer que sim, mas não. Porque eles estão filiados a partidos e a movimentação na Câmara se dá por partidos. Eles ficam muito indignados com a falta de poder que têm, porque têm poder na igreja, mas a divisão por partido privilegia o alto clero.
Você tem alguns líderes partidários que definem as orientações e eles tem que seguir ou são punidos de alguma forma, principalmente não tendo as verbas públicas para realização das emendas parlamentares.
“Estou aqui mas não tenho muito poder de decisão, tenho sempre que obedecer partido, não tenho autonomia” eram reclamações constantes. Estou falando principalmente desse grupo pentecostal, que é o mais barulhento e que fala pela bancada, principalmente os assembleianos [da Assembleia de Deus]. Eles têm o Feliciano, o Cunha, o João Campos, que é o líder da Frente.
Engraçado que na época em que eu fiz a pesquisa o Eduardo Cunha era superinexpressivo como integrante da bancada evangélica. Mas eles se reúnem muito pouco, às vezes no dia do culto, quarta de manhã, fazem o ritual religioso e têm alguma discussão sobre projetos de lei e discussão de pauta.
O interessante é a atuação dos assessores. Eles acompanham os projetos diariamente, em uma tentativa de mapeamento dos projetos em tramitação e seleção dos mais importantes, projetos “anticristãos”. Você também tem uma distribuição dos parlamentares pelas comissões que eles consideram mais importantes como a de Seguridade Social, de Direitos Humanos, de Constituição Justiça e Cidadania. Aí eles vão tentando barrar a tramitação dos projetos.
Alguns mais ativos tentam conseguir posto de presidente ou relator. Você tem uma estratégia bem elaborada, mas não conta com uma participação tão ativa quanto parece. É uma bancada barulhenta, intempestiva, aguerrida, beligerante, e esse barulho cria a impressão de volume, de quantidade de poder, de coesão.
Acho que também é uma estratégia de parecer maior do que é pelo grito. Que é o que acontece nas próprias igrejas. As igrejas têm esse discurso de guerra, de combate. O exército da Universal que deixou todo mundo perplexo, mas isso sempre aconteceu, é o discurso de todas as igrejas. A convocação nas igrejas tem todo esse ritual bélico mesmo. E o soldado é aquele que está ali para obedecer e para combater. A bancada usa isso também.
Você valoriza o tamanho do adversário para convocar os integrantes. Mas eu ouvi muitos relatos de parlamentares que estavam acompanhando votações e que tinham poucos para impedir a continuação da votação. Aí o assessor ligava para a lista da FPE: “Esse é pró-vida, vou chamar”.
Aí liga: “Deputado, vem aqui, pede vista”. Eles têm uma assessoria que conhece os procedimentos regimentais e que orienta os parlamentares que muitas vezes não sabem nem o que está acontecendo ali. Tem uma disponibilidade em participar quando convocados e uma entrega total de alguns pela causa.
Qual é a missão da bancada evangélica nesse sentido?
Ao meu ver, é de preservação, não de criação. Eles não querem criar projetos, querem manter tudo intacto. É uma atuação ideológica, se posicionar contra projetos inovadores, transformadores. Agora que houve algumas críticas, eles estão tentando elaborar projetos mais numa perspectiva de manutenção de uma ordem do que de transformação.
É uma ação mais combativa, defender uma ordem social hegemônica. Os projetos que estão surgindo são pra fazer frente a projetos que estão em andamento, por exemplo, com relação a projetos do grupo LGBT. Criminalização da homofobia – criminalização da heterofobia. São projetos estapafúrdios.
Aborto, drogas, criminalização da homofobia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, são contra a discussão de gênero, a favor do ensino religioso, contra todos os projetos pedagógicos e educativos que combatem qualquer tipo de discriminação de gênero, sexual…
Você acha que é uma causa legítima? Eles acreditam mesmo nisso?
Antes do Eduardo Cunha, eles estavam caminhando para um discurso mais coerente com aquele espaço. No fim de 1980, os discursos condenavam o aborto e justificavam trazendo passagens bíblicas, dizendo que Deus não permite.
Depois a bancada amadureceu um pouco nesse sentido, entendeu que não dava pra usar esse discurso porque não tinha coerência e começaram a argumentar de forma mais legislativa, aderir a um discurso que tinha mais ressonância naquele contexto. Toda moral é um sistema de controle.
A sexualidade é um tema central na igreja com um discurso muito forte constante porque a sexualidade de alguma forma expressa liberdade. Então, você tem um sistema normativo de controle. É genuíno no sentido de que eles acreditam nessas coisas, mas virou, sim, um jogo de poder com os movimentos LGBT, por exemplo. O aborto é um tema controverso.
Alguns acham que o aborto deveria ser crime hediondo, que é um assassinato. Mas outros, como os da Universal, acham que o aborto é uma possibilidade. É uma defesa genuína de posições morais que eles querem transferir para a realidade social. É legítimo que um grupo pense assim. O que não é legítimo é trazer esse discurso para a esfera pública de um Estado laico.