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19 maio 2020


O despautério em torno do pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia do coronavírus segue um script seguido à risca por ele desde sua queda meteórica na política: de se eximir da toda a responsabilidade conferida a seu cargo e transferir a todos a culpa por sua incapacidade e insensibilidade diante desse problema. A cada novo discurso isso é reiterado. A previsibilidade de sua rasa capacidade cognitiva deveria ser capaz de nos preparar para escatológica fala que sai do seu aparelho, por ora, fonador. Entretanto, o mais assustador é o levante feito por seus adoradores para encontrar em um palheiro a agulha que possa alinhavar qualquer coerência o bastante para costurar os retalhos deixados pelo caminho por Bolsonaro. Não são mais céticos, são lunáticos, tão passíveis de internação quanto aquele que eles idolatram.

Na verdade, após o que foi proferido ontem em rede nacional, Bolsonaro deveria no mínimo sofrer sanções públicas por desdenhar da ciência e incitar irresponsavelmente a saída populacional diante desse panorama. É um crime de ódio, oriundo de um discurso raivoso do qual a economia, as alianças com as elites, o enriquecimento dele e de seus corsários, se sobrepõe à vida dos mais vulneráveis. Quem coaduna com tal pensamento é tão fascínora quanto ele, passível de punição dentro dos regimentos legais. Não se trata de posição política apenas, mas de direitos humanos, legitimação científica, empatia pelas dores do próximo, sentimento este em um mundo onde nações como Itália, Espanha, Estados Unidos e China, onde a mortalidade é avassaladora, é encontrado. Contudo, ele e seus devotos seguidores tem uma noção particular sobre humanidade.

Diante disso, a mídia passou a figurar entre os inimigos do governo, em especial a Rede Globo. Tenho minhas considerações sobre essa emissora em muitos aspectos, mas colocá-la como algoz da regência de Bolsonaro é esconder o fato da Rede Record, comandada por outro insano, ser a única porta-voz midiática do chefe de Estado, com claros sintomas de desequilíbrio mental. Assim é fácil usar um canal religioso, claramente alienante e antidemocrático para defender suas asneiras. Todavia, um presidente que se prese não temeria aparecer em qualquer veículo informativo, se a sua capacidade de ocupar tal cargo fosse superior às artimanhas de setores comunicativos. O problema é que Bolsonaro sabe de suas limitações, assim como seus partidários. Apenas o povo, contaminado pelo bolsonavírus, insiste em paliativos para defendê-lo. Entretanto, a resistência nessa defesa é sintomática à ignorância, fazendo com que, por exemplo, algo como o coronavírus seja relativizado.

Além da mídia, a China passou a ser atacada pelos brasileiros infectados pela mutagênico vírus da ignorância injetado por Bolsonaro. Para eles, o coronavírus é o “chinavírus”, desconsiderando o fato comprovado de que a doença existe há décadas, apenas sua mutação se deu naquele país e se expandiu para o mundo. Ou seja, poderia ter sido lá ou em qualquer outra nação. O vírus é uma resposta a sanha humana pelo progresso desenfreado, o mesmo que tem no Brasil devastado as nossas florestas e, no resto do planeta, tem encurtado a vida da natureza. Como resposta, o meio ambiente se defende atacando seus algozes. Todavia, para os patologizantes integrantes da seita bolsonarista não há espaço para preservação. Os verbos que os regem é destruir, arruinar, fechar, ou como profere seu iconoclasta: “tem que acabar com isso aí!”. Então, em uma prática autodestrutiva, muitos não perceberam, ainda, que tais atitudes virão retaliadas contra eles, seja em forma de vírus, ou noutra moléstia socioambiental à saúde de todos.

Em contrapartida, a perplexa retórica indefensável de Bolsonaro chegou ao apogeu de nos expor à morte. É aviltante de quem exerce um poder representativo entre as massas. Vai de encontro a todos os protocolos internacionais em torno dessa pandemia. Até regimes conservadores como a Rússia e o Irã demonstraram mais solidariedade diante desse panorama do que ele. Na contramão de todos, nosso presidente aconselha fiéis (leia-se cristãos) a irem aos seus templos, descredita as recomendações médicas dadas por profissionais preocupados com a insuficiência estrutural do SUS, crítica as medidas dos governadores dos estados cientes da imprudência do Estado frente a tal pandemia e, de quebra, convida a população a saírem de seus confinamentos porque o vírus “só é nocivo aos mais velhos”, frase que por si já diz muito do pouco que nos governa. Tudo isso já seria o bastante para qualquer indivíduo são repudiar à presidência. Mas, porque há quem defenda aquele mentecapto?

Aliança política, golpe, milícias, alienação, interesses religiosos, educação precária, ignorância, distorção discursiva, Fake News, preconceito, intolerâncias, pseudo nacionalismo, embrutecimento social, militarização, armamentismo das massas, idolatria, exclusão das minorias, exaltação da família tradicional, ruralismo, corrupção, interferência virtual, Olavo de Carvalho, perseguição, populismo, elitismo, negação histórica, ditadura, segregação, tirania, escola sem partido, inversão de valores, falácias, ideologia de gênero, kit gay, misoginia, machismo, homofobia, transfobia, Rede Globo, “Golden Shower”, mamadeira de piroca, balbúrdia, Cuba, mais médicos, comunismo, índios, cultura do estupro, naturalização das violências, menino veste azul e menina veste rosa, femicídio, Damares Alves, antidemocracia, Sérgio Moro, inconstitucionalidade, nepotismo, bandido bom é bandido morto, cuspe, Jean Wyllys, afronta a laicidade, Rede Record, Trump, vergonha alheia, paixão, Lula, PT, Freud explica, “gripezinha”, coronavírus, Bolsonavírus.

Em doses homeopáticas, Bolsonaro patologizou grande parte da sociedade. Primeiro pelo seu arquétipo rude, visto como antídoto para a realidade nacional, depois por suas coloquialidades em uma nação denotativamente sem bases intelectuais fortes o bastante para se imunizar da potência viral da retórica bolsonarista. Por isso, os acometidos por essa doença minimizam o coronavírus e asseveram todos os coliformes fecais expelidos em forma de palavra pelo chefe da nação. Certamente, entre eles houve uma substituição do cérebro pelo intestino, um agravo não apenas a anatomia dos corpos, mas, sobretudo, a quem tem o desprazer de presenciar tal escatológica narrativa. Por essa razão, ao devotos da presidência, cegos pelos excrementos que saem de sua boca, apenas replicam irrefletidamente essa pocilga que virou nosso país. Estão chafurdados em algo do qual eu não ousaria me aproximar. Assim, frente a tamanha fé, espero profundamente que tais indivíduos encontrem fôlego nessas palavras para se higienizarem diante da sujeira em que estão mergulhados. Em parte, não é culpa de vocês terem sido fisgados pelas artimanhas políticas do Golpe a atualidade. Somos todos suscetíveis a escolhas erradas, mas podemos fazer o certo quando este se materializa a nossa frente. Porém, se vocês insistem em partilhar de mais essa porcalhada, foi bom chamá-los de humanos um dia. Passem bem!

22 agosto 2019



       Não é prudente atribuir como recentes as queimadas que estão reduzindo a pó a maior riqueza ecológica da humanidade. Há longas datas ativistas e ambientalistas nacionais e estrangeiros alertam para o crescimento dos focos de incêndio na floresta amazônica, todos motivados por questões inegavelmente econômicas. Porém, o choque atual não se reduz ao alcance da destruição da floresta, que é imensurável - quiçá irremediável - mas a conjuntura sócio-político-cultural que ruma contrário à proteção desse bem nacional. Isto porque, mesmo diante de constatações científicas, dos noticiários televisionados mostrando o rastro de devastação ambiental e o apelo internacional em prol da salvação da Amazônia, há um sentimento de apatia social, fomentado pelo cenário político, ignorando e extinção anunciada daquilo que pode não apenas salvar o Brasil, mas, possivelmente, a sobrevivência humana na terra.
           Na realidade, esse sentimento autodestrutivo avolumou-se com a figura incendiária que (des)governa o país, o incapaz Jair Bolsonaro. Engatilhando discursos ligados a acabar, cortar, destruir, não surpreende que a Amazônia estaria a salvo das investidas aniquilatórias de sua regência. Para isso, como de praxe, o presidente não poupou artilharia para descreditar há pouco tempo estudos geográficos incontestes sobre os rumos do desmatamento da Amazônia, ao passo que enaltecia o setor econômico agrícola como potencializador do crescimento financeiro do país. Ao mesmo tempo, limitou o poder de atuação do Ibama, perseguiu a Funai, colocou alguém contrário a natureza para gerar a pasta do Meio Ambiente, tudo isso visando, evidentemente, favorecer a bancada ruralista do congresso, boa parte dela composta por políticos religiosos em um grande Feudalismo à brasileira. Como a mentira se tornou a plataforma governamental, e a bússola que (des)orienta a nação, muitos preferem as falácias políticas em torno da Amazônia do que encarar os fatos: estão destruindo a nossa floresta.  
            Nesse sentido, parece que o fogo pretende incinerar as maiores riquezas do Brasil este ano. Até onde a minha memória consegue ir no momento, dois patrimônios imprescindíveis à vida foram às cinzas: o Museu Nacional do Rio de Janeiro e a floresta Amazônica. Apesar de dispares a olhos nus, é preciso lembrar que o conhecimento é tão indispensável a existência humana quanto a natureza, sobretudo nesta era onde a ignorância governa a nação - literalmente falando. Porém, inconscientes dessas necessidades, seguimos destruindo tudo o que nos é caro. A vítima agora trata-se da maior floresta do planeta. Apesar dos clamores dos ativistas e ambientalistas, a destruição da Amazônia segue rente rumo a extinção de matas preservadas em prol de interesses políticos/ruralistas descarados, os quais ganharam força na regência imprudente daquele que elegeram para chefe de estado desse país.
          Nem faz tanto tempo assim, os EUA antagonizavam o papel daquele que roubaria o tesouro amazônico das posses nacionais. Há mais ou menos dez anos, o fantasma da internacionalização da Amazônia assombrava todos aqueles que defendiam a soberania desse patrimônio nas mãos de seus verdadeiros donos, os brasileiros. À época, Cristóvan Buarque, quando questionado se tal floresta deveria ser internacionalizada, respondeu provocativamente que caso isso acontecesse, seria preciso que outras riquezas naturais, culturais e econômicas também passassem a pertencer a toda humanidade, citando, entre muitos exemplos, o petróleo, os Museus e o capital estrangeiro. Hoje, o espectro internacional subdividiu-se entre aqueles que desejam a soberania ecológica do país, os Americanos, e aqueles descrentes da capacidade nacional de preservar esse bem precioso a manutenção da vida.
              Em meio a isso, o vilão não é mais de fora, mas daqui. Está no poder tomando decisões arbitrárias que poderão trazer graves consequências à vida de todos nós. Contudo, a burrice é mais devastadora que o fogo que arruína a Amazônia. Numa sociedade onde terraplanistas ganharam visibilidade, qualquer apelo científico é uma afronta as verdades elaboradas por mentes delirantes, construídas a partir de um espectro cultural ultraconservador, limitado, cego por uma crença alienante, a qual retira do indivíduo a sua capacidade natural de pensar e insere nele um dispositivo replicador de boçalidades, muitas delas contrárias a sua própria essência, mas que, por serem solidificadas por um Estado ludibriante, ganham ares de verdade. Logo, apesar da avalanche de fumaça que nublou ou céus de São Paulo, dos vídeos retratando a dizimação da florestas e dos números estatísticos que quantificam o tamanho dessa tragédia, tudo é ignorado, ou pior, minimizado. Enquanto isso, as chamas na Amazônia avançam para a alegria do setor agrícola e das madeireiras ilegais. Dou outro lado do fogaréu seguido pela fumaça, as cinzas de mentiras, nessa era de inverdades legitimadas via twitter, nublam a percepção da sociedade para a gravidade desse problema.
             Assim, a ameaça da extinção, a qual se limitava as espécimes da fauna e flora – algo imperdoável frente a biodiversidade existente em terras brasileiras – pode se voltar contra aquele que se tornou o principal algoz do seu habitat, o homem. Todavia, a mudança sempre é possível. Um levante já está sendo organizado para levar as ruas as reivindicações ignoradas pelo atual governo. Assim, chamando a atenção internacional, o Brasil passe a tomar alguma atitude em prol da Amazônia. Porém, isso ainda é pouco. Precisamos usar as mídias para denunciar o descaso ecológico do país; cobrar mais empenho político para criação de projetos ambientais nas grades escolares; escolher candidatos comprometidos com o meio ambiente, ou, pelo menos com formas sustentáveis de economia; reduzir o consumo de carnes, as quais são as principais vilãs da degradação ambiental; se voluntariar para reflorestar nossas matas; apoiar ativistas; validar as pesquisas científicas, ao passo que desmascaramos a insensatez dessa era de trevas; lutar pelo Ibama/Funai; estar ao lado dos índios. Fazer o que for possível, mas não se omitir diante de mais essa tragédia. Nossa omissão será sentida, como já está sendo.
            O fato de não termos ateado fogo na Amazônia não nos torna menos cúmplices desse crime quando possuímos as armas para impedi-lo e não as usamos.

30 abril 2019



Nem faz muito tempo assim, eu estava assistindo ao vídeo feito pelos maravilhosos integrantes do Porta dos Fundos intitulado de Escola sem Partido. Nele, aparecia uma professora sendo interrogada pelos alunos a se posicionar sobre questões cada vez mais delicadas no país ligadas a história nacional, ao passo que a turma toda, aparelhada com o que há de mais moderno em tecnologia, filmava o posicionamento da docente. Na ocasião, dei jubilosas risadas da comicidade envolta naquela ideia, mas não imaginava que o cômico tão rapidamente ganharia ares trágicos. Todavia, como a arte imita a vida, nos dramas reais, professores passaram a sentir o peso da sensura desse governo desgovernado que rege a nação.

Há poucos dias, um educador perdeu o emprego após passar pela mesma situação teatralizada pelo Porta dos Fundos, em que critica em sala a postura, indiscutivelmente criticável, do presidente (em minúsculo mesmo) Jair Bolsonaro. Senti um misto de raiva e indigestão quando li essa matéria. Aliás, a cada posicionamento do atual governante da nação, eu preciso fazer um mantra, ressuscitar o meu nirvana, preparando-me para a enxurrada de absurdos que sairão da fossa que ele tem na boca. Pois bem, como porcos não costumam andar sozinhos, a horda de malucos na política escolheram a educação como o epicentro dos seus ataques.

O impronunciável Ministro da Educação, seguindo a mesma retórica insana da presidência, foi categórico ao legitimar o direito dos alunos em filmar professores em sala de aula como um direito dos discentes. Pouco antes disso, Bolsonaro usa o twitter, sua principal rota de envio de barbaridades virtuais, para inferiorizar os cursos de humanas e enaltecer a leitura e a escrita; algo, diga-se de passagem, incongruente, pois o que menos tem sido feito pela corja no poder é uma leitura interpretativa da realidade. Voltando à vigilância eletrônica endossada pelo governo, percebemos, ou deveríamos, qual é a meta por trás desse cinema retrô: emudecer a educação.

Ao aprovar o novo ensino médio, implantar a educação domiciliar e vetar a educação sexual nas escolas, paulatinamente a intenção desses políticos é silenciar os alunos por meio da castração do saber crítico, o qual é autônomo por excelência. Agora o alvo mira em cheio nos educadores. Por meio de uma conduta clara de intimidação, espera-se subserviência dos docentes, os quais terão a passividade em suas aulas como artifício pedagógico, caso queiram permanecer em seus cargos. O tiro de misericórdia já está sendo engatilhado. Em mais um ataque ao saber, Bolsonaro começa a semana afirmando que mudará o patrono do Brasil, o educador mais respeitado do mundo, Paulo Freire, por outro aos moldes do governo. Talvez ele opte por Olavo de Carvalho, um total desconhecido das academias sérias brasileiras, de formação duvidosa e cheio de demagogia alienante, usada a torto e a direito para a chegada da burrice ao poder.

Nada mais justo do que substituir um grande pensador por um perturbador da ordem pública numa era onde o pensar deixou de ser ação para ser ofensa. Entretanto, já que a luz, câmera e ação (leia-se perseguição) estarão nos curtas metragens dos dramas educacionais brasileiros, antes do professor ser o protagonista desse cinema pornô, é preciso destacar o vilão da história, o governo. Aos alunos co-diretores, que compactuam com tamanha obscenidade, gravem a falta de estrutura das suas escolas, carteiras quebradas e/ou insuficientes; material defasado, atrasado e revisado por uma política de apagamento da história. Filmem a violência escolar, o bullying, as armas, drogas e todas as balas perdidas desferidas pela sociedade do dedinho apontado.

Não se esqueçam de registrar em close a feição de fome dos seus colegas, o déficit na aprendizagem que decorre disso, o abandono de muitos responsáveis que delegam ao professor o papel de pai e mãe. Se der, façam ainda um slow motion dos ataques de seus colegas desrespeitosos aos seus docentes, mostrando ao presidente quem são as reais vítimas da deseducação do país. Por fim, aos com celulares mais chiques, aproveitem e façam um plano sequência de vocês mesmos falando diretamente ao presidente da nação sobre o que falta para que a educação seja de fato de qualidade.

Talvez assim com algo gravado por vocês ele dê ouvidos às necessidades no ensino, já que os apelos dos profissionais da área e as teorias de pessoas renomadas são ignoradas por ele. Quem sabe não rola uma premiação, hein?!Garanto que o cenário escolar brasileiro, se dirigido por alguém sério, levaria um Oscar na categoria drama, quiçá comédia. Enquanto não há nada de artístico nisso, vemos estarrecidos o amadorismo governar o Brasil, em detrimento daquilo que perdeu seu status quo na sociedade, a livre expressão do pensamento. Que venham os grilhões!


59° lugar. Esta é a posição do Brasil no último PISA, Programa Internacional de Avaliação dos Alunos, entre os 70 países participantes. Para conseguir essa vergonhosa colocação, o país fez feio nos quesitos matemática, ciências e leitura. Aliás, no que se refere a ler, a pátria que tem exaltado as armas ao invés dos livros vai se aproximar ainda mais do derradeiro lugar neste pódio. Antes, porém, é incontestável que em sucessivos planos governamentais a educação não foi prioridade. Isto porque, numa relação clara de adestramento, subserviência e tecnicismo, o foco é mecanizar o saber transformando nossos estudantes em meros protótipos do sistema.

Decerto, para alcançar este vexatório posto só um misto de descompromisso e burrice regeram, e regem, esse (des)educado Brasil. Como tudo que é ruim pode piorar, o cataclismático governo de Jair Bolsonaro assina a ordem para permitir que pais possam educar seus rebentos em casa. A priori, todavia, é preciso concatenar o porquê da educação ter se tornado o alvo dessa nova política que acomete o país. Muito antes de ser empossado, a persona não grata da figura Temer conseguiu modificar o ensino médio, permitindo aos estudantes moldarem a sua grade de estudos ao seu belprazer. Entrementes, a discussão da Escola sem Partido avançava a todo vapor também com os olhares elogiosos de Bolsonaro.

Entre as metas do, na época presidenciável, estavam a educação domiciliar e a proibição do tema educação sexual nas escolas. Ora, apenas aqui há práticas claras de cerceamento da liberdade pedagógica, além da negação às pesquisas científicas e silenciamento de discussões caras aos nossos jovens. Entretanto, o bombardeamento na esfera educacional têm propósitos mais nefastos. Após a empobrecimento cognitivo transmitido pelas fake news, que levaram aquele cidadão ao poder, o governo resolveu esculhambar de vez o que já era uma balbúrdia. Agora, com aval legislativo, diversos projetos pretendem emburrecer a sociedade por meio de uma (des)educação sem respaldo científico, eivada pela interferência perigosíssima de setores religiosos e descomprometida com o que há de mais vanguardista na formação intelectual da sociedade. É educar para doutrinar.

Trata-se de marionetes cuja função é perpetuar na política uma esfera de governo tirano e claramente inexperiente. A prática do Homeschooling é uma prova disso. Conhecido como educação domiciliar, tal modalidade é aceita em grandes nações espalhadas pelo mundo. No entanto, em muitas delas educa-se seus entes em casa porque há toda uma estrutura sócio-cultural efetiva, capaz de oferecer aos responsáveis o mínimo de arcabouço para orientar seus alunos-familiares. Porém, diferente deles, o Brasil possui diversos entraves que antecedem o colégio de um lado e, do outro, adentram os muros escolares atrapalhando a aprendizagem.

Diante de um projeto de ensino deveras avacalhado, estamos permitindo que diversos professores formados, detentores de anos de experiência em sala de aula - e das dificuldades que cercam está atividade - sejam desmoralizados por um governo que permite pessoas sem qualquer noção pedagógica de ensinar a nossa juventude. É evidente o desconhecimento político das teorias de Paulo Freire acerca da pedagogia, sobretudo aquelas que veem a opressão em torno daquilo que há nos moldes clássicos de ensino. Contudo, as contribuições freirianas, aceitas e respeitadas em diversas universidades do mundo, são ridicularizadas na vala que se tornou o Brasil de Bolsonaro. Submergindo na lama da ignorância, estamos atolados até o pescoço com as medidas insanas desse governo despreparado, o qual tem conseguido a proeza de deteriorar o que já está em ruínas. Não falta muito para o pouco fôlego restante extinguir-se de nossos pulmões. Até lá, o ar continua mais rarefeito todas as vezes que o presidente de muitos brasileiros, não o meu, pronuncia alguma barbaridade com ares benfazejos na mídia.

Enquanto desdenham dessa maneira da nossa Educação, não irá tardar para que outros rankings, além do PISA, mostrem a defasada realidade conhecida por todos nós. O Enem está chegando e com ele a visão rasa da religiosidade fotoshopada de Bolsonaro. Será mais um tiro certeiro na morte iminente da intelectualidade do Brasil. Caso o Homeschooling se concretize, veremos a robotização juvenil em cadeia. Será o maior atentado ao conhecimento da história desse país. O efeito kamikaze de uma educação domiciliar em lares sem educação vai ser o nosso regresso a idade das cavernas. Pena que não teremos mais os dinossauros para nos entreter.

28 março 2019



"Numa das lendas medievais mais difundidas do planeta, o rei Arthur consagra-se perante os outros cavaleiros ao ser capaz de retirar uma espada de uma rocha, transformando-se no rei da Bretanha. Questões ligadas a honra, virtude e respeito norteiam esta narrativa literária-histórica, permeada de ritos celtas e interferências cristãs à época. Fora do mito cavalheiresco, pouco restou de honradez, empatia e respeito no desvirtuoso reinado de ódio que impera no Brasil. Pelo contrário, hoje os nossos combatentes são sadicamente ofendidos por um discurso doentio que vem polarizando o país entre militares e "comunistas".
Sem haver espaço para mediação e diálogo, assistimos aterrorizados o ataque desumano a morte do pequeno Arthur, neto do ex-presidente do Brasil, Lula. Ao atacarem covardemente a morte desse inocente, percebemos, (ou pelo menos deveríamos), entender o agravamento da barbárie que tem assolado a sociedade. Não há mais espaço para condolências, pêsames, ou qualquer tentativa de enlutar, se a vítima for do lado "inimigo". Nem a morte de uma criança cessa a fúria da intolerância. Lembro-me que quando o atual presidente da república levou uma facada num comício, eu fui um dos poucos que viu o lado humano daquela situação, mesmo tendo profundas reservas com o dito cujo.
Isto porque, quando há ações que acometem o nosso corpo debilitando-nos, é preciso dar uma trégua no embate político para que aquele indivíduo possa se restabelecer para continuar na luta. Claro, quando há o mínimo de caráter envolvido na questão. Porém, no país dos dedos engatilhados em forma de arma caso o adversário esteja desarmado, ferido ou morto é preciso assegurar a sua derrota com mais crueldade; atitudes que vão desde comentários animalescos exaltando a brutalidade, a não percepção do quão selvagem se tornou esta nação. Não nos compadecemos com as dores alheias faz tempo, mas agora avançamos para algo bem mais atroz: estamos nos regojizando com as tragédias alheias, que podem ser nossas, e são. É inegável que tamanha apatia é oriunda das marcas históricas que nos feriram neste Brasil de violências mil.
Contudo, o revanchismo que tem se criado, sobretudo dentro das redes sociais, não perdoa mais ninguém. Às vezes tenho a impressão que muitas pessoas pararam de pensar e vivem vegetando no universo. São zumbis programados para levar outras pessoas a morte. Qualquer tentativa de reflexão é mimimi; questionar transformou-se em defesa de bandidos; problematizar é coisa de comunista; os direitos humanos só servem para proteger marginais... E nesta neura a espada que poderia ser alçada para salvar o Brasil do caos iminente vai sendo enfiada cada vez mais goela abaixo. A hostilidade em torno da morte de Arthur é uma prova disso, mas não se encerra aí.
Esta na perseguição aos direitos indígenas; na deturpação da imagem das feministas; no silenciamento e extermínio dos militantes (vide Jean Wyllys e Marielle Franco); na censura implantada nas escolas; no impedimento das discussões de gênero e sexualidade; na exaltação de setores ultraconservadores religiosos em detrimento da laicidade do país; na manipulação pública através do medo. Tudo isso despertou o que há de odioso em nós: o desamor. Com a legitimação do atual governo, veremos mais episódios dantescos ganharem ares de normalidade e muitos assistirão reticentes a escalada do horror. Eu, todavia, faço parte do lado oposto.
Enquanto houver discernimento, estarei no campo de batalha com os outros muitos cavaleiros, erguendo a minha espada em prol dos meus, que ainda são negligenciados por uma política inegavelmente omissa. Estarei com Arthur, Marielle e Jean. Mesmo que o fronte de batalha sofra perdas, outros muitos cavaleiros (e não soldados), sairão em defesa da quase extinta democracia nacional. Ao nosso Arthur brasileiro, minhas desculpas em nome da vergonhosa e inescrupulosa mentalidade do país de hoje. Descanse em paz e emane inocência de onde estiver para abrandar os corações dessa nação obscurecida de mentiras e falsas promessas. E saiba, Arthur, em sua homenagem, e de todos que penam para existir nesta pátria, vamos tirar esta espada fincada no Brasil."

28 março 2018


Sylvia Debossan Moretzsohn
Professora aposentada de jornalismo na UFF, pesquisadora do ObjETHOS
É um vídeo forte, poderoso, cortante: sobre a imagem noturna e estática do temporal na cidade, as vozes se sobrepõem para falar que o Rio de Janeiro CHORAVA com a notícia de “mais uma mulher ASSASSINADA”; porém, “não apenas uma MULHER”, “mas uma mulher NEGRA”, “uma MILITANTE”, que movia estruturas e foi “EXECUTADA a sangue frio”, e apela: “GENTE, PAREM DE MATAR A GENTE, esse assunto é URGENTE. MARIELLE, PRESENTE”.
O vídeo original termina assim. Mas, ao final do Jornal Nacional do dia seguinte à execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL, numa ação que vitimou também seu motorista, Anderson Pedro Gomes, esse vídeo foi exibido com o acréscimo deste texto: “Esta homenagem a Marielle Franco foi feita por Ana de Cesaro e circulou na internet. Agora está sendo mostrada para todo o Brasil. Para que seja uma homenagem e também um alerta. Tudo começa pelo respeito. À vida”.
Estudiosos de linguística e comunicação teriam aqui um prato cheio para discorrer sobre essa manobra discursiva muito óbvia: um vídeo que circula “na internet” – ou seja, potencialmente, no mundo inteiro – finalmente é apresentado a um país. Pela Globo, que é – com trocadilho – a voz do Brasil.
Mas isso é o de menos. O principal é o que essa manobra revela como apropriação do discurso de protesto contra a execução de uma vereadora jovem, negra, “cria da favela” (da Maré), que estreava na Câmara um mandato promissor, com votação surpreendente – foi a quinta mais votada em 2016, com mais de 46 mil votos – e se dedicava à denúncia da violência contra os marginalizados de modo geral, com uma atuação que expressava múltiplas causas identitárias associadas à questão fundamental do pertencimento de classe.
Certamente tudo começa pelo respeito à vida, mas estas serão apenas belas palavras se desprovidas de seu conteúdo concreto. O que significa, exatamente, respeitar a vida, quando se negam as condições objetivas de existência?
“Reforma trabalhista, PEC dos Gastos, reforma da Previdência”, essas medidas que jogam “um contingente de cidadãos e cidadãs para uma espiral de pobreza”, estão na base do tal “respeito à vida” por onde tudo começa, e por onde começou o artigo que Marielle enviou aoJornal do Brasil – esse jornal recentemente ressuscitado em papel, numa iniciativa cheia de críticas, incertezas e suspeitas que não cabe aqui discutir, mas que se diferenciou dos demais no dia seguinte às manifestações de protesto que se espalharam pelo país. A edição, para quem tem memória, lembrou a do dia 12 de setembro de 1973, quando a censura da ditadura impediu manchetes ou fotos sobre o golpe no Chile de Allende, e o JB driblou brilhantemente a proibição com uma primeira página sem título, apenas com um texto em corpo maior, relatando o ocorrido, e com isso se destacou de todos os outros jornais.
JB valoriza – e valoriza-se com – as “últimas palavras” de Marielle, destacando a sua condenação à intervenção militar na segurança do Rio, que é, na prática, uma intervenção no estado. Entretanto, publica no rodapé uma ressalva que conduz ao editorial, onde defende a intervenção até mesmo como “forma de honrar a memória da vereadora”, que estaria equivocada: os beneficiários da medida seriam justamente “os que ela supunha vítimas”.
Os demais jornais cariocas incorporaram o discurso de protesto: O Globo manchetou “MARIELLE PRESENTE” em maiúsculas, os outros repetiram a indignação da vereadora ao denunciar mais uma morte atribuída à polícia: “Quantos mais terão de morrer para que essa guerra acabe?”
Em tese, a imprensa abraça uma causa que é de “todos”. No entanto, nos editoriais e nos espaços de colunistas, usa esse episódio para inverter a lógica do argumento da vereadora/militante executada e esvaziar sua causa, reforçando a atuação do governo federal: a morte de Marielle e seu motorista seria, para O Globo, “um símbolo contundente do descontrole a que chegou a segurança do Rio, situação de anomia que levou à intervenção federal”. Considerando que o Rio é um “laboratório” – como declarou recentemente o general responsável pela intervenção –, não custa imaginar o que pode acontecer às cobaias. Diante da “insana escalada de violência”, por que não a decretação do estado de sítio?
É a mesma operação discursiva que, em 2013, transformou uma reivindicação contra o reajuste das passagens de ônibus – uma pauta claramente de esquerda, que tinha o alcance mais amplo da luta pela melhoria do transporte público e, no fim das contas, pelo direito à cidade – num protesto contra a corrupção na política, rapidamente identificada ao governo federal, e resultou nas primeiras manifestações de massa de direita desde o golpe de 64, que explodiriam em 2015 e dariam sustentação popular à derrubada de Dilma Rousseff.
A história se repete
Protestos genéricos contra a “violência” têm esse poder alienante. Em 2001, na esteira do episódio do ônibus 174 – um cerco policial a uma suposta tentativa de assalto que resultou no sequestro dos passageiros, transmitido ao vivo por mais de quatro horas, e que acabou com a morte de uma refém e do próprio pretenso assaltante –, criou-se o movimento “Basta! Eu quero paz!”, que convocava para um ato público encampado por toda a mídia. Rara voz dissonante acolhida nos jornais, o historiador Joel Rufino dos Santos escreveu no Jornal do Brasil de 11/7/2001 um artigo no qual rejeitava participar daquela manifestação porque a considerava uma forma de preparar o espírito da população para “indultar os produtores da violência” e dizia que não participaria daquele ato justamente porque os violentos dissimulados, porém mais importantes, também estariam lá.
“Há os que sofrem a violência e os que a produzem. Estes têm interesse em esvaziar a violência do seu conteúdo concreto. Num golpe inconsciente, mas de mestre, mobilizam as vítimas para ato cívico, altamente emotivo, contra a violência. Gritam e fazem a população gritar “Basta!”. Com isso, dão à violência, de que são os produtores, um caráter abstrato. Eximem-se de qualquer responsabilidade. Os violentos são os outros. Na verdade, não são ninguém. Podem, portanto, ser demonizados – livrando a cara deles, os reais produtores de violência. Põem, no lugar da sua cara, a cara do pobre-coitado do ônibus 174”.
Hoje, a história se repete. No Jornal Nacional – que abriu sua edição de 15 de março com um editorial que reverberava a indignação dos “cidadãos de bem” –, o senador Jorge Vianna, do PT, aparecia para dizer que “nós não podemos estar nos dividindo, [discutindo] se a intervenção é boa ou não na área de segurança no Rio de Janeiro, eu queria uma intervenção no Brasil inteiro”. E o presidente Temer, como tantos outros políticos aliados, como tantos editorialistas e colunistas, diluía o assassinato de Marielle no caldeirão genérico da insegurança pública: “É inaceitável, inadmissível, como todos demais assassinatos que ocorreram no Rio de Janeiro, é um verdadeiro atentado ao Estado de direito e um atentado à democracia, por isso aliás nós decretamos a intervenção, para acabar com esse banditismo desenfreado que se instalou naquela cidade por força das organizações criminosas”.
A “afronta à democracia”, não por acaso, foi o título do editorial do Globo no dia seguinte.
Por isso é tão importante definir bem as coisas, nesse momento em que as emoções afloram e podem ser tão facilmente manipuladas. Ricardo Queiroz, mestre em Ciência da Informação que trabalha na Biblioteca Monteiro Lobato, em São Bernardo do Campo, resumiu exemplarmente a questão num post no Facebook:
“Marielle Franco acreditou na via política. Morreu porque se posicionou claramente na luta de classes, demarcou sua posição e sabia quais eram seus inimigos. Impossível despolitizar a sua morte.
Portanto, não é com niilismo, desqualificação da política e discurso difuso, que vamos fazer o combate àqueles que mataram Marielle.
Se até Temer se diz indignado pela morte da jovem, é fundamental o discernimento dessas indignações todas. Para que os responsáveis não se passem por indignados”.
Visto no: OBJETHOS

26 janeiro 2016

O agricultor José Patrocínio de Oliveira, o Zezinho, de 86 anos, teve apenas cinco minutos para decidir. Por volta das 18 horas do dia 5, um grupo de policiais chegou de moto a Paracatu de Baixo (Minas Gerais), gritando para os moradores deixarem as casas rapidamente. Zezinho pegou apenas os documentos e subiu à parte alta do local com os filhos. Na quinta-feira, dia 12, uma semana após orompimento das barragens, Zezinho sentou-se em um tronco de árvore na parte alta de Paracatu. Poucos metros à frente via casas soterradas na lama. Na sua ficaram suas economias – R$ 3 mil – dentro de um guarda-roupa e seus bens mais preciosos: os instrumentos musicais e as fantasias da Folia de Reis, que realiza há 50 anos em Paracatu, onde nasceu e teve 24 filhos. “O que vou fazer? Perdi tudo”, diz. Elias, um de seus filhos, circula entre as ruínas inventariando as perdas. Sua moto está dentro de um bloco de barro, ao lado de um galinheiro. “Tem 50 galinhas enterradas aí dentro”, diz. “Suspeito que pode haver gente morta também. Tenho sentido um cheiro diferente.”
José Patrocinio de Oliveira em frente a sua casa que foi destruida. (Foto: ALEXANDRE C. MOTA/Nitro/ÉPOCA)
Carro da Samarco que impedia o acesso à instalação de antenas (Foto: Hudson Corrêa)
Zezinho pode dizer que teve sorte. Poderia ter sido um dos engolidos por cerca de 62 milhões de toneladas de lama, rejeito da exploração de minério de ferro, que vazaram após o rompimento das barragens de Fundão e Santarém, mantidas pela mineradora Samarco, uma sociedade entre a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. As toneladas de lama tomaram Bento Rodrigues de assalto, caíram no Rio Doce e vão chegar ao mar, no litoral do Espírito Santo, a mais de 100 quilômetros de distância. Bento Rodrigues se transformou em ruínas. Até o final da semana passada, dez mortos haviam sido encontrados, 18 pessoas estavam desaparecidas e 612 (inclusive Zezinho) desabrigadas. Ainda é cedo para dizer se algum dia será possível recuperar o solo de Bento Rodrigues. A água do Rio Doce, que abastece mais de 500 mil pessoas, está ameaçada. Trata-se de um dos maiores desastres ambientais do país. O desastre é resultado de uma combinação de negligência e descaso, que torna tais tragédias tristemente comuns no país.
Vista do que sobrou de Paracatu de Baixo Minas gerais (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
O acidente poderia ter sido evitado?
Sim. Há no país 401 barragens de rejeito enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens, 317 delas em Minas Gerais. AComissão de Segurança de Barragens classificava a do Fundão como de “baixo risco” de rompimento, mas de “dano potencial alto”. A classificação considera o risco estrutural, a documentação, o volume de rejeitos acumulado, se há habitações próximas e infraestrutura voltada para onde correm as águas do rio. Grandes barragens, como a do Fundão, da Samarco, devem ser monitoradas em tempo integral. Barragens devem ter sensores para identificar pressões ou deformações. Inspeções visuais devem ser feitas para identificar trincas, infiltrações e crescimento de vegetação. A Samarco não informa se fazia monitoramento nem se percebeu sinais de falha da barragem.
Vítimas da tragédia estão provisoriamente em um ginásio da cidade de Mariana, a Arena Mariana (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
Autor de uma dissertação de mestrado para a qual analisou 125 barragens em Minas Gerais, o professor de engenharia Anderson Pires Duarte afirma ser impossível a Samarco não saber o que estava prestes a acontecer. “Uma barragem não se rompe de um dia para o outro. Dá avisos, sinais. A questão é se havia monitoramento para captar esses sinais”, afirma. “É como uma pessoa que adoece: percebem-se os sintomas. Não sei por que rompeu, mas garanto que a Samarco tem esse monitoramento.” 
Morador  de Barra Longa tenta limpar a sujeira dentro de sua casa, dois dias depois do rompimento de duas barragens de rejeitos de mineração, de Fundão e de Santarém, ocorrido na tarde da quinta-feira (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
A Samarco teve culpa?
Esse tipo de rompimento de barragem pode ser causado por fatores extremos, como um abalo sísmico grande. Um dos motivos levantados inicialmente é que houve um pequeno tremor de 2,3 graus na escala Richter na região, mas especialistas avaliam que um abalo desses não seria suficiente. Resta a possibilidade de falha técnica. Apenas uma investigação poderá dar uma resposta definitiva. Entretanto, o Ministério Público de Minas Gerais afirma que a empresa, sim, tem culpa. A subprocuradora-geral da República Sandra Cureau, coordenadora da Câmara do Meio Ambiente do Ministério Público Federal, afirma que a punição aos representantes da Samarco deve ser “exemplar” porque houve “negligência” e “omissão”. O Ministério Público mineiro abriu um inquérito para investigar o caso. Uma força-tarefa, composta de 15 promotores e dez técnicos ambientais, deverá concluir o trabalho em 30 dias. Uma equipe de peritos que não prestaram serviço antes para a Samarco ou suas donas, a Vale e a BHP Billiton, foi contratada. “Ainda é cedo para dizer qual foi a negligência, imprudência ou imperícia. Mas houve alguma, com certeza”, diz o promotor Mauro Ellovitch, do Ministério Público mineiro.
>> Vídeos mostram caminho da destruição em Mariana

Barragens como as da Samarco são construídas aproveitando-se o vale e as montanhas que o formam como paredes. A frente é fechada com o próprio rejeito mais sólido e granulado, que retém a parte mais líquida e fina. Desde maio, duas empresas faziam para a Samarco obras de elevação da altura da barragem, chamada de alteamento. “Isso evidentemente tornou o rompimento da barragem mais provável”, diz Sandra Cureau. “Uma obra de alteamento não é um puxadinho. É uma obra complexa, precisa de uma análise rigorosa”, afirma Geraldo de Abreu, da Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais. A Samarco fazia também uma obra para fundir a barragem do Fundão à de Germano, muito maior.
>> As histórias de quem perdeu tudo na tragédia de Mariana

Em 2013, quando a Samarco pediu novo licenciamento para a barragem do Fundão, um laudo técnico do Instituto Prístino, encomendado pelo Ministério Público de Minas Gerais, apontou um risco de “colapso da estrutura”. O licenciamento foi concedido pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais. Em 2014, a Samarco aumentou a produção na unidade de Mariana em 33%. A Samarco será responsabilizada mesmo que o acidente tenha causas naturais, segundo o promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, do Ministério Público de Minas Gerais. “A Samarco será obrigada legalmente a reparar todos os danos e compensar os estragos irreversíveis ao patrimônio cultural e ao meio ambiente.” Nos últimos 14 anos, quatro barragens romperam-se em Minas Gerais.
Bombeiros fazem buscas por desaparecidos no distrito de Bento Rodrigues, tres dias depois do rompimento de duas barragens de rejeitos de mineracao, de Fundao e de Santarem (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
A Samarco cumpriu as regras de segurança?
A investigação do Ministério Público vai determinar como foram os procedimentos da Samarco. A lei de segurança para as barragens determina que a empresa tenha um plano de ação emergencial para lidar com desastres. Parte desse planejamento consiste numa “estratégia e meio de divulgação e alerta para as comunidades afetadas”. Depois da ruptura das barragens em Bento Rodrigues, a Samarco afirma ter feito o aviso por telefone. “Não houve sirene, houve contato via telefone com a Defesa Civil, prefeitura e alguns moradores”, afirmou o engenheiro Germano Lopes, gerente-geral de projetos da Samarco, sem especificar o número de moradores comunicados. Todas as testemunhas ouvidas pelo Ministério Público negam ter havido comunicação. Na tarde da quarta-feira, dia 11, funcionários de uma empresa de telefonia contaram a ÉPOCA ter instalado sirenes na área afetada naquela tarde, seis dias após o acidente. O sistema permitiria à Samarco alertar a população em caso de risco. ÉPOCA foi ao local onde foi colocada uma antena, que emitirá sinais para disparar as sirenes, mas uma caminhonete da Samarco bloqueava a entrada. “Se houvesse um bom plano para evacuar a área, não haveria tantos desaparecidos”, afirma Jefferson Oliveira, professor de engenharia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
A lei brasileira sobre barragens é boa?
Especialistas afirmam que a legislação brasileira está dentro dos padrões internacionais, mas é muito recente e não foi regulamentada. A lei não exige, por exemplo, o uso de mecanismos modernos de aviso, como sirenes e envio de mensagens pelo telefone celular para avisar em casos de acidente, comuns em países como o Canadá. O papel da regulamentação seria justamente determinar detalhes como esse. Monica Zuffo, doutora em segurança de barragens pela Universidade de Campinas (Unicamp), diz que a lei não é falha ao definir o que deve ser feito, mas sim em especificar quem deve fiscalizar. “Não há interesse em atribuir responsabilidades claras”, diz. O texto não regulamenta que órgão é responsável por fiscalizar o quê; nem define uma instância máxima de fiscalização federal. “Fica subentendido que os incidentes com barragens no Brasil são ‘culpa da ira divina’, pelo excesso de chuva, por exemplo”, diz Monica.
Infográfico sobre a tragédia na cidade de Mariana  (Foto: Época )
Falta fiscalização de barragens no Brasil?
Sim. Fazia três anos que um técnico do governo federal não comparecia a Bento Rodrigues para vistoriar as barragens que se romperam. A última vez que um fiscal do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) visitou a área atingida foi em 2012. Depois disso, as barragens já passaram por reformas significativas, como o alteamento, sem nunca terem sido monitoradas. A fiscalização é falha por falta de organização e recursos. Quatro órgãos, subordinados a ministérios diferentes, fiscalizam todo tipo de barragem no Brasil. As mais de 660 barragens de minério, como as da Samarco, ficam sob a guarida do DNPM. Contudo, o DNPM não exige que as empresas emitam relatórios anuais sobre a segurança de suas barragens. O DNPM tem 220 fiscais para cuidar de 27.293 empreendimentos.

Na semana passada, o ministro das Minas e Energia, Eduardo Braga, admitiu que o DNPM gastou neste ano apenas 13% do orçamento destinado à fiscalização. “Como as punições em caso de acidente demoram a ser aplicadas, já que as empresas recorrem das decisões, não há um efeito pedagógico”, afirma o procurador da República Eduardo Santos de Oliveira, responsável pelo caso de Cataguases, de 2003, vazamento de barragem que contaminou a água de 600 mil pessoas, ainda sem punição dos responsáveis. Há também falta de estrutura estadual. No caso de Minas Gerais, há oito fiscais para fiscalizar 735 barragens. “Os técnicos avaliam dentro de sua sala de trabalho”, afirma o advogado Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental (ISA).
As leis lá fora são mais duras que a brasileira?
Quando comparada com a de outros países, a legislação brasileira é falha no aspecto de atribuição de responsabilidades. Nos Estados Unidos, a Federal Emergency Management Agency (Fema) é claramente o órgão máximo de fiscalização. No Canadá, essa figura não existe, mas as províncias monitoram as barragens com extrema seriedade. Desde 1995, existe um Guia de Segurança em Barragens, que descreve tudo o que deve ser feito. No Brasil, muitos Estados nem sequer aprovaram legislação sobre o tema. “Esse é o paradoxo brasileiro: nossa legislação sobre águas é das mais exigentes do mundo. Mas a aplicação das leis não é”, diz Monica Zuffo, da Unicamp.

Nos Estados Unidos, os governos estaduais são responsáveis por regular 95% das barragens do país, mas cabe à Fema liderar a fiscalização, através do Programa Nacional de Segurança em Barragens. A tarefa da Fema é garantir que os Estados tenham condições, recursos e treinamento no monitoramento de acidentes com barragens e que cada Estado siga rigorosamente as diretrizes definidas no programa nacional. Isso inclui compilar em um banco de dados na Universidade Stanford, na Califórnia,  todos os relatos de incidentes nas quase 80 mil barragens do país. A Austrália começou a regular a segurança em suas barragens em 1978. Em 2000, o governo aprovou um código que prevê que toda barragem tenha um relatório anual de segurança e um programa de fiscalização elaborado por um engenheiro de segurança. O Reino Unido começou ainda mais cedo a regular suas barragens: o primeiro conjunto de leis é de 1930. Esse decreto foi aperfeiçoado em 1975 e está vigente até hoje. A lei obriga que dois técnicos nomeados pelo governo façam a medição diária do nível dos reservatórios e produzam um relatório anual.  
As empresas multinacionais que atuam no brasil seguem os mesmos procedimentos de segurança que adotam no exterior?
Não. As empresas seguem as leis locais, de acordo com seu rigor. Além do Brasil, a BHP explora minério de ferro na Austrália. Lá, em 2012, o departamento público de Meio Ambiente australiano obrigou a BHP a fazer uma avaliação ambiental detalhada da região onde atuaria e de áreas próximas. Teve de divulgar seu relatório para o público, com um texto simples e claro, e com as fontes de informação, de forma que pudessem ser checadas. Esse tipo de acompanhamento pode até ser sugerido pela lei, mas não é prática no Brasil. A Vale não informou se adota os mesmos padrões em todas as suas operações e disse cumprir as legislações específicas de cada país onde atua.
Quais as consequências ambientais do acidente?
A lama que vazou da barragem em Mariana contém elementos considerados pouco tóxicos. Mesmo assim, o distrito de Bento Rodrigues pode nunca mais ser recuperado, pois a lama secará, impermeabilizará o solo e impedirá a vegetação de ressurgir. Embora não contamine o solo, o material pode assorear rios, nascentes e margens. “Os rejeitos podem alterar o hábitat aquático e as terras aráveis”, afirmou o consultor americano David Chambers. O assoreamento muda a profundidade e a largura dos rios, afetando a reprodução e a alimentação dos peixes. “Se não limpar, não tem material orgânico nenhum para plantas. Nada se desenvolve por dezenas de anos. Se deixar por conta da natureza, essa área toda vai ser estéril”, diz o professor Maurício Ehrlich, do Coppe, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O abastecimento de água nas cidades do Vale do Rio Doce será um problema por enquanto. Especialistas ainda não sabem dizer se o impacto no rio será permanente. Na quinta-feira, dia 12, o Ministério Público Federal e o MP do Espírito Santo, junto a entidades ambientais e a uma associação de pescadores, iniciaram a Operação Arca de Noé para retirar espécies de peixes do Rio Doce antes da chegada da lama. Os peixes irão para duas lagoas.
Quais punições poderão ser aplicadas aos responsáveis pelo acidente?
Na semana passada, o Ibama aplicou duas multas à Samarco, que somam R$ 250 milhões – uma pelo despejo de dejetos no rio e outra por danos à biodiversidade. A Samarco foi autuada por cinco crimes ambientais. O Ministério Público deverá propor uma ação civil pública exigindo pagamento de indenização. O Deutsche Bank calculou em US$ 1 bilhão os custos para eliminar o passivo ambiental causado pela tragédia. De acordo com a subprocuradora-geral da República Sandra Cureau, as pessoas físicas responsáveis podem ser punidas com multas ou com até quatro anos de cadeia. “Me parece impossível que a empresa e seus responsáveis não venham a ser condenados pela prática do crime, pelo menos na modalidade culposa”, afirma.
Houve acidentes similares no brasil e no exterior?
Em outubro de 2010, o vazamento de lamas vermelhas de um reservatório de uma fábrica de alumínio na cidade de Ajka, na Hungria, atingiu duas aldeias: Devecser e Kolontar. Cerca de 1 milhão de metros cúbicos de lama cáustica vazaram, matando dez pessoas, ferindo 120, devastando plantações e a fauna local. Os resíduos chegaram ao Rio Danúbio. A operadora da fábrica era a MAL Hungarian Aluminum, que recebeu uma multa de € 470 milhões pelos danos ambientais.

No Brasil, um dos casos mais notórios foi o rompimento da barragem da Indústria Cataguases de Papel, em 2003, em Cataguases, também em Minas Gerais. Embora não tenha havido mortos, foram liberados 1,4 bilhão de litros de licor negro (lixívia) que atingiu o Rio Paraíba do Sul e deixou 600 mil pessoas sem água. O consórcio responsável pela barragem foi condenado a pagar R$ 177 milhões, mas recorreu da decisão.
A mineradora Samarco não respondeu aos pedidos de informação feitos por ÉPOCA. Em comunicados que divulgou, afirma ter colocado em ação, poucas horas após o desastre, seu “plano de ação emergencial de barragens, validado pelos órgãos competentes”. A empresa afirma também que o rejeito que vazou das barragens é inerte. “Não apresenta nenhum elemento químico que seja danoso à saúde”, diz o texto. A mineradora diz que está tomando as medidas apontadas pelo governo do Espírito Santo para corrigir as consequências do avanço da lama no Rio Doce e que está fornecendo caminhões pipa e água potável para as cidades afetadas pela falta de água. As mineradoras Vale e BHP prometem criar um fundo para recuperar as cidades.
Vazamento da barragem do Rio Pomba, em Cataguases (MG) (Foto: Patrícia Santos/Folhapress)
Vista de Ajka, na Hungria, onde um vazamento de rejeitos  de alumínio contaminou o Rio Danúbio (Foto: Gyoergy Varga/MTI/AP)
Colaborou: Graziele Oliveira

Visto: Época


Como não pensar, a cada dia, que a lama avança. Essa lama tóxica que mata gente, mata bicho, mata planta, mata histórias. Essa lama que engoliu um povoado chamado Bento Rodrigues, assassina o Rio Doce, avança pelo oceano, atravessa os estados e segue avançando. Essa lama que deixou meio milhão sem água. Essa lama venenosa que vai comendo o mundo como se fosse um organismo vivo. Essa lama morta que se move. E ao se mover, mata. Enquanto alguém toma um café, pega o ônibus, reclama do trânsito, faz um selfie, se apaixona, assiste a uma série do Netflix, se preocupa com as contas, faz sexo, se queixa do chefe, sente que o cotidiano não está à altura de suas grandes esperanças, briga no Facebook, faz planos para as festas de fim de ano, engole umas gotas de Rivotril, a lama avança. Enquanto escrevo, a lama avança. Piscamos, e a lama avança. Parece quase impossível pensar em algo além de que a lama avança. E ninguém pode afirmar até aonde a lama vai chegar.

É mais como um filme de imagens impossíveis, cada um entre seus muros, fronteiras cada vez mais enfarpadas, e a lama avançando. Dia e noite, essa lama que não dorme. Avançando. Talvez fosse necessário mais um movimento de vanguarda na arte, que desse conta do excesso de real da realidade. Da lama que avança. Concreta, espessa, tóxica. Inescapavelmente lama. QueGuernica poderá ser pintada diante da obra da Samarco, a mineradora que pertence à Vale (antes chamada “do Rio Doce”) e à anglo-australiana BHP Billiton? Precisamos de umaGuernica para representar o irrepresentável dessa lama que avança enquanto fazemos xixi.

Haveria de ter uma bienal das artes criando coletivamente representação diante da lama, em tempo real, uma bienal viva diante da lama morta que mata. Para que a lama que avança não pudesse ser esquecida para além dos que jamais poderão esquecê-la porque nela perderam quem amavam. Ou perderam um rio. Ou, no fio de voz do homem que conta para um repórter de TV que perdeu a fotografia do pai e da mãe, ele mesmo achando pouco, mas sentindo tão doído que era tanto. Não era carne, mas era história, história que dizia que ele teve um pai e uma mãe que um dia fizeram um retrato para se representar. E a lama comeu.

A lama avança. Não apenas como metáfora, como havia sido até 5 de novembro, quando a barragem se rompeu liberando todo o recalque. A lama avança matando Emanuely, Thiago, Waldemir, Claudio, Sileno, Marcos, Marcos Aurélio, Samuel, Mateus, Edinaldo, Daniel... Mais dois mortos ainda sem nome. Pelo menos 13 corpos já foram encontrados na barriga de baleia da lama. Treze gentes, com suas histórias, seus sonhos, seus desesperos, seus amores. Treze que se multiplicam por centenas que acordarão a cada dia com a faca do luto esburacando o peito.

E pelo menos oito desaparecidos, que um dia poderão ser cuspidos pela lama. Ou não. Oito que sumiram e que também eram amados por alguém e que também sonhavam e que também suavam e que também queriam. Oito de quem ainda se espera que apareçam para dizer que escaparam dos dentes da lama e para serem abraçados com força e para virarem histórias de superação ou conto de Natal. E há os peixes que são dimensionados em toneladas, e não parece possível compreender que vidas sejam dimensionadas em toneladas, apenas porque são outras vidas ou vidas de outros. Há as tartarugas. Há espécies que poderão deixar de existir, um tipo de vida que desaparece por inteiro, a pobreza máxima, insuperável, aquela para a qual não existe nenhuma possibilidade de Bolsa Família para resgatar. Há todas as plantas que não farão mais fotossíntese, árvores que já não respiram. Flores afogadas. Há o rio assassinado. O não rio.

E a lama avança.

Não como metáfora.

Mas também como metáfora. Enquanto a lama avança – “vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “não vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “alcançou o ninho das tartarugas-gigantes”, “praias são interditadas no Espírito Santo”... –, há uma lama metafórica que entra pela nossa boca e nos faz tossir. Mas a tosse não nos liberta, porque estamos intoxicados de lama. Essa lama que circula pelas veias desse corpo que chamamos de país.

A lama que nega a lama. Assim como Vale e BHP Billiton fingem que a Samarco é outra coisa que não elas mesmas. Assim como o governo federal finge que aplicar multas é uma demonstração de força, sem dizer que apenas 3% das multas são de fato pagas pelas empresas multadas, e sem dizer que não haverá dinheiro que possa dar conta da reparação. Nem mesmo os 20 bilhões de reais que o governo federal anunciou exigir na Justiça. Sem admitir, principalmente, que se uma barragem de rejeitos de mineração rompeu em Mariana é porque há algo (cor)rompido em todo o processo que permitiu que essa barragem rompesse. Algo que precisa ser corrigido já, porque há outras barragens, outras lamas, que podem avançar a qualquer momento porque há algo corrompido há muito que precede a lama que mata. E agora aquilo que era metáfora já não é.

Enquanto a lama que mata avança, outra lama que também mata, a lama que pode ser chamada de primordial, também avança. E avança rápido. Quando a lama que mata avançava havia 20 dias, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional, vale a pena prestar atenção nas palavras escolhidas para nomear essa comissão do Senado, aprovou um projeto do senador Romero Jucá (PMDB-RR)para acelerar a liberação de licenças ambientais para “empreendimentos de infraestrutura estratégicos para o interesse nacional”. Devido à pressão do momento, a exploração de recursos minerais foi retirada da lista dos projetos considerados prioritários. Mas a lista dos beneficiados pelo licenciamento facilitado não é nada pequena: obras dos sistemas viário, hidroviário, ferroviário e aeroviário, portos e instalações portuárias, energia e telecomunicações.

Não um projeto para tornar os processos de licenciamento ambiental mais rígidos e eficazes, menos sujeitos a corrupção e a pressões. Não um projeto para fortalecer os órgãos responsáveis, garantir monitoramento e informações independentes e ampliar as equipes de fiscalização. Não. Vinte dias depois de a barragem romper e a lama avançar sobre o corpo do país, essa comissão do Senado aprovou um “rito sumário”, que facilita a licença para as empresas e limita o prazo entre o pedido do “empreendedor” (mais uma palavra interessante) e o licenciamento ambiental a cerca de oito meses. Se o órgão responsável pelo licenciamento não cumprir o prazo, libera-se automaticamente. Sem qualquer análise sobre a vida, sobre o planeta, sobre o futuro. Porque, como declarou o autor do projeto, Romero Jucá, o licenciamento ambiental é o “vilão” dos grandes empreendimentos. Nesta lógica do senador, tão cristalina quanto a água do Rio Doce dificilmente voltará a ser, acabará se concluindo que a catástrofe de Mariana foi causada pelo excesso de rigor no licenciamento ambiental da obra da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton).

E a lama avança.

A quem serve esse projeto que avança no Senado, enquanto avança a lama que mata? Ao país, é o que dizem. É parte de algo batizado de “Agenda Brasil”, um pacote de propostas “com o objetivo de estancar a crise política e estimular o crescimento da economia brasileira”. Foi apresentado em agosto pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), como uma salvação para o Brasil e para a fragilizada presidente Dilma Rousseff (PT).

O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros. Mas é a lama que avança.

O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros com pose de estadista, certo de que nenhum cidadão brasileiro que acompanhou sua trajetória nos vários governos e parlamentos da redemocratização possa ter qualquer dúvida sobre a veracidade de sua preocupação com o país, sobre o seu amor exacerbado pela Constituição, sobre o seu compromisso maior com o interesse público. Ele, investigado pela Operação Lava Jato; ele, o homem suspeito de ter pagado a pensão de uma filha com dinheiro de uma empreiteira; ele, que usou o avião da FAB para levá-lo a Pernambuco para fazer um implante de 10 mil fios de cabelo, a Força Aérea Brasileira a serviço de sua urgência de deixar de ser careca. E a Agenda Brasil avança, facilitando o licenciamento ambiental em nome não dos interesses individuais e privados, de forma alguma. Renan Calheiros e o grupo de senadores que aprovou o projeto garantem que não se trata disso. E aquele que acredita que a lama jamais chegará a sua porta acredita.

A Agenda Brasil avança em nome do “interesse nacional”.

E a lama avança.

A comissão de nome interessante do Senado aprovou o projeto no dia 25 de novembro. No mesmo dia, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT-MG), também aprovou o seu na Assembleia Legislativa de Minas. Sim, ele, o homem que comanda o estado em que se iniciou aquele que é considerado “o maior desastre ambiental da história do Brasil” – e que, a depender das investigações da Polícia Federal, poderá ser promovido a “maior crime ambiental da história do Brasil”. O governador propôs acelerar o licenciamento ambiental, inclusive para mineradoras, porque, como todos sabem e o acidente da Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) provou, a demora no licenciamento ambiental é o grande problema do Brasil.

Não as pressões, a corrupção, os interesses privados acima dos interesses públicos, a precariedade dos estudos prévios e dos estudos de acompanhamento, a fragilidade do monitoramento, a indigência da fiscalização. Não. O problema do Brasil é que o licenciamento ambiental demora, o drama do país são esses ambientalistas que ficam exigindo que barragens como a do Fundão tenham monitoramento, fiscalização e um plano em caso de acidentes. Como governador diligente e preocupado com o meio ambiente, afinado com os desafios em debate na Conferência do Clima que se inicia em Paris, Pimentel resolveu o problema, em perfeita sintonia com os elevados princípios dos deputados mineiros que aprovaram o projeto.

Com o licenciamento ambiental acelerado, obviamente barragens não vão mais se romper matando gente, bicho, planta, rio. Faz completo sentido, quem haveria de discordar dessa lógica límpida como a água do rio Doce dificilmente voltará a ser? Tanto empenho e celeridade para quê? Para priorizar as grandes empresas, como empreiteiras e mineradoras, que por coincidência são também grandes financiadoras de campanhas eleitorais? Claro que não, garantem os que fazem as leis. Isso tudo é para o bem do Brasil. E aquele que se comove com as imagens dos soterrados pela lama no noticiário da TV, mas tem certeza de que a massa tóxica jamais chegará à sua porta, muito menos ao seu nariz, acredita.

E a lama avança.

Logo no dia seguinte ao rompimento da barragem, o secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas, Altamir Rôso, já havia se apressado em garantir, antes do início de qualquer investigação: “a Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) é uma das que mais se preocupam com segurança e com meio ambiente”. E, em seguida: “A Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) também é vítima”.
E a lama avança.

Mas ainda há quem acredite que ela jamais chegará à sua porta.

A Organização das Nações Unidas denuncia que as medidas tomadas pelo governo federal, a Vale e a BHP Billiton têm se mostrado “claramente insuficientes” para enfrentar uma catástrofe equivalente ao volume de 20 mil piscinas olímpicas contendo lama tóxica, que contamina solo, rios e sistemas de abastecimento em áreas superiores a 850 quilômetros e que não se sabe até onde vai chegar. A ONU declara que é “inaceitável” que se leve três semanas para divulgar que há risco tóxico na lama que avança. A ONU afirma que “o desastre é um trágico exemplo da falha na condução de negócios com relação aos direitos humanos e com relação à diligência para prevenir abusos”. Dilma Rousseff, a presidente que levou uma semana para sobrevoar (mais uma palavra interessante) a região daquele que é considerado o maior desastre ambiental do país que governa, nega qualquer negligência do seu governo.

Talvez o problema seja não a incompetência na prevenção e no enfrentamento da catástrofe, mas a incapacidade de a ONU compreender que o desenvolvimento é o grande “interesse nacional”. Em nome de uma causa maior, os obtusos precisam entender a necessidade de fazer sacrifícios, ainda que os sacrificados jamais sejam os que defendem a necessidade de fazer sacrifícios. Na posição de restos, os sacrificados não crescem. Submergem.

E a lama avança.

Assim como avança o novo Código de Mineração no Congresso. Uma parcela significativa dos deputados da comissão responsável pela sua criação recebeu doações de empresas ligadas à mineração. Mas, como aquele que acredita que a lama ainda não chegou à sua porta tem certeza, este é um mero detalhe que não corromperá o alto senso de dever cívico dos parlamentares. Na hora de legislar e decidir como proteger Brasil e os cidadãos brasileiros para que catástrofes como as das barragens da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) não se repitam, eles não pensarão em quem financiou suas campanhas, mas apenas no “interesse nacional”.

E a lama avança.

Em 24 de novembro, o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), outro nome para se prestar atenção, deu a licença de operação à barragem de Belo Monte, no Pará. A presidente do órgão, Marilene Ramos, afirmou durante o anúncio: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.

E a lama avança.

Três dias depois dessa frase lapidar da presidente do IBAMA, a empreiteira Andrade Gutierrez fechou acordo com a Procuradoria Geral da República, segundo informou a Folha de S.Paulo, comprometendo-se a detalhar vários esquemas de corrupção, entre eles propinas envolvendo Belo Monte, uma obra estimada hoje em mais de 30 bilhões de reais. Pagamentos de propinas na obra da hidrelétrica já foram relatados em acordos de outras delações premiadas da Operação Lava Jato por executivos de empreiteiras que formam o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), contratado pela Norte Energia para executar a obra, e estão sendo investigados. Mas em Belo Monte o “interesse nacional” é tão imperativo que nem mesmo 23 ações do Ministério Público Federal denunciando violações à Constituição foram capazes de interromper a obra, que será julgada como “fato consumado”. Como escreveu o presidente da Norte Energia, Duílio Diniz de Figueiredo, após a licença de operação, “é um orgulho para o Brasil ver Belo Monte se tornando uma realidade”.

E a lama avança.

Ao anunciar a licença de operação, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a presidente do IBAMA afirmou que a Norte Energia tinha “atendido integralmente” às exigências, “menos 10%”. Dias antes, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) já havia dado o seu aval à licença de operação, apesar de mencionar uma série de pendências e descumprimentos de condicionantes. A mesma FUNAI que, em vez de ser fortalecida para que os povos indígenas afetados pela obra pudessem ter maior proteção diante da empresa, passou exatamente pelo processo contrário: teve seu quadro em Altamira reduzido de 60 para 23 funcionários, no período de construção de uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

E a lama avança.

A palavra “condicionante” sofreu uma intervenção original no texto da Licença de Operação, em uma das interpretações recentes da língua portuguesa de maior criatividade, expressa por essa frase que abre uma nova página na literatura brasileira: “A validade desta LO (Licença de Operação) está condicionada ao cumprimento das condicionantes constantes no verso deste documento....”. Como se sabe, a língua é viva. E, assim, o que era condição para acontecer virou condição depois do acontecido.

Mas, assim como as autoridades do IBAMA e da FUNAI acreditam, aquele que acha que a lama jamais chegará à sua porta, muito menos à sua garganta, também tem certeza de que é justamente agora, quando a Norte Energia já conseguiu tudo o que quer, que a empresa fará questão de cumprir cada uma das suas obrigações legais. Faz todo o sentido. É sempre um prazer constatar que as ações do governo estão em sintonia com o pensamento lógico.

A barragem de rejeitos de mineração da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) que rompeu tinham como condicionante um plano de contingência.

E a lama avança.

Belo Monte começa a encher o lago num momento em que a região passa por uma seca histórica e a vazão do rio está perigosamente baixa. Antes, havia uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA) permitindo o enchimento do reservatório apenas entre janeiro e junho, fora do período de estiagem. Mas ela também foi derrubada, como denunciou o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo. Cerca de 1.800 famílias expulsas de suas casas e ilhas procuraram a Defensoria Pública da União em busca de justiça. A população atingida só teve acesso à assistência jurídica no início deste ano de 2015, cinco anos após o leilão da obra. Também o governo não cumpriu com suas obrigações, como homologar a Terra Indígena Cachoeira Seca, a mais desmatada do Brasil: só em 2014 saiu dali uma quantidade de madeira capaz de encher 13 mil caminhões madeireiros.

Lideranças da floresta amazônica e organizações socioambientais denunciam que ninguém sabe o que acontecerá com o Rio Xingu e com todos que vivem nesse delicado ecossistema. Denunciam que ninguém consegue avaliar com a necessária precisão o tamanho do impacto da operação de Belo Monte, já que os órgãos fiscalizadores dependem das informações e análises fornecidas pela própria empresa. Como os órgãos também eram dependentes na catástrofe da bacia do Rio Doce, que já alcançou o oceano.

Mas talvez aquele que acredita que a lama jamais chegará à sua porta conclua que todas essas pessoas que alertam para o impacto de Belo Monte nada sabem do “interesse nacional”. Diante do temor e da dúvida, é preciso invocar a frase da presidente do IBAMA, para recuperar de imediato a tranquilidade e a confiança no desenvolvimento: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.

E a lama avança.

E a lama avança para muito além, derrubando as fronteiras entre o público e o privado, entre os partidos e também entre os poderes, se imiscuindo a cada dia um pouco mais, empapando os dias, emprestando ao cotidiano a sua textura tóxica. E também aí ninguém sabe até aonde a lama pode chegar. Quantos pontos ela poderá ligar não apenas nos contratos da Petrobras, mas também no setor elétrico. E talvez adiante.

E a lama avança.

A mudança climática marca o momento em que o homem não apenas teme a catástrofe, mas torna-se a catástrofe. É assim que o Brasil chega à Conferência do Clima, em Paris: levando no currículo “o maior desastre ambiental da história do país” e a Licença de Operação à Belo Monte, mais uma barragem gigantesca na Amazônia como fato consumado.

E a lama avança.

Que momento da história do Brasil, este em que há tanta lama por todos os lados e, ao mesmo tempo, essa lama concreta, que avança e que mata. Essa lama das imagens, essa lama morta que parece viva porque anda, essa que só rompeu a barragem que a segurava por conta da lama ainda mais tóxica que a precede. O momento da história em que a lama rompeu a barragem do simbólico para invadir o real em sua forma concreta.

Diante de tantas autoridades, em tantas esferas, que frente à lama dizem agir “em nome do interesse nacional”, talvez seja a hora de começar a pintar a nossa Guernica para tentarmos uma representação da catástrofe. Uma Guernica de imagens, mas também de vozes. Uma Guernica de memórias e de testemunhos. Uma Guernica que confronte “o interesse nacional” e que o denuncie. Uma Guernica que exponha a perversão das barragens e também das fronteiras.

Porque a lama avança. E aquilo que atravessa o vão da porta da casa já não é poeira.



Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum