30 maio 2018

Monarquia e modernidade: um casamento irreal - por Maíra Zapater*


O noticiário internacional dessa última semana viu entre suas guerras, trumps e kims, um intruso festivo: a intensa cobertura sobre as mais recentes Bodas da Família Real inglesa: Meghan Markle e o Príncipe Harry. O caçula de Diana – “a princesa do povo” – juntava os trapinhos chiques com a moça negra (ou “birracial”, como ela se autorreferencia[1]), atriz, divorciada, em mais um “felizes para sempre” carimbado ao final de cada “sim” com véu e grinalda.
Não vou entrar na discussão sobre o quanto uma ultracobertura do evento como a que foi feita dificulta a vida de quem defende que o casamento está mais pra começo do que final, e que nem sempre é feliz. Nem no mérito de todos os problemas que decorrem de sua idealização como o objetivo máximo da vida de uma mulher – e como o pior que pode acontecer a um homem (falo sobre isso aqui).
“Poxa, Maíra, mas quanto amargor, quanta bile, quanto ódio. Adorei acordar cedo pra assistir aquela lindeza, o coral cantando foi espetacular, o Givenchy dela tava maravilhoso, produção digna de cinema! Parecia final de desenho da Disney!” (O curioso que até os estúdios Disney tem achado que as princesas com final feliz – o que para alguns memes significou “nunca mais pagar boleto” – já não vendem tanto). Mas como noveleira assumida, quem sou eu para criticar o entretenimento escapista alheio, qualquer que seja ele? Só acho complicado classificar um vestido de noiva como “feminista” (como insistiram alguns jornalistas de moda) já que a simbologia do vestido branco é justamente a garantia de virgindade (e, portanto, pureza) da noiva ao ser entregue para o único homem de sua vida. Difícil de sustentar como manifestação feminista, não?
Bom, pra quem não acompanhou o Grande Enlace e ficou sem entender nada dos memes: a cerimônia foi descrita por muitas reportagens como sendo “moderna” e “inovadora”, e que diversos detalhes da celebração simbolizariam importantes “quebras de tabus” (resumão com fotos tambémpode ser acessado aqui).E chamou minha atenção ver as reações de tantas pessoas positivamente impressionadas com o fato de a Família Real (o adjetivo aqui só dá pra grafar em maiúsculo, pois nada menos real que a Nobreza) ter “aceitado” que o 6º nome na linha de sucessão do trono se case com “alguém como Meghan” – ou seja, divorciada, negra, mais velha que ele, atriz – e mais, por ter “endossado” na formalíssima cerimônia o que seria toda uma nova “era de modernidade” e “quebra de tabus”, com a inclusão de um coral gospel e a celebração por um pastor negro citando Martin Luther King. Sua escolha de entrar sozinha na igreja para caminhar até o altar foi enaltecida como um “gesto feminista”. Que seria um sinal dos tempos e de renovar a fé no “progresso” da Humanidade, pois “até a Rainha” está se modernizando.
Vamos começar por aqui: “Rainha” e “Modernidade” são expressões necessariamente antagônicas. No Ocidente, a passagem pra Modernidade no século XVIII teve por principal feito (seja considerado como histórico ou como mítico) a incorporação da noção de igualdade perante a lei, o que impossibilitava que outro ser humano fosse considerado soberano pelo poder divino. Logo, “Família Real”, “Rainha”, “Príncipe”, “Princesa”, e todas as atribuições de títulos de nobreza atrelados ao direito de propriedade de terras (duques e seus ducados, condes e seus condados, barões e seus baronatos e assim por diante) não são instituições apenas conservadoras: são pré-modernas na acepção política do termo.
E aqui vale pensar um pouco sobre o papel da instituição do casamento na transição para a Modernidade. Para manter o clima britânico, chamemos para a conversa nosso caro William Shakespeare, autor de “Romeu e Julieta”, peça escrita por ele entre 1591 e 1595. A narrativa, adaptada à exaustão para o cinema, balé, televisão, quadrinhos e quase todo tipo de mídia, costuma ser referida como uma história de amor proibido e eternizado pela morte após os protagonistas, amantes adolescentes pertencentes a famílias ancestralmente inimigas, enfrentarem a tudo e a todos, mas, mesmo assim, vítimas do ódio e de uma sequência de enganos, acabarem se suicidando ao final – quanto a isso, quem já assistiu a qualquer uma das versões sabe que, se adaptada para a atualidade, um WhatsApp resolveria com facilidade todos os desencontros do casalzinho e os créditos subiriam à tela muito antes da punhalada final da Julieta desesperada.
Trata-se, porém, de uma peça de profundo conteúdo político: a ação de Romeu e Julieta reflete a situação política e social do período. Para Bárbara Heliodora[2] “o mais claro exemplo da preocupação com a rebelião e a guerra civil em obras não histórico-políticas é Romeo and Juliet (…), constituindo-se um sermão sobre os males da luta civil”, e observando-se na peça “a posição responsável de Escalus [o Príncipe de Verona] e sua preocupação com o bem-estar da comunidade” em oposição à “irresponsabilidade, a vaidade, o desrespeito à comunidade que prevalecem entre Montagues e Capulets, assim como prevaleceram por tantas décadas nas lutas feudais do século XV”.
Em outras palavras: na tragédia de Romeu e Julieta, é a falta do Príncipe (o do Maquiavel, não o do final dos contos-de-fada da Disney ou de Buckigham) a controlar a instabilidade e a violência decorrentes dos conflitos locais (ou familiares, como no caso dos Montechio e dos Capuleto) que impede que dois indivíduos (Julieta e Romeu) levem suas vidas conforme suas próprias vontades. Aqui reside a genialidade de Shakespeare, que antecipa em 200 anos o indivíduo moderno, cuja vontade é o centro do mundo (não à toa, uma parte expressiva do Direito Ocidental será construída após a modernidade tendo a vontade do indivíduo como centro de tudo: do dolo aos contratos, o que importa é a manifestação da vontade).
A citação a Shakespeare é importante para o argumento que pretendo aqui desenvolver porque, a partir do século XIX, com a consolidação da hegemonia das classes burguesas no poder político e a estruturação de seu modo de vida, a organização da vida privada sofre uma guinada: se antes casamentos eram instituições macropolíticas e que envolviam a união de reinos, famílias nobres e patrimônio para perpetuar o poder divino dos reis, o casamento burguês obedecerá – idealmente, é claro – ao amor e à vontade dos indivíduos. A oposição dos valores de igualdade e liberdade do indivíduo cidadão em face do poder absoluto do soberano farão da família a única forma “natural” de sociedade, e, sendo formada livremente pela vontade dos indivíduos, contribuirá para “desnaturalizar” o direito divino dos reis. Não é o poder divino dos reis que deve reger a sociedade, mas sim a família, que é sua base natural. Opa, parece familiar, não? Sim: em “O Contrato Social”, Rousseau, considerado um dos grandes nomes da filosofia iluminista, afirmará que a “mais antiga de todas as sociedades e a única natural, é a da família(…)”.
Com essa afirmação, Rousseau nega legitimidade à autoridade política do rei sobre seus súditos, que deverá ser substituída pelo modelo da autoridade do pai sobre os filhos. Assim se forma a família monogâmica heterossexual burguesa: o amor romântico é transformado em valor desejável e o casamento deixa de ser assunto político relacionado a união de reinos e patrimônios para se tornar objeto da vida privada. Não posso deixar de registrar, evidentemente, que esse processo é concomitante à atribuição dos cuidados com a vida doméstica às mulheres (já que sua anatomia assim favorecia, segundo o entendimento médico de então), e, com isso, nem de longe o casamento romântico como concebido nesse contexto pode ser considerado uma liberdade real para as mulheres.
De qualquer forma, podemos afirmar que a invenção moderna de se casar por amor com quem se escolheu já foi um ato revolucionário, e em oposição a quem? Justamente contra o poder dos reis. Então é o caso de refletirmos o quanto a cerimônia de casamento de Meghan e Harry tem de moderno, ou mesmo de real (aqui, grafado em minúsculo). Ou o quanto temos aqui de símbolos que expressam ideias de contestação política sendo apropriados pelo que há de mais conservador, a pretexto de se mostrar muito adequado para ainda permanecer vivo por muitos e muitos anos. The Queen is not dead: long live to the Queen.
No fim das contas, talvez não seja lá um problema tratar o casório real como um entretenimento divertido. Aliás, recentemente, a Casa dos Windsor tem sido tema recorrente de muito produto para consumo de entretenimento, o que pode levantar um outro questionamento: por que a essa altura do século XXI a dinastia Widsor – e o reinado de Elizabeth II – vem se tornando tema tão recorrente da produção da cultura pop? Série[3], filmes[4], novo casamento “real” e “moderno”, com potencial para agradar um público composto por gregos, troianos e militâncias. Talvez valha lembrar de alguns elementos, como o recente Brexit[5]ou a idade avançada de Elizabeth II: a vacância do trono pode abrir espaço para um novo questionamento da manutenção do regime monárquico – afinal, ainda que a expressão “Rainha da Inglaterra” faça referência a alguém cuja posição é meramente figurativa, na verdade a monarca tem lá seus poderes (veja aqui). É a Rainha do pós segunda guerra, do rock dos Beatles e dos Rolling Stones, do neoliberalismo de Margaret Tatcher e da Guerra das Malvinas. Talvez essas produções da cultura pop – onde, a meu ver, se inclui o registro, cobertura e exibição desse casamento – estejam procurando construir uma narrativa iconográfica de como “a Inglaterra é o que é hoje por conta dessa dinastia e desse reinado”.
Encerro este texto com trilha sonora – porque a Inglaterra de Elizabeth II também teve Sex Pistols: God save the Queen! -, e dizendo que, no fim das contas, moderno mesmo – no sentido mais político da palavra – foi Edward, o único caso conhecido de ex-príncipe (pelo menos até onde meu parco repertório de fofocas das famílias reais alcança): abdicou da coroa inglesa no auge do Império Britânico para se casar por amor – vejam a ironia (ou não?) – do destino, com uma mulher divorciada, Wallis Simpson[6].
P.S. – na próxima coluna retomo a série de artigos sobre as prisões em 2ª Instância. Até lá!
Maíra Zapater é Doutora em Direitos Humanos pela USP e graduada em Direito pela PUC-SP, e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.
Visto no: Justificando

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