18 fevereiro 2014


Ao assistir o DVD de Maria Bethânia, intitulado de Carta de Amor, percebemos que há um clima novo no ar. Para quem acompanha o trabalho da cantora sabe bem disso. Bethânia parece mais madura, seus versos ressoam com um ímpeto impressionante, como uma saraivada de balas prestes a fuzilar os presentes. A boca armada, porém, não tem a intenção de ferir ninguém. Ela, como em muitos de seus espetáculos, oferta ao espectador à oportunidade de pensar através da música, com letras marcantes adornadas com poemas e poesias escolhidos com profundidade pela intérprete, que dão toda a magnitude ao seu fazer artístico. Dessa vez, o tema central foi o amor, em toda a sua multiplicidade. Não o amor quebrantado, cheio de melodrama, mas àquele ferido, magoado, intenso, repleto de dolorosas intenções. Ou seja, Bethânia subliminarmente deixou o recado que o amor e a dor são parceiros inseparáveis, pena que poucos entenderam essa mensagem.

O show não poderia começar de forma mais apropriada. “Canções e momentos”, de Milton Nascimento, abre o espetáculo e Bethânia avisa que o ofício dela durante toda a sua carreira foi, e ainda é, fazer o casamento da música com os incontáveis momentos da vida. Depois disso, ela sangra ao som de Gozaguinha, numa intensidade impressionante. O impacto disso é brevemente aliviado com “Salmo”, a conseguinte canção. De repente, como um raio que rasga o céu e atinge o chão, ela se torna e dona do trovão, ousada representação de Iansã. É então que a materialização da religiosidade se apresenta para compor e decompor a cantora devota, que canta e dança no embalo da canção, como se estivesse invocando o próprio orixá feminino. Ela ainda recita Procelária, da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Anderson, assumindo a couraça da ave que “é vista quando há vento e grande vaga...”.

Com o fôlego no limite, ela recita ainda o belíssimo texto “Cântico Negro”, de José Régio. Nele, a cantora desabafa. Sua expressão desconfigura-se em ressentimento. A dor toma conta da sua face, mas é rapidamente substituída por outro sentimento, talvez raiva. Não sabemos ao certo. Tudo que vem dela assume uma incerteza absurda. O que pré-supomos é que seja um recado à polêmica envolta da Lei Rouanet, da qual ela acabou desistindo. Suposições que se encerram por aí, pois o pesar expresso por Bethânia vai além das difamações em torno da sua arte. Dói nela o desrespeito desse povo, que não valoriza o trabalho de artistas como ela, dedicados a valorizar o que ainda resta de poético no cancioneiro brasileiro. Machuca a perda da mãe, Dona Canô, importante ícone da cultura baiana e, consequentemente do país, que se foi durante a temporada de show da cantora. Entre tantas outras dores diárias, as quais anônimos, ou notáveis como Bethânia, não estão imunes. Tudo isso resultou no registro da Carta de Amor.

Incansável, ela dispara “Não enche”, música forte do seu irmão Caetano Veloso. Em seguida vem “Fogueira”, “Casablanca”, “Na primeira manhã”, todas intencionalmente convidando-nos a pensar. Sem perder o fio da meada, Bethânia canta “Calúnia”, um aviso claro sobre os perigos que as palavras exercem quando são mal ditas. Depois, envaidece com o clássico “Negue”, de Chico Buarque, como num gostoso deboche que questiona os presentes e todos aqueles que ousaram macular a imagem de Bethânia: “Diga que já não me quer...Negue que me pertenceu...”. É difícil dizer que não, diante de uma interpretação sobriamente perfeita. Quase no final do I ato, ela canta “Barulho”, uma silenciosa poesia, que acalma o frenesi da anterior. Aí vem a “Fera ferida”, mas viva, resistente e pronta para atacar, se acuada. Nos últimos instantes, ela emociona e pergunta: “Quem me leva os meus fantasmas?” como se clamasse por ajuda, sem resposta.

No II ato, Bethânia faz a “Festa” com Gonzaguinha. Mesmo cometendo uma falha no início da canção, nada parece abalar o estrelato dessa artista. Rapidamente, ela se recompõe e volta a fazer o que faz de melhor, encantar. Continua a interpretar grandes nomes da nossa música, entre eles Arnaldo Antunes, Dorival Caymmi e Chico César. Este último merece o destaque para a emocionante interpretação da cantora para a música “Estado de poesia”, a qual ela deixa mais um dos inúmeros recados subliminares desse show. E o espetáculo não podia deixar de tocar os sambas de roda baianos, com suas toadas características e o gingado para lá de peculiar. Após musicar a casa de várias formas, Bethânia canta a canção mais aguardada, “Carta de amor”, que dá nome ao CD e ao DVD. Forte, intrigante, e, por vezes, ameaçadora, a intérprete anuncia “Não mexe comigo, que eu não ando só...”. Claro que não. Ela anda rodeada de fé, numa espiritualidade exemplar que deveria servir de modelo para essa sociedade de incrédulos, sobretudo aqueles que exterminam a fé alheia sobrepondo uma doutrina sobre as outras.

Impossível não ser impactado pelo bom gosto musical de Bethânia. Seu trabalho de seleção de repertório não pode ser encarado como um mero show. É um espetáculo engenhoso de uma artista preocupada em retratar um Brasil musicalmente genuíno, sem a pirotecnia e a artificialidade que dominam a cena musical do país. Bethânia, nesse sentido, é uma relíquia, uma obra de arte viva, da qual poucos têm a sensibilidade de apreciar. Por desconhecer sua essência nos palcos, os leigos preferem calunia-la, com palavras ferinas que não condizem com o seu fazer artístico. Diante disso, ela tentou se neutralizar, ou se armar, talvez. O resultado foi o espetáculo Carta de Amor, do qual ela mostra a que veio e não se apresenta abalada pelas críticas ou pela falta de sensibilidade poética daqueles que vivem nessa nação. Pelo contrário, ela nos mostra a face do amor real, aquele que se entrega e, por isso, sofre. E ela sofreu ao fazer esse show, de inúmeras formas. Sofreu de saudade daqueles que se foram; de frustração por não ser valorizada e de pena por não ser entendida. Tomara que, no amor ou no ódio, na alegria ou na tristeza, e sempre com saúde, Bethânia continue fazendo seu belíssimo trabalho de abrilhantar os palcos brasileiros com arte de verdade.
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Ellen Page, que refletiu sobre dificuldade em “sair do armário”
E se formos muito mais que gays ou héteros? E se houver uma galáxia de identidades sexuais, que devem ser definidas, antes de tudo, por cada um@?
Por Marília Moschovich
Na sexta-feira a atriz Ellen Page se assumiu lésbica em um discurso público pela primeira vez. Entre tantas coisas lindas que disse, refletiu sobre a dificuldade em “sair do armário” (leia o discurso completo aqui). Quando compartilhei a informação com outras pessoas, muita gente disse coisas do tipo “eu já sabia”. Assim como muita gente usa frequentemente o termo “gaydar” (querendo dizer que haveria uma espécie de radar gay, que permite algumas pessoas identificarem mais facilmente quem é gay ou não). Esses comentários não vieram de pessoas homofóbicas, conservadoras, ausentes da discussão sobre os direitos e a condição LGBT num mundo heteronormativo. Pelo contrário, vieram de muit@s companheir@s de luta. Por isso decidi usar minha coluna de hoje como um apelo e lhes dizer: parem. Apenas parem.
Enquanto mulher bissexual, esse tipo de classificação me parece extremamente arbitrária. Por vários motivos, mas principalmente porque se baseia nos mesmos estereótipos que autorizam violência simbólica e física contra a população LGBT, e porque é autoritário ao querer definir para um indivíduo algo que só pode ser definido por ele ou ela mesm@: sua identidade sexual.
Ao dizer que há um “gaydar” ou “eu já sabia”, as pessoas o fazem com base em estereótipos sobre essas diferentes categorias de pessoas. Esses estereótipos em geral estão ligados à expressão de gênero – pessoas “mais femininas”, “mais masculinas” ou com “um certo jeito” que não se sabe bem explicar. A questão é que a expressão de gênero contém matizes extremamente variadas de masculinidade e feminilidade combinadas, o que já mina esse tipo de classificação externa desde o começo. Além disso, a expressão de gênero não é associada necessariamente com certo conjunto de práticas sexuais. Nenhum homem precisa ter uma expressão de gênero espartana para ser heterossexual, por exemplo.
Essa associação automática que fazemos entre um certo tipo de expressão de gênero e certo conjunto de práticas sexuais faz parte do que a filósofa Judith Butler chamou de “matriz heterossexual”. Essa “matriz” seria a associação compulsória exigida em nossa sociedade entre o tipo de corpo que se tem (corpos “masculinos” e “femininos”), uma determinada identidade de gênero (ser “homem” ou “mulher) e a heterossexualidade como norma. Nesse modelo hegemônico de pensamento, o ser humano “normal” seria um homem que tem um corpo masculino (sobretudo um pênis, mas há outros marcadores como pelos, músculos, formato do corpo, cabelo e outros signos culturais do corpo) e transa com mulheres, ou uma mulher que tem um corpo feminino (vagina, seios, curvas, pouco pelo, cabelos longos, etc) e transa com homens. Qualquer pessoa que foge à essa regra é considerada anormal, estranha, doente, menos humana.
Quando falamos em “gaydar” ou dizemos “eu já sabia” quando alguém “sai do armário”, estamos reforçando esse modelo que é simbolicamente violento. É essa violência simbólica, porém, que autoriza na prática os episódios que nos tornam um dos países que mais matam sua população LGBT no mundo. Classificar as práticas sexuais alheias é sempre uma violência, já que para isso partimos de estereótipos que sustentam esse modelo opressor que podemos chamar de “matriz heterossexual”. Reforçamos a associação entre feminilidade ou masculinidade e certas práticas sexuais – o que, convenhamos, não faz o menor sentido.
Dentro dessa perspectiva, só há uma maneira não-violenta de tratar a sexualidade alheia: deixar que o outro se defina. Além da questão simbólica de que estou falando, entra aí uma outra questão, muito mais concreta e de ordem prática: você nunca vai saber sobre as práticas e desejos do outro tanto quanto ele. Se você vir duas mulheres se beijando na rua, você assume que elas sejam lésbicas? Mas não poderiam ser bissexuais? Pansexuais? Ou mesmo heterossexuais que uma vez na vida estão experimentando beijar alguém do mesmo gênero?
Ser lésbica, gay, bissexual, pansexual e toda e qualquer outra forma de identidade sexual é como ser negro, branco, mulher, homem: uma classificação individual ligada à identidade. Ninguém jamais poderá dizer ao outro como se identificar sem que isso seja absurdamente autoritário e violento. Negar ao outro sua identidade sexual é cometer uma violência sexista.
Por fim, creio que vale o bom e velho argumento: será que isso é mesmo da sua conta? Você precisa ter uma opinião sobre a identidade sexual do outro sem que o outro se coloque essa identidade? Precisa parar pra pensar nisso, ficar supondo ou tentar adivinhar? Para quê?
A cada vez quem um/a companheiro/a de militância fala em “gaydar” ou “eu já sabia”, me sinto agredida. E se fosse eu? Quem é você pra me dizer o que eu sou ou deixo de ser, achando que sabe mais do que eu mesma?
Apenas parem.

Visto no: Outras Palavras
O nosso rei era especial, arauto da psicodelia do amor puro e cafajeste, que na cabeça limitada e hipócrita de outros “reis” é um paradoxo, um contratempo existencial.
O nosso rei era aquilo que feministas baratas chamariam de machista filógeno, mas que eu chamo de Macho Primordial. Se ele era a raposa e ela as uvas, que problema havia em objetificá-la metaforicamente ou em querer roubar-lhe um beijo? Se ela trai o marido em plena lua-de-mel, é bom avisar que seu cartaz está aumentando. Principalmente quando seu corpo é meigo e tão pequeno, uma espécie de veneno tão gostoso de provar.
O nosso rei tinha fé, mas não se escondia por trás de uma hipocrisia de beato, não negava aquilo que sempre foi, nunca deixou de cantar aquilo que sempre cantou. Nunca negou seus princípios e, o mais importante, sempre cantou sobre o seu lugar, sobre o seu povo.
Que eu saiba, o nosso rei nunca ficou debaixo da saia de nenhuma Ditadura, seja aqui ou no exterior. Nunca exaltou assassinos ou mesmo bajulou poderosos. Sempre foi um cantor do povo. Sempre cantou para o povo. Esse é um dos maiores atos democráticos que o artista pode praticar.
Ele, o nosso rei, se foi. Mas só depois de cantar o amor da forma mais rasgada e leviana, de trazer a dor daquele que realmente a sentiu, sem platonismos pasteurizados ou melosidades imbecis. Acima de tudo, o nosso rei foi o embaixador da dor de corno, aquela que todos têm, mas que a maioria esconde por trás de uma covardia disfarçada de autoproteção.
O nosso rei abdicou da pose de fodão para se juntar aos que vivem no limbo entre o amor e a dor da traição. Ele é rei por ser um de nós, não por querer parecer diferente.
Viva ao rei e abaixo aos impostores!
REGI
Visto no: Palavras do Guma

Por pressão das bancadas fundamentalistas, Brasil pode ter lei que reduz grávidas a objetos reprodutivos. É hora de barrar ameaça
Por Marília Moskcovitch, editora de Mulher Alternativa
Um mundo onde as mulheres férteis são corpos a serviço do Estado. Elas servem para gerar bebês, reproduzir a espécie. Seus corpos são assunto público. É dever delas e de toda a sociedade cuidar desses corpos, mantê-los em boas condições. Elas são um serviço. Atentar contra este serviço é crime: qualquer ameaça a sua integridade física é punida severamente, quer venha delas mesmas ou de outrem. Por isso, são confinadas em espaços ultra-seguros, numa rotina rígida que inclui todas as práticas que a medicina considera apropriadas antes, durante e depois de uma gravidez. A vida destas mulheres vale menos do que os óvulos ainda não fecundados em seus ovários, e menos ainda do que a existência da potencial pessoa, ainda em forma de feto enquanto estão grávidas.
O cenário de horror que descrevo foi inspirado no livro O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), de Margaret Atwood. Está longe da ficção, porém: a legislação brasileira pode instaurar o mesmo tipo de contexto se algo não for feito rápido. Muito rápido.
O Projeto de Lei 478/2007, “Estatuto do Nascituro” (acesse na íntegra aqui), tramita na Câmara Federal e deve ir a votação dentro de pouco tempo. Já em seus primeiros parágrafos define que “o ser humano” começaria “na concepção”. Um erro crasso, já que a própria legislação brasileira, que proíbe o aborto, permite a pílula do dia seguinte. A pílula do dia seguinte não permite que o óvulo fertilizado se fixe nas paredes do útero e, se esse óvulo fertilizado já é vida (segundo as correntes religiosas que endossam esse projeto de lei), a pílula do dia seguinte seria o equivalente a um assassinato. Ejaculação também. É neste tipo de distorção que o Estatuto do Nascituro se baseia. Uma discussão muito lúcida sobre essa suposta “defesa da vida” está no texto “Aborto: é possível ser pró-vida e pró-escolha ao mesmo tempo?” do conhecido cientista Carl Sagan (leia aqui).
O texto do PL defende que o “nascituro” (ou seja, algo que pode ser um embrião ou um feto em qualquer estágio de desenvolvimento, pois não há especificação alguma sobre isso no projeto) tenha direito à vida (antes de nascer estaria ele morto?), à educação (intra-uterina?), à saúde (porque, afinal de contas, a saúde da grávida não importaria tanto, se não fosse pelo embrião ali dentro), à alimentação (alguém já viu grávida fazer greve de fome? Seria crime então uma mulher que passa fome engravidar, se esse PL fosse aprovado?), entre outras barbaridades e incongruências. Ao fazê-lo, coloca o embrião e o feto enquanto sujeitos de direitos numa posição mais alta do que as próprias mulheres grávidas na hierarquia de quem “merece” mais direitos e proteção do Estado e da sociedade. A função da pessoa grávida passa a ser interesse público, como se ela estivesse prestando um serviço à sociedade.
No artigo 8º chega a ser ridícula a proposição de que seria dever do SUS tratar o “nascituro” em condições iguais às de uma criança. Os artigos 9º e 10º buscam enfatizar que todo embrião ou feto necessariamente tem que nascer, mesmo que não haja expectativa de vida fora do útero, como no caso dos anencéfalos cujo aborto já é entendido como legal no Brasil.
Mais à frente, o artigo 13º é o que talvez represente o retrocesso mais odioso de todo o PL: propõe que todo embrião ou feto concebido a partir de estupro (que eles têm a “delicadeza” de chamar apenas de “violência sexual” no texto) também tenha que nascer. Este artigo ignora completamente a situação de violência vivida pela pessoa grávida e oferece uma pensão durante o primeiro ano de vida. Um suborno estatal para que pessoas que foram estupradas não façam aborto.
O texto ainda é recheado de punições penais desproporcionais caso as pessoas grávidas (que, neste escopo, se tornariam menos pessoas ao se tornarem grávidas) não sigam essa cartilha do bom comportamento, que não apresenta sequer critérios específicos como parâmetro do que “causa mal” ao tal “nascituro”, do que seria “negligência”, etc. uma vez que nem mesmo na medicina há consenso sobre que práticas são melhores ou piores para um feto em gestação.
Há risco real de estas atrocidades serem aprovadas em breve. Por este motivo os movimentos de mulheres tomaram a dianteira em organizar um abaixo-assinado nacional que mostre, nas audiências públicas e gabinetes de políticos, que a sociedade brasileira desaprova essa tutela; que entende que um projeto de lei como esse é uma ameaça muito grave aos direitos humanos de mulheres. Embora uma assinatura num documento digital pareça pouco, vale lembrar que a opinião pública ainda tem algum peso (ainda bem) na atuação de vários representantes e instituições. É o mínimo, mas o mínimo precisa ser feito.
A declaração geral do abaixo assinado, mostrando pontos cruciais de retirada de direitos que essa legislação prevê, pode ser lida aqui. No mesmo endereço, você também pode contribuir com sua assinatura no documento.
O livro de Margaret Atwood é terrível. Terrível por ser verossímil, se não agirmos rápido para garantirmos direitos básicos que não deveriam sequer estar em disputa. Ela descreve, na distopia que nos horroriza, a relação que as aias, servas reprodutivas, têm com o sexo obrigatório oferecido aos Comandantes – homens em altas posições sociais, para quem trabalham.
“Minha presença aqui é ilegal. É proibido para nós ficarmos sozinhas com os Comandantes. Nós servimos para procriar: não somos concubinas, gueixas, cortesãs. Pelo contrário: o máximo possível foi feito para nos tirar destas categorias. Não deve haver nada de interessante em nós, não deve haver espaço para a luxúria; nenhum favor deve ser trocado, por nós ou por eles, e não deve haver brechas para o amor. Somos úteros com pernas, apenas: invólucros sagrados, cálices ambulatoriais.”[1]
[1] Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (“O Conto da Aia”), capítulo 23, tradução livre.
Visto no: Outras Palavras

O nordeste é poesia, 
Deus quando fez o mundo 
Fez tudo com primazia, 
Formando o céu e a terra 
Cobertos com fantasia. 
Para o sul deu a riqueza, 
Para o planalto a beleza 
E ao nordeste a poesia. 
(trecho de patativa do assaré).

Rasgo de leste a oeste como peste do sul ao sudeste 
Sou rap agreste norte-nordeste epiderme veste 
Arranco roupas das verdades poucas das imagens foscas 
Partindo pratos e bocas com tapas mato essas moscas 
Toma! eu meto lacres com backs derramo frases ataques 
Atiro charques nas bases dos meus sotaques 
Oxe! querem entupir nossos fones a repetirem nomes 
Reproduzindo seus clones se afastem dos microfones 
Trazem um nível baixo, para singles fracos, astros de cadastros 
Não sigo seus rastros, negados padrastos 
Cidade negada como madrasta, enteados já não arrasta 
Esses órfãos com precatas, basta! ninguém mais empata 
Meto meu chapéu de palha sigo pra batalha 
Com força agarro a enxada se crava em minhas mortalhas 
Tive que correr mais que vocês pra alcançar minha vez 
Garra com nitidez rigidez me fez monstro camponês 
Exerce influência, tendência, em vivência em crenças destinos 
Se assumam são clandestinos se negam não nordestinos 
Vergonha do que são, produção sem expressão própria 
Se afastem da criação morrerão por que são cópias 
Não vejo cabra da peste só carioca e paulista 
Só frestyleiro em nordeste não querem ser repentistas 
Rejeitam xilogravura o cordel que é literatura 
Quem não tem cultura jamais vai saber o que é rapadura 
Foram nossas mãos que levantaram os concretos os prédios 
Os tetos os manifestos, não quero mais intermédios 
Eu quero acesso direto às rádios palcos abertos 
Inovar em projetos protestos arremesso fetos 
Escuta! a cidade só existe por que viemos antes 
Na dor desses retirantes com suor e sangue imigrante 
Rapadura eu venho do engenho rasgo os canaviais 
Meto o norte nordeste o povo no topo dos festivais, toma!

Refrão:

Êha! ei! nortista agarra essa causa que trouxeste 
Nordestino agarra a cultura que te veste 
Eu digo norte vocês dizem nordeste 
Norte nordeste norte nordeste 
Êha! hei! nortista agarra essa causa que trouxeste 
Nordestino agarra a cultura que te veste 
Eu digo norte vocês dizem nordeste 
Norte nordeste norte nordeste

Poesia:

Minhas irmãs, meus irmãos, oxe! se assumam como realmente são 
Não deixem que suas matrizes, que suas raizes morram por falta de irrigação 
Ser nortista & nordestino meus conterrâneos num é ser seco nem litorâneo 
É ter em nossas mãos um destino nunca clandestino para os desfechos metropolitanos.

Devasto as galerias tão frias cuspo grafias em vias 
Espalho crias nas linhas trilhas discografias 
Arrasto lp's, ep's cds, dvds 
Cachês, clichês, surdez, vocês? não desta vez! 
Esmago boicotes com estrofes em portes cortes nos flogs 
Poetas pobres em montes dão choques em hip pops 
Versos ferozes em vozes dão mortes aos tops blogs 
Repente forte do norte sacode em trotes galopes 
Meto a fita embolada do engenho em bilhetes de states 
Dou breaks em fakes enfeites cacete nas mix tapes 
Bloqueio esses eixos os deixo sem alimentação 
Alheios fazem feio nos meios de comunicação 
Essas rádios que não divulgam os trabalhos criados em nossos estados 
Ouvintes abitolados é o que produz 
Contratos que pagam eventos forçados com pratos sobre enlatados 
Plágios sairão entalados com esse cuscuz 
Ao extremo venho ao terreno me empenho em trampo agrônomo 
Espremo tudo que tenho do engenho a um campo autônomo 
Juntos fazemos demos oxigênios anônimos 
E não gêmeos fenômenos homogêneos homônimos 
Caros exteriores agrários são os criadores 
Diários com seus labores contrários a importação 
São raros nossos autores amparo pra agricultores 
Calcários pra pensadores preparo pra incitação 
Sou côco e faço cocada embolada bolo na hora 
Minha fala é a bala de agora é de aurora e de alvorada 
Cortando o céu da estrada do nada eu faço de tudo 
Com a enxada aro esse mundo e no estudo faço morada 
Sou doce lá dos engenhos e venho com essa doçura 
Contenho poesia pura a fartura de rima tenho 
Desenho nossa cultura por cima e não por de baixo 
Não sabe o que é cabra macho? me apresento rapadura 
Espanco suas calças largas com vagas para calouros 
Estranha o som do gonzaga a minha sandália de couro 
Que esmaga cigarras besouros mata nos criadouros 
Meu povo o maior tesouro amor regional duradouro 
Recito os ribeirinhos o mara - baixo em vivência 
Um norte com essência não enxerga essa concorrência 
São tão iguais ouvi vários e achei que era só um 
Se no nordeste num tem grupo bom 
Não tem em lugar nenhum, toma!

Refrão:

Êha! ei! nortista agarra essa causa que trouxeste 
Nordestino agarra a cultura que te veste 
Eu digo norte vocês dizem nordeste 
Norte nordeste norte nordeste

Êha! ei! nortista agarra essa causa que trouxeste 
Nordestino agarra a cultura que te veste 
Eu digo norte vocês dizem nordeste 
Norte nordeste norte nordeste.


“Incrível” e “inacreditável” querem dizer a mesma coisa — e não querem. “Incrível” é elogio. Você acha incrível o que é difícil de acreditar de tão bom. Já inacreditável é o que você se recusa a acreditar de tão nefasto, nefário e nefando — a linha média do Execrável Futebol Clube.
Incrível é qualquer demonstração de um talento superior, seja o daquela moça por quem ninguém dá nada e abre a boca e canta como um anjo, o do mirrado reserva que entra em campo e sai driblando tudo, inclusive a bandeirinha do córner, o do mágico que tira moedas do nariz e transforma lenços em pombas brancas, o do escritor que torneia frases como se as esculpisse.
Inacreditável seria o Jair Bolsonaro na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara em substituição ao Feliciano, uma ilustração viva da frase “ir de mal a pior”.
Incrível é a graça da neta que sai dançando ao som da Bachiana nº 5 do Villa-Lobos como se não tivesse só cinco anos, é o ator que nos toca e a atriz que nos faz rir ou chorar só com um jeito da boca, é o quadro que encanta e o pôr de sol que enleva.
Inacreditável é, depois de dois mil anos de civilização cristã, existir gente que ama seus filhos e seus cachorros e se emociona com a novela e mesmo assim defende o vigilantismo brutal, como se fazer justiça fosse enfrentar a barbárie com a barbárie, e salvar uma sociedade fosse embrutecê-la até a autodestruição.
Incrível, realmente incrível, é o brasileiro que leva uma vida decente mesmo que tudo à sua volta o chame para o desespero e a desforra.
Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil, e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa, venha justamente de associações médicas.
Incrível é um solo do Yamandu.
Inacreditável é este verão.
meninas-desfilam-rolezinho
Duas perguntas, sobre o novo fenômeno. Por que o papel das meninas parece tão secundário? E por que a masculinidade negra é tão reprimida?
Por Marília Moschkovich, na coluna Mulher Alternativa
No meio de todo o auê sobre os tais rolezinhos, me peguei encafifada: ninguém falou uma palavra sobre a maneira como o gênero incide ali. Mas isso se dá em tantos aspectos que já peço desculpas, de antemão, caso não consiga me expressar bem neste breve texto.
“Gênero” é parte de nossas vidas o tempo todo, em praticamente tudo que fazemos, e não só quando debatemos mercado de trabalho, militância feminista, transgeneridade e uso de banheiros públicos. É um sistema de pensamento que se retroalimenta com nossas ações. Isso quer dizer que faço um monte de coisas como “mulher” por causa desse sistema; mas ao mesmo tempo, quando as faço, reforço o sistema. É uma via de mão dupla, melhor explicada em textos como estes (123). O ponto da coisa é que nossa maneira de pensar, ver o mundo e existir nele está pautada por um esquema que associa uma série de características a “ser homem” e “ser mulher”, além de contar com um leque limitado de categorias que não necessariamente expressa a diversidade e pluralidade existencial da humanidade.
Acontece que, como as feministas negras vêm dizendo — ou melhor berrando (pois foi preciso muito pulmão pra se fazer ouvir) — nas últimas décadas, não existe gênero “puro”. Quer dizer, as opressões produzidas por esse sistema (que é cissexista,machista e heteronormativo) entrelaçam-se com outros sistemas, como de relações raciais, sabidamente racista. Inseridos num contexto capitalista, então, esses dois conjuntos de forças se tornam ainda mais complexos, associando-se às relações entre classes sociais.
Muito já foi muito — e bem — sobre as questões raciais e de classe envolvendo os rolezinhos e, sobretudo, a reação da classe média/alta branca e dos empresários ao fenômeno. Mas, e o gênero? Pois as relações de gênero me saltam aos olhos em dois pontos específicos dos rolês.
Em primeiro lugar, na ausência de meninas. Já repararam como as fotos, entrevistas, depoimentos e afins são em geral de meninos? As meninas aparecem quase exclusivamente nos discursos desses meninos, como “gatas” que beijam ou “fãs” que encontram durante os eventos. O único depoimento mais detalhado de uma menina, que eu me lembre de ter lido, foi justamente de uma fã contando como gastava seu salário em presentes para os ídolos da internet. Dá pra destrinchar essa ausência de meninas em diferentes novas perguntas:
Será que os rolezinhos são sempre organizados por meninos? Ou será que os jornalistas entrevistam mais os meninos? Quem sabe há meninas organizando rolezinhos, mas que se omitem na hora de vir a público? Em qualquer um dos casos, há reforço de uma hierarquia de gênero historicamente construída, que relega às mulheres o espaço privado e aos homens o espaço público, a figura de porta-vozes, ou os papeis de liderança – seja do que for.
Me pergunto ainda se há meninas-ídolo, também (o que não apareceu em absolutamente nenhuma reportagem até agora – por quê?). Mais ainda, se os fãs dessas meninas gastam todo seu salário com as “ídolas” – o que acho improvável. Na maneira corrente de pensar, em nossa sociedade, mulher não vale tanto assim. Muito menos se fica se expondo publicamente. Não à toa, me parece que as poucas “ídolas” que encontrei pelo Facebook têm significativamente menos seguidores e fãs do que os ídolos homens. Arrisco dizer que o raciocínio é relativamente simples: mulher que “tem valor” não fica aí, sendo adorada por muitos e, se “não tem valor”, não vou dar minha “preciosa” curtida/seguida. A mentalidade machista que busca controlar a vida sexual e, sobretudo, o corpo das mulheres, aparece escancarada nessas variações, assimetrias e desigualdades entre os papéis de meninas e meninos na história toda dos rolezinhos.
Ao mesmo tempo, em segundo lugar, é impossível olhar para a reação abusiva da polícia com essas crianças (é isso, sim que são: crianças) e não reconhecer a criminalização da masculinidade negra. Se, por um lado, esses meninos encontram-se em posição de privilégio em relação ás “fãs”, “gatas” e meninas que frequentam os rolezinhos, por outro são massacrados quando seu gênero se associa à classificação racial fenotípica de “negro” (que nada, mas nadinha de nada mesmo tem a ver com condições biológicas – ou alguém viu policial com teste de DNA instantâneo por aí? Ou alguém ainda acredita que “raça” possa ser definida geneticamente?).
Uma das razões pelas quais as imagens que vemos dos rolezinhos têm poucas ou nenhuma mulher, é porque são imagens ligadas aos momentos de repressão dos participantes. Se a mulher negra sofre, por um lado, todo o peso do entrelaçamento de dois sistemas cruéis de pensamento (gênero e raça), em nosso contexto atual também existe uma criminalização forte dos homens negros. Há, em curso, um genocídio dessa fatia da nossa população à qual grande parte dos organizadores e frequentadores dos rolezinhos pertencem. Isso se dá pela condição racial de negro, mas especialmente pela condição generificada de homem.
Não é à toa que os homens negros são a maior parte da nossa população carcerária, nem que os jovens homens negros estão na mira das armas de fogo da polícia. Existe todo um sistema intercruzado de gênero e raça que os coloca vulneráveis nessa batalha contra a população pobre e negra, de uma maneira muito singular. Alguns bons textos sobre isso podem ser lidos aquiaqui e especialmente aqui.
É impossível, portanto, acompanhar as notícias, comentários, entrevistas e análises sobre os rolezinhos, ignorando a questão de gênero. Ou melhor, é possível: contanto que se assuma que há uma fatia imensa da coisa sendo jogada para baixo do tapete.
Visto no: Outras Palavras

09 fevereiro 2014


O beijo é uma das práticas mais antigas da humanidade. Suas aparições configuram desde a era pré-cristã, envolvendo o encontro entre os lábios das pessoas em outras, ou em objetos. Sua significância também é bem ampla. Passa pela afeição, carinho, respeito, sexo e até os sentimentos ruins como inveja, falsidade, hipocrisia, etc. No geral, nossos impulsos mais humanos são realizados a partir do beijo, para enfatizar nossos desejos, sexuais ou não, pelo outro. Com o tempo, porém, esse ato foi ganhando algumas restrições e, à medida que a humanidade avançava, novos modos de encará-lo foram sendo tomados. O que antes era carinhoso, hoje se tornou vergonhoso, sobretudo quando ataca as normas sociais vigentes. Agora, disso tudo, o que não mudou foi a sua importância, pois ao longo da história o beijo foi capaz de estabelecer grandes mudanças para toda a humanidade.

Quem não se lembra do beijo que Judas ofertou a Jesus Cristo. Infelizmente, o mais famoso e lembrado do mundo não foi realizado a partir de um ato de amor. A traição de Judas personificou-se num singelo beijo no rosto. Disso, podemos inferir que, mesmo sendo fruto de uma traição, ele teve a sua importância. Na verdade, ao beijar desonrosamente a face de Cristo, Judas nos dá um exemplo de como o ser humano pode ser maledicente, mesmo nas práticas mais sublimes. Como nós somos hipócritas uns com os outros, beijando indivíduos dos quais nutrimos sentimentos contrários ao afeto. O beijo de Judas também serviu para a consagração de Cristo na terra e, evidentemente, a Sua perpetuação ao longo do tempo. Ou seja, da covardia de um nasceu à ascensão do outro. Beijar, então, nesse exemplo, deixou dois legados: o de refletir sobre a imensa capacidade humana de falsear seus sentimentos e, ao mesmo tempo, a infindável soberania do bem sobre o mal.

Maldade essa que também teve avolumadas modificações ao longo da história. Grandes autoridades do mundo, que passaram anos se digladiando, beijaram-se em sinal de paz, selando uma trégua através do encontro entre seus lábios. O fim de uma guerra também já foi motivo para marcantes beijos ao longo da história. Em 1945, por exemplo, em plena Times Square, um marinheiro e uma enfermeira selaram um dos mais incríveis beijos da história, em comemoração ao fim da II Guerra Mundial entre os Estados Unidos e o Japão. Na época, a fotografia foi imortalizada pela revista “Life” e sempre é lembrada como símbolo de conquista, sobretudo levando-se em conta a vitória americana na guerra e a sua soberania mundial depois disso. Mesmo anônimos, os personagens do beijaço pós-guerra serviram de modelo histórico do poderio estadunidense, ampliando a força desse país para o mundo.

Por aqui, faz pouco tempo que o Brasil se surpreendeu com o beijo gay entre os personagens de Matheus Solano e Thiago Fragoso, no último capítulo da novela global, amor à vida. Como era de se esperar, a repercussão de dois homens se beijando, em pleno horário nobre, deu muito que falar, sobretudo para aqueles que encaram ainda essa demonstração de afeto com estranheza.  No entanto, para além da “polêmica” em torno desse ato, devemos centralizar nossos olhares no personagem principal de tudo isso: o beijo. Ele que ganha múltiplas conotações de cultura para cultura e suscita em nós as mais variadas sensações. Entretanto, mesmo sabendo disso, agimos com profunda ojeriza ao ver a materialização do beijo entre homossexuais, como se houvesse uma inverdade no ato, ou ainda, como se o beijo estivesse destinado ao campo exclusivo da heterossexualidade. Por causa dessa “exclusividade”, o país não avança no combate ao preconceito de gênero e orientação sexual.

Mas, o beijo não é apenas símbolo de polêmicas. No cinema, ele embala os casais apaixonados, despertando as mais intensas sensações nos telespectadores que sonham em viver um amor tão intenso quanto daqueles personagens que se beijam loucamente. O beijo também pode ser fraterno, como de uma mãe ao acariciar seus filhos com os lábios, orientando-os para a vida. Beijar ainda pode manifestar um profundo respeito por quem recebe esse gesto. Geralmente, o beijo respeitoso é direcionado a pessoas que ocupam posições hierárquicas, como políticos, religiosos, e idosos. Diante disso, nos perguntamos como intenções tão comuns poderiam mudar o mundo. O beijo de amor pode desembocar numa grande história romanesca. O beijo materno pode nos livrar dos males que os percalços da vida nos proporcionam. O beijo respeitoso pode curar feridas antigas e ainda tornar o mundo num lugar gerido pela tolerância. Ou seja, o beijo muda a nossa vida, o mundo.

Não tem como não falar de beijo sem mencionar a clássica obra escultural de Auguste Rodin, denominada simplesmente como “O Beijo”. Simplicidade esta que se encerra no nome, pois a intensidade com que foi talhada essa escultura denota a mimética realidade com que o beijo é realizado entre nós. O aconchego ardente entre os lábios de um casal apaixonado, que encontra na boca do outro um refúgio perfeito. Beijar, então, significa tudo isso e não pode ser estigmatizado por preconceitos ou tabus ancestrais, que reduzem essa prática a determinados nichos.  Se há verdade no beijo então que ele seja concretizado. A história tem mostrado que, para bem ou para mel, o beijo teve e tem a sua significância. Ignorá-lo significa tangenciar a mudança que a sociedade inevitavelmente vivencia. O melhor é evitar certos bloqueios e dar espaço para a mimetização do amor, pois como dizia Drummond “o amor é grande e cabe no breve espaço de beijar”.

"Pra quê feminismo?", ouvimos com frequência. Tentam explicar o suposto anacronismo do movimento: "mulheres já podem votar, fazer faculdade, trabalhar fora, tomar pílula." Ignoram que isso tudo foi conquistado exatamente com o tal feminismo. Nada disso foi entregue de mão beijada.
Parece irreal. Afinal, as sufragistas foram às ruas lutar pelo direito de votar há mais de cem anos. A segunda onda do feminismo, a que nos deu alguns direitos reprodutivos, começou em 1960. Nossos direitos nem deveriam mais estar em discussão. É bizarro que tenhamos de lutar por uma premissa básica, muito básica: homens e mulheres devem ser tratados como iguais. Deveria ser óbvio. Mas não é.
Olhando de longe, parece que está tudo bem. Você sai às ruas e vê mulheres interagindo socialmente, dirigindo, saindo sozinhas, pagando contas. Chegando mais perto, conversando com essas mulheres, você percebe que elas sofrem violências diárias por causa do seu gênero.
Está no contracheque, apontando um salário 30% menor que o colega homem que exerce a mesma função.
Está no medo de usar o transporte público. No ônibus, vai precisar se afastar do corpo do outro passageiro. Muitas vezes, fingir que não está percebendo a agressão dos olhares, palavras e - horror dos horrores - toques. Ela vai repensar a própria roupa. Estaria curta demais? O decote, muito provocativo? É a bunda que cresceu mais do que devia? É culpa dela?
Está nas dezenas de revistas femininas que ensinam como fisgar um homem, como se vestir, como se portar, como se maquiar, como se depilar, como e o que falar para estar dentro de um padrão irreal que a sufoca diariamente. Ela nunca vai estar perfeita. Ela nunca vai ser boa o suficiente. Ela precisa tentar, gastar horas do seu dia e muitos reais do seu salário atrás desse ideal, ou "nenhum homem vai querer" com aquela barriga, com aquele cabelo, com aqueles peitos.
E, caso ela não goste de homem, é porque não encontrou nenhum que a satisfizesse, e não porque essa é a sua orientação sexual. Caso ela opte fugir desse padrão, tem que querer quem a quiser, sem o direito de dizer não. O "não" da mulher vale muito pouco, quase nada.
O corpo dela será sempre motivo de regulação e análise.
Se ela quiser ter vida sexual ativa, terá de se "cuidar". Usar métodos contraceptivos e exigir que seu parceiro, se ela for heterossexual, use camisinha. A ele, só o prazer (mulheres não gostam de sexo mesmo...). Se engravidar, problema é dela: caso decida pelo aborto, pode encarar anos atrás das grades. Se tiver dinheiro, pode procurar uma clínica - sempre tem alguém que conhece. Se não tiver dinheiro, se ferra em dobro, corre sérios riscos de saúde e poderá até morrer em decorrência a um aborto malfeito. Os direitos reprodutivos conquistados há décadas ainda estão atrasados no Brasil.
Ai dela se transar casualmente. O caráter dela será colocado à prova. Vadia, periguete, rodada. Desvalorizada. Na verdade, ela nem precisa fazer nada disso; em algum momento da vida, toda mulher será julgada - e considerada culpada. Mesmo fazendo tudo "direitinho" como a sociedade espera. Namora, fica noiva, casa.
Na vida doméstica, gastará nove vezes mais tempo limpando a casa e lavando a louça do que seu parceiro, que vai se gabar de "ajudar" em casa às vezes. Uma dica: em casa civilizada não se "ajuda", se divide tarefas.
Esta mulher não é livre sequer para sair despretensiosamente. Ela só quer tomar uma cerveja em paz para relaxar depois de um dia cansativo. Sozinha, nem pensar. Farão mil conjecturas a respeito dela; tentarão descobrir o que ela pretende, quanto ela cobra pela companhia, que tipo de golpe quer dar. Se está sozinha, é porque "está querendo". Às vezes pode estar mesmo. Outras vezes vai querer ficar sozinha, apenas. Mas não dá. Não deixam. Enchem o saco.
Se decidir se separar, que se prepare! É possível que o ex-parceiro possa agredi-la e até matá-la, tudo com a benção da sociedade, que se recusa a enxergar que não é apenas um problema de "ignorância", é machismo mesmo, aquele que faz o homem acreditar que a mulher é um bem que lhe pertence. "Ele amava demais", "foi crime passional", "ela que traiu". Ela virará estatística.
Não, isso não é uma invenção. Segundo relatório publicado este mês pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência contra a mulher atinge níveis de epidemia. Mais de um terço das mulheres do mundo sofrem violência física ou sexual.
De todos os assassinatos cometidos contra mulheres, 42% têm como criminoso o ex-parceiro. A situação é tão grave que o crime tem até um nome para chamar de seu: "feminicídio", o assassinato evitável de mulheres por razões de gênero.
Essa mulher (e você também) precisa do feminismo. Um dia ela não vai precisar mais. Um dia.
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