O que nos define como
homem ou mulher? Há tempos as sentenças biológicas XX e XY eram responsáveis
por responder essa questão. Hoje, porém, elas são vistas como limitadoras das
nossas masculinidades e feminilidades. Por essa razão, falar na possibilidade
de mexer nelas causa tanto alvoroço, sobretudo se levarmos em consideração a
bifurcação menino-João-azul-carrinho para eles e, para elas, menina-Maria-rosa-boneca,
defendida pelos mais conservadores. Entretanto, o mundo caminha em direção ao
gênero neutro, focado não em limitar aquele pilar biológico, mas ampliá-lo.
Trata-se de repensar todos os valores culturais aprisionados aos gêneros
existentes, dando a eles outras experimentações possíveis. No Brasil, contudo,
onde tudo parece nos colocar sempre a um passo atrás do resto do mundo, isso
será de grande valia, se levarmos em conta tantas perdas geradas pelo nosso
atual modelo sócio-econômico-educacional e político, responsável por reduzir
humanos às genitálias.
Os que torcem o rosto
para essas mudanças têm bons motivos para fazê-lo, afinal de contas, manter a
hegemonia vigente é assegurar a permanência dos lucros. Lojas de departamentos
de moda, brinquedos, enxoval, por exemplo, faturam muita grana com a
categorização dos gêneros que resvalam das genitálias. As cores, os modelos de
roupa, cortes de cabelo e demais apetrechos, se tornam elementos indispensáveis
aos país ávidos por enquadrar seus filhos num ideal de gênero aceito pela
maioria. O que não seria errado, caso o debate de gênero estivesse presente nas
discussões familiares desde sempre. Como não é isso que ocorre, sem perceber,
muitos de nós, ao naturalizar que menino é assim e menina é assado, estamos
contribuindo para a formação de práticas ou possíveis características
machistas/homofóbicas/misóginas dessas crianças no futuro. Além de retirar da infância a curiosidade que
lhe é peculiar, ao permitir que garotos brinquem com boneca e garotas de
futebol, sem serem repreendidos por essas experiências.
O não enfoque em torno
do gênero sufoca todas aquelas masculinidades e feminilidades fora do que é
esperado pela sociedade “macho alpha e fêmea gama”. Por exemplo, é bem possível
ser um garoto-sensível-meigo-choroso, que usa rosa e seja fã do Liniker, sem
precisar ser gay por conta disso. Mas, como falta uma discussão educacional
sobre isso, crianças/jovens com esse perfil são hostilizadas na vida escolar,
ignoradas por professores-coordenadores-diretores, indo de traumas ao longo da
vida ou ao suicídio na adolescência. Ou seja, o tão famigerado bullying poderia
ser evitado com práticas educacionais a frente do seu tempo, da mesma forma que
a evasão escolar motivada por esse tipo de preconceito. Porém, se a sociedade
não é democrática, a escola tão pouco o é. Os Planos Nacionais de Educação
retiraram as pautas ligadas a questão de gênero, identidade, sexualidade, até
de partes da Lei Mº da Penha, pois políticos religiosos cristãos – sempre eles
– disseram que esses temas são desconhecidos da sociedade. E, pelo visto, continuarão
sendo, já que a escola, espaço voltado para disseminar as atuais mudanças
sociais, é vedada de exercer esta função.
Mais inflamada fica a discussão quando se traz
a público a liberdade familiar/pessoal de criar, ou se autodeclarar, um ser
não-binário, agênero, gênero fluido, etc. Definitivamente é o apocalipse na
terra. Se já é nebuloso se afirmar de alguma forma na sociedade, imagina então
não se enquadrar no que é esperado pelo sistema? Talvez foi isso o que tenha
acontecido com o bebê Ariel, quando os pais o batizaram com esse nome afirmando
que, ao crescer, ele decidiria se seria menino ou menina. Rapidamente muitos
internautas repudiaram a atitude do casal, que depois de várias ameaças,
tiveram que retirar a reportagem do ar. A demanda central agora não estava naquela
criança, mas na afronta contida no nome Ariel e sua nítida unisexualidade. Em
outras palavras, a interferência no batismo da criança fomentou a revolta
popular, a qual teria menor proporção se o garoto recebesse os nomes mais esperados
para o seu “gênero”. É a linguagem a serviço da discriminação. Felizmente, há
mudanças ocorrendo pelo mundo. Na Suécia se adotou o pronome pessoal “hen” para
designar a neutralidade entre os gêneros. O Dicionário Oxford adotou desde 2015
o verbete Mx., uma variação para Mr. e Ms., senhor e senhora respectivamente. E
o Brasil?
Por aqui a coisa é
lenta, mas a nossa genialidade me faz nutrir uma faísca de esperança para o
futuro. Isto porque, tenho um amigo, que nos momentos de descontração, criou o
pronome pessoal “Êla” para designar aqueles colegas que não se veem dentro do
que é e adotado como parâmetro para homem e mulher. Enquanto não há no país uma
definição linguística para esta contenda, a internet tem elaborado construções
neutras bem interessantes como “amig@s”. Quem sabe elas não sejam acopladas um
dia pelo nosso idioma. Até lá, porém, o Brasil precisa avançar em outros
quesitos para então pensar em uma nomenclatura oficial para este público. Entre
as pendências, falta uma política voltada a igualdade de gênero semelhante ao
que já ocorre em muitos países de primeiro mundo. O Fórum Econômico Mundial faz
um relatório anual sobre essa temática e Islândia, Finlândia e Noruega ocupam o
pódio entre as nações nesse sentido. A nossa pátria aparece numa posição
vexatória, cuja menção nem é válida, fruto da ridicularização em torno da
“ideologia de gênero”, termo criado por fundamentalistas para banalizar essa
discussão.
Ao adiar o necessário
debate sobre gênero, estamos tardando a resolução de problemas oriundos dos
estereótipos construídos pela sociedade. Da mesma forma, estamos replicando
humanos a partir de um único molde. Porém, a unisexualidade não veio para
extinguir a espécie. Pelo contrário, sua aparição mostra o quão dinâmico,
versátil, é a natureza humana, apesar dos rótulos encarcerarem nossa essência.
Significa romper barreiras impostas por vários setores da sociedade e cobrar
dos órgãos públicos a plena efetivação dos direitos individuais e coletivos. Diz
respeito a planos educacionais mais amplos, humanísticos, antenados as
transformações atuais. Pouparia crianças/adolescentes de inúmeros sofrimentos,
constrangimentos e demais violências. Ajudaria a entender a sexualidade
daqueles que não se identificam com o sexo biológico que nasceram. Como também
aliviaria as dúvidas daqueles que têm sua sexualidade questionada apenas por
ter comportamentos fora dos padrões. Diminuiria as relações abusivas, a
hipersexualização do corpo feminino, a violência doméstica, o ato abortivo, a
homofobia, a cultura do estupro, bem como outras violências que nascem da
ausência da discussão de gênero. Macho e fêmea continuariam existindo, mas suas
masculinidades e feminilidades seriam ampliadas a partir do momento em que
alguém perguntasse: é menino ou menina? É um ser humano.
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