Muito se estudou e se conhece do período colonial no Brasil. A produção
histórica de conhecimento é muito vasta e existe um arsenal enorme de
informações sobre todo o período da colonização brasileira desde os livros didáticos,
passando pelo desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas e chegando até
os debates bancados pelos movimentos sociais e populares. Mas até onde
filtramos essas informações ou, sem sermos contraditórios, nos colocamos na
tarefa de aprofundar os impactos que mais de 60% de recorte histórico
brasileiro deixou de cicatrizes em nossa estrutura? Como pensar a plataforma
estruturada com a colonização e o regime de escravidão e massacre sob povos
tradicionais e negros como base para formação de um país extremamente desigual?
Estamos 130 anos após a Abolição da escravidão no Brasil e essas perguntas
precisam ser base de debates políticos importantes se almejarmos pensar o país
de hoje e onde chegamos. Um grande desafio, mas necessário. Os desfiles carnavalescos
deste ano colocaram na ordem do dia o contexto. A Paraíso do Tuiuti deu um show
e gritou: Não sou escravo de nenhum senhor!
A
COLONIZAÇÃO, A ESCRAVIDÃO E A ABOLIÇÃO!
A expansão marítima moderna, como parte de uma articulação sistêmica e
muito bem esboçada, foi o início de uma encruzilhada com novos povos, novas
culturas e novos tipos de exploração. O interesse por áreas comerciais e a
necessidade de fincar-se que o capitalismo tinha o fez recorrer ao método
colonizador de dominação, que pode ser analisada sob diversos vieses:
territorial, cultural, político e sobretudo econômico. Vieses estes que não são
fragmentários, mas se relacionam de forma compactuada. O processo de expansão
do capital tem, desde muito tempo, ditado a realidade do povo negro. A
concretização do sistema mercantil do capitalismo, ainda na sua fase de
estruturação, já mostrava que as benesses do capital sempre iriam se contrapor
à população mais vulnerável. Em todos esses aspectos, a capacidade de
transformação humana da natureza se fazia necessária, como parte elementar do
próprio sistema capitalista. Em um período onde as grandes confusões com os
novos métodos da classe em ascensão eram difundidas popularmente, cabia aos
exploradores europeus voltarem todas as facetas criativas para justificar o
plano de dominação. Com isso, as ciências e a religião, com grande influência
civilizatória, passaram a ser justificativas menores para a dizimação de
civilizações nativas e para escravização delas para subserviência de
mão-de-obra. O processo de submissão de qualquer tipo de conhecimento que não
seja o atrelado ao europeu- branco foi base para a consolidação do sistema
escravagista brasileiro, a construção da estrutura do racismo se deu,
milimetricamente, de forma institucional, e com o respaldo da ciência e da
religião. O programa racista que interpela todos os vieses citados estava em
vigor de forma muito mais profunda do que versículos bíblicos que justificam e
tratados científicos que encorajam. A branquitude europeia incorporava o plano
já nascido mesmo antes do próprio capitalismo e colocava suas cartas com muita
violência e capacidade destrutiva. 1500 não é fruto de um acidente histórico, é
uma trama engendrada globalmente com extrema capacidade dizimativa! Como disse
MC Carol na música “Não foi Cabral”: “Ninguém trouxa família/Muito menos
filho/Porque já sabia/Que ia matar vários índios/Treze caravelas/Trouxe muita
morte.”
O conceito de “descoberta” utilizado em livros didáticos é eurocêntrico,
porque além de forjado por aqueles que escreveram os livros serve a difusão de
uma narrativa que esconde o programa, e só o esconde porque ele ainda está em
vigor, não teve fim e alcança seus objetivos de forma a satisfazer os do andar
de cima. A escolha por arrancar os povos africanos de seus territórios para
utilizarem de mão de obra bebe no fato de exterminarem com nativos para
facilitar a exploração e tomada de novos mundos e também porque o racismo foi
forjado como arma ideológica de dominação global para servir a isso em
ampliação do racismo como justificação de privilégios das elites e dos
infortúnios das classes subalternas, como Clóvis Moura descreve bem. Com isso,
a colonização como programa das novas classes dominantes e o racismo remodelado
desenvolve uma combinação histórica que impossibilita a compreensão marxista de
luta de classes separada da luta racial, afinal a classe explorada do Brasil
tem na base piramidal os povos arrancados das Áfricas e esmagados na “nova
terra”.
Na base econômica do Brasil colônia, a produção teve um destaque
rotatório que influenciou no desenvolvimento urbano e civilizatório. O primeiro
estado criado, a Bahia, tinha no açúcar a sua matéria base no modelo
plantation. Recorria obviamente à mão-de-obra escrava. Salvador, capital
baiana, é a cidade mais negra fora d’África. Na Amazônia, a ocupação
desenfreada ditada nos moldes do desenvolvimento, das missões jesuíticas ao
advento do ciclo da borracha demonstrou o caráter desenfreado de exploração de
mão de obra escrava, seja indígena ou negra africana. Durante a exploração do
ouro nas Minas Gerais, a “corrida do ouro” fez com que a disputa pela
exploração e trabalho do ouro se desse por outros grupos não-negros e
não-nativos, os tropeiros imigrantes é um exemplo. O modelo colonial já
começava a sofrer tremores maiores com as lutas travadas internas e a
auto-organização do povo escravizado, além de idealistas brancos com outros
interesses que raras as vezes se encontravam. O surgimento de vários Quilombos
e a fortificação de muitos outros, figuras símbolos de resistência como Dandara
e Zumbi dos Palmares já eram conhecidas e reivindicadas como exemplos da luta
negra organizada no país e muitas revoltas como A Revolta da Cabanagem,
protagonizada por negros e indígenas insatisfeitos com o governo regencial e
com a intensa exploração na província do Grão-Pará, e a Revolta dos Malês em
1835 em Salvador foram marcas de um bruto período de resistência diária de um
povo vítima da pior exploração possível. Todos esses antecedentes preparam a
nossa libertação, mas não foram suficientes para impedir que a Lei Áurea de 13
de Maio de 1888 tenha sido o “fim da escravidão”, mas a continuidade de nós na
parte de baixo da pirâmide, como aqueles que não tinham direitos ou que
precisávamos vender os poucos conquistados para comer e viver.
O
PÓS-ABOLIÇÃO: SAÍMOS DAQUI E FOMOS PARA ONDE?
Durante a abolição da
escravidão no Brasil, a capital já era o Rio de Janeiro, a mesma cidade que
hoje passa por uma situação radical de violência com raiz no racismo
proibicionista das drogas e no modelo urbano segregacionista. A Lei Áurea não
incluiu o negro no desenvolvimento acelerado e não o orientou a integrar-se no
trabalho assalariado, não por simples erro construtivo da Lei, mas por abertura
dominante a permitir que o racismo continuasse como justificativa de
exploração. Em “A integração do negro na sociedade de
classes” Florestan Fernandes afirmou:
“A desagregação do regime escravocrata
e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos
agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na
transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da
responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a
Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem
por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho.
(…) Essas facetas da situação (…) imprimiram à Abolição o caráter de uma
espoliação extrema e cruel”.
Este é um dos aspectos mais importantes, mas não devemos desconsiderar a
periferização da população negra urbana em contrapartida à aceleração
industrial e arquitetônica, à criminalização cultural, à negação de serviços e
a direitos básicos, à perseguição violenta com recursos do Estado, à
continuidade da difusão ideológica de dominação a partir também das teorias de
branqueamento, etc. No Pós-Abolição fomos para uma situação de abolicionados e
serviência a uma propaganda da abolição que não era destinada a nós, afinal
estávamos muito ocupadas e ocupados tentando sobreviver.
130
ANOS DEPOIS…
No final do ano passado, foi divulgado um levantamento feito pelo Ministério
da Justiça do Brasil que apresentava uma informação sobre o sistema carcerário
brasileiro: somos a terceira maior população carcerária do mundo. Multiplicamos
oito vezes em 26 anos e temos o dobro de presos em relação a vagas reais nas
penitenciárias. Um mês antes, levantamento feito pelo Fórum de Segurança
Pública trazia o dado de que 71% das vítimas de homicídios no Brasil são
negros. Em dezembro, o Anuário do Fórum de Segurança Pública também trazia que
o número de negros mortos por policiais é o dobro de brancos, e mesmo do lado
da polícia, os que mais morrem são negros (223, contra 171 brancos e 179 não
identificados). O encarceramento de mulheres brancas caiu, o de mulheres negras
cresceu. A taxa de escolarização das mulheres brancas é de mais de 20%, a de
mulheres negras é menor que 10%. Por que todas essas estatísticas apontam
contra nós? O argumento de proporcionalidade numérica não dá conta, porque nas
estatísticas positivas não somos nós que estamos no topo! Por que não são
pessoas negras que ocupam o posto das pessoas mais ricas do país, mas são
homens brancos.
Em momentos de intensificação de crises econômicas do capital, os do
andar de cima, que não abrem mão de suas parcelas de lucro, acirram a retirada
de direitos e a exploração dos de baixo. A base piramidal da sociedade se
enlarga para sustentar a fatia gorda dos de cima. Encaramos medidas como a
Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização e Reforma da Previdência. Nós que já
somos maioria no mercado informal, somos jogados ainda mais para os piores
postos de trabalho. Cresce o número de moradores de rua, de adoecimentos da
mente, de vendedoras de doces e lanches e até de universitários desempregados,
a maioria de regra tem uma cor. O Nordeste é a região com maior número de
desempregados e o Norte vem logo após. A Bahia em agosto de 2017 foi o estado
com estatísticas mais cruéis, apontou o IBGE. No Pará, estado com a maior
população autodeclarada negra do Brasil, Belém padece como a capital com maior
proporção de pessoas vivendo em periferias no país, e uma das mais perigosas do
mundo, reflexo óbvio do quanto a pobreza nesse país tem cor. A realidade é mais
dura para quem é negro no Brasil, ainda ocupamos os lugares mais ínfimos da
sociedade, os espaços políticos ainda são de maioria branca, as Universidades –
mesmo com a política de cotas – são espaços de hegemonia branca, e a
permanência do estudante negro e pobre na academia não é amparada pelas tímidas
políticas afirmativas. A mentalidade escravagista domina a sociedade
brasileira, após a abolição da escravidão os negros brasileiros ainda continuam
tendo uma vida muito difícil, sem acesso aos equipamentos da cidade, morando
nas periferias, que cada vez mais longes do centro, se tornam reduto da
ausência do Estado. Em 2018, completamos 130 anos da abolição da escravidão no
Brasil, mas o racismo ainda é a base programática do capitalismo. Para
superá-lo é preciso, portanto, estratégias que revelem e derrubem o racismo
junto com os muros econômicos e políticos da ordem.
POR
UMA REVOLUÇÃO RACIAL
O Brasil neocolonial revestiu as facetas da colonial. Precisamos
derrubar o radical desses dois e fazer do sufixo o nosso motim geracional!
Precisamos recuperar a teoria de Florestan Fernandes, como foi bem desenvolvida
em análise essa proposição pelo professor Maycon Bezerra em “O marxismo
descolonial de Florestan Fernandes e a esquerda socialista do século XXI”, na
organização da rebeldia constante e persistente da negritude sob os regimes sem
servirmos de sustentação burocrática e passiva para a burguesia nacional e
internacional. Sobre Florestan, Bezerra coloca:
“[…] Teoricamente, nunca aceitou o
marxismo deformado pela ótica positivista da burocracia stalinista, nunca
dissociou materialismo de dialética em sua compreensão do marxismo.
Politicamente, nunca teve acordo com a estratégia de colocar os trabalhadores
passivamente a reboque do desenvolvimentismo da “burguesia nacional”. Ainda
quando julgou que a modernização burguesa da sociedade brasileira tivesse o
potencial de levar o processo histórico além dos interesses restritos dos
capitalistas […]”
Florestan Fernandes e muitos outros pensadores e pensadoras como Angela
Davis são parte de um arsenal teórico que precisamos recorrer para pensar estratégias
de organização da negritude no Brasil e no mundo. O Black Live Matter nos EUA
segue sendo um grande exemplo no enfrentamento ao racismo no centro do
imperialismo, onde a crise também é responsável pelo aumento da desigualdade. O
número de moradores de rua nos EUA cresceu enormemente, em Los Angeles aumentou
em 23% chegando a quase 60 mil. O país da maior população carcerária do mundo é
também o país articulador de um programa racista mundial. Se como disse Angela
Davis, não basta não sermos racistas, é preciso sermos antirracistas. Colocar
essa máxima em prática é desenvolver a partir de elementos desiguais e
combinados possibilidades de expor as feridas, de nos mantermos vivos e de
construir a longo prazo uma saída. Partem de nossas tarefas: outra política de
drogas, o fim dos antecedentes criminais que impossibilitam novos empregos, a
luta contra as medidas de extinção de direitos trabalhistas e a organização de
trabalhadores do mercado informal, da manutenção de cotas nas universidades e
por uma real permanência estudantil, batendo de frente com os poderosos
engravatados que assim como o reitor da USP afirmam que a universidade não é
para a gente. Partem dessas tarefas sem perder o horizonte estratégico da
fundação do new society, sem nunca perder a intrínseca relação classe, raça e
gênero também como método de superação da velha esquerda que separa e acusa. É
preciso muita coragem e ousadia e que as multidões sejam contaminadas pelo
sangue de nossos ancestrais e pelo sonho de mudar a nossa realidade, algo que o
sambódromo do Rio de Janeiro e o mundo acompanhou no desfile da Paraíso do
Tuiuti no Carnaval deste ano e que precisamos colocar como tarefa nossa.
*Por Iago
Gomes do Juntos! BA e Matheus Lisboa do Juntos! PA
Visto no: Juntos
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