23 junho 2018



Não precisa ser fã de futebol para ser bombardeado pela cobertura massiva dada pelos veículos de comunicação nacional. Quando não são estes, uma breve olhadela nas ruas mostra a mudança clara na rotina dos brasileiros na tão esperada Copa do Mundo de Futebol. Para fins de entretenimento, é plausível tamanha mudança comportamental, visto que o Brasil tem longo histórico de vitórias nessa competição, além de ser aclamado mundo a fora por seus feitos nessa área. Em 2018, porém, possivelmente o país do futebol, dos craques multibilionários, dos torcedores apaixonados, ficaremos conhecidos também como o país que exporta preconceitos já conhecidos pela nação. Entoados com o mesmo orgulho quanto os versos que embalam o hino nacional, tais violências não se restringem ao campo da fala, mas representam toda uma cultura, que pode até perder a taça de campeã mundial, porém já está consolidada no pódio entre as nações mais intolerantes do mundo.

O episódio com a repórter russa deu o ponta pé inicial para a vexatória realidade vivida por muitas mulheres no território brasileiro: a banalização do assédio. Esta que surge do preconceito que se tem em torno da liberdade sexual feminina, ainda aprisionada por conservadorismos do sexo dominante, o masculino, o qual dita regras imutáveis sobre os comportamentos sexuais das mulheres. Fora de campo, elas são privadas de sentir prazer, de falar acerca de, tão pouco militar abertamente sobre essas lacunas sem serem hostilizadas por isso. Cientes dessas limitações, o Brasil objetifica o seu corpo a belprazer, seja exportando o modelo apelativo negra-seminua-globeleza como “símbolo nacional”, seja invadindo o espaço de mulheres estrangeiras para reafirmar a ignorância tolerada aqui. Por essa razão, homens brancos, cisgêneros e elitistas não viram problema em gravar um vídeo assediando aquela jornalista em um país estrangeiro, já que em seu território, os perfis sociais ocupados por eles lhes garantem plena liberdade de abusar de mulheres, muitas vezes fora do âmbito da linguagem.

Antes de iniciar a Copa, porém, é preciso lembrar que os campos futebolísticos são os cenários preferidos pela sociedade para escancarar seus preconceitos ancestrais. Embalados pela ânsia da vitória, torcedores não se intimidam em discriminar outros torcedores, atletas e pessoas importantes no cenário nacional. Os casos de racismo são um exemplo disso. De bananas jogadas no campo a piadas grosseiras destinadas a jogadores negros, muitos foram os casos em que a cor de pele foi usada como recurso discriminatório. Também entram na lista condutas homofóbicas, como a vivida pelo jogador Richarlyson, talvez o único atleta desse esporte de “machos alpha” a assumir publicamente sua homossexualidade. De quebra, não poderia ficar de fora as ofensas de cunho machista voltadas a nossa ex-presidenta Dilma Rousseff, ao longo do famigerado golpe do qual todos hoje somos vítimas. Nos diversos jogos da seleção, brasileiros abastados, brancos e autodenominados heterossexuais, faziam da arquibancada sua tribuna onde esses e outros preconceitos eram repetidas vezes proferidos sem receberem as devidas punições.

Em comum, essas ações violentas destoam da atmosfera integradora que compõe a Copa do Mundo. O que se espera de um mundial assim é respeito, aceitação, tolerância, palavras não assimiladas por muitos brasileiros porque não foram, e ainda não são, devidamente ensinadas. O que é repassado aqui é oposto disso, encorajando muitos indivíduos a levar em suas bagagens os sentimentos mais odiosos para além mar. Da mesma forma, é vergonhoso ver o nosso país, um dos mais prestigiados no quesito futebol, ser o protagonista de episódios como aquele da repórter russa e também de outros, como o vídeo viral do qual um outro brasileiro pede para crianças russas falarem palavrões e frases de cunho sexual direcionadas a Neymar. Percebemos, portanto, que os xingamentos até aqui tem a finalidade de validar toda uma construção histórico-social voltada a inferiorizar as minorias, uma conduta por si só incoerente, pois muitos dos ídolos futebolísticos emergiram das realidades malogradas por esses torcedores.

Felizmente, a internet não tem deixado impune as ações de muitos preconceituosos. Caso escapem das punições legais, o povo trata rapidamente de sentenciá-los à condenação em meio a atmosfera politicamente correta em que vivemos. Isso já é muita coisa, mostra o quão inconiventes somos com posturas discriminatórias, pelo menos em tese. Entretanto, a prática precisa ser reavaliada. O que vemos dentro ou fora dos campos de futebol, dos terrenos de brejo aos estádios colossais da Copa do Mundo, precisa ser revisto. Um país totalmente voltado a uma supervalorização futebolística desalinhada dos ideais educacionais, tão caros à formação do torcedor consciente, perde pontos preciosos na corrida rumo ao tão sonhado hexa. Na verdade, somar taças de campeão mundial em meio as vergonhosas demonstrações de desrespeito vividas nessa copa não deveriam ser motivo de orgulho para nação, mas um ponto de inflexão a respeito daquilo que estamos exportando para o mundo, além de ostentar títulos quando o país vive em um verdadeiro atraso humanitário.

Perdemos também quando não assumimos o quão preconceituosos somos. Independente da Copa do Mundo, o Brasil foi construído a partir do alicerce da segregação e ainda hoje vive sustentado por essa base. Então, quando o Ministro dos Esportes diz que os rapazes que assediaram a russa “não nos representam” está incorrendo pela dissimulação dos fatos. Somos sim preconceituosos, intolerantes, desrespeitosos, para com os grupos minoritários e eventos mundiais esportivos como a Copa, voltados a legitimar os grupos dominantes, só reforça essa ideia. Assim, o torcedor, o qual deveria ir a campo munido de humanidade suficiente para torcer pelo seu time sem recorrer aos preconceitos sociais como válvula de escape, faz justamente o contrário porque essa foi a forma do qual ele foi moldado. Dessa maneira, mal resolvido no campo das sexualidades e no respeito às diferenças, a sociedade bate um bolão de idolatria verde-amarela nesse período e mostra a inesgotável fonte distorcida de seu patriotismo à brasileira eivado de ódio.

Para uma cultura claramente elitista/machista/racista/homofóbica como a nossa, usar da linguagem para depreciar o outro representa o tamanho do fosso criado por um processo histórico-político-educacional voltado a legitimar condutas preconceituosas ao invés de problematizá-las e, por fim, extirpá-las da sociedade. Abismo este que se aprofunda no interior de cada brasileiro educacionalmente despreparado para lidar com a diversidade. Então, o que deveria ser banido, passa a ser corriqueiro, levando ao mundo uma face deplorável de um país visto como pacífico, quando, em seu íntimo, é profundamente violento. Por isso, aqueles brasileiros lamentavelmente nos representam, pois todos nós temos nossa parcela de culpa nesses casos, por naturalizar aquele tipo de violência dentro ou fora de campo; por não problematizar de fato as questões caras aos grupos minoritários; por torcer a cara para suas lutas, reivindicações e dilemas; e, sobretudo, por não somar forças em suas pautas políticas-sociais e legais. Então, conscientes ou não, estamos exportando preconceitos, mas não tem importância. 

O que vale é ser hexa!

OS GRITOS DE “buceta rosa” – dados por seis brasileiros que assediavamuma mulher na Rússia – ainda ressoavam por aqui quando 14 conterrâneos cercaram uma jornalista para cantar: “chupar xoxota é uma coisa linda”. Para eles, não havia vergonha alguma em abordar publicamente e filmar mulheres que não os entendiam para falar de suas bucetas.
No entanto, a mesma palavra, proferida com orgulho viril nos assédios, não soou tão natural aos ouvidos masculinos quando deu nome a um oficina sobre saúde sexual feminina, um mês antes, intitulada Empoderamento de Buceta.
Em maio, a ginecologista Andrea Rufino mediou o evento, realizado na Universidade Federal do Piauí. Andrea foi atacada com insultos como “médica vagabunda” e “doente”. Usada por mulheres que desejavam aprender sobre sua sexualidade, e não mais por homens que sexualizavam forçosamente suas interlocutoras, buceta não era uma palavra. Era um afronte.
O correto seria usar palavras “mais amenas”, opinou um dos descontentes. Aceitável apenas quando objeto de desejo e domínio masculino, buceta deveria se transfigurar em vagina, termo desprovido de luxúria, neutro, científico. Monopólio dos homens, buceta não pode pertencer às mulheres. Os números revelam o desconforto delas com seus corpos e a pressão que sentem para satisfazer aos homens. Em 2015, uma pesquisa da revista americana Cosmopolitan mostrou que quase sete de cada dez mulheres já fingiram um orgasmo, em sua maioria para agradar o parceiro ou terminar logo a transa. Ao mesmo tempo, no Brasil, um estudo do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo mostrou que 40% das mulheres não se masturbam.
Fora dos consultórios e eventos médicos, nem a gêmea casta da buceta foge à estranheza. Há menos de três meses, a versão em quadrinhos do Diário de Anne Frank foi censurada em uma escola do Espírito Santo por conter a palavra “vagina”. O termo deixou alguns pais transtornados, ainda que a leitura fosse dirigida a alunos do 7º ano – apenas uma série anterior àquela em que, em geral, os adolescentes aprendem sobre a anatomia humana.
Constrangida pela profanidade da buceta, a imprensa se desdobrou para contornar o termo ao noticiar os casos de assédio na Copa do Mundo. Na Folha de São Paulo, lia-se: “a cor de seu sexo”. O Globo, assim como o Ig, preferiu escrever “o órgão sexual”. O portal R7, relatando outro caso, recorreu ao uso de asteriscos para citar a frase que brasileiros instruíram uma russa a repetir: “Eu quero dar a b****a para vocês”. Enquanto isso, bastava um clique para ouvir os agressores repetirem, aos berros, a palavra que ninguém ousava repetir.
Buceta, pelo visto, só tem vez na boca dos homens – figurativamente, é claro. Segundo pesquisa da empresa Sex Wipes, 43% dos homens não gostam de fazer sexo oral nas parceiras.


Nunca se problematizou tanto as questões sociais quanto na atual realidade brasileira. Sem dúvidas, essa mudança está intimamente ligada ao acesso praticamente irrestrito à internet, bem como às redes sociais, aos aplicativos e as discussões fecundas originadas dentro desses espaços que moldam a vida moderna. Assim, debates relevantes são levantados na rede, pautas são construídas, inquietações são compartilhadas, levando ao grande público pendências antes restritas às mesas acadêmicas. Confundindo-se muitas vezes com o politicamente correto, as novas e antigas militâncias sociais não buscam apenas ressiginificar certas visões estereotipadas dos grupos desfavorecidos, mas também e, sobretudo, emancipa-los através de suas identidades; assegurando-lhes a autonomia para coexistir em meio a uma sociedade historicamente excludente. O problema, porém, reside na recepção dada aos militantes, que em conjunto ou individualmente, lutam para validar suas demandas frente a uma atmosfera social desestimulada a reivindicar.

A importância de se militar sobre algo parece óbvia quando se trata do Brasil, visto que as disparidades existentes por aqui criam a ambientação propícia às diversas reivindicações. Basta analisar a disparidade entre sexos, sobretudo na questão salarial, na aquisição de cargos de poder e na violência de gênero; verificar a intolerância frente às facetas da sexualidade humana, sobretudo quando foge do padrão “família tradicional brasileira”; além da hipócrita perseguição vindoura ao povo negro, suas raízes, ancestralidades e legado. Para uma minoria privilegiada, talvez seja difícil compreender tal processo de empoderamento nestes e noutros grupos. Isto se dá, porque é justamente a ideia de harmonia social que é vendida e facilmente comprada pela maioria, ignorando recortes de sexo, gênero, raça, identidade, classe e posição social, categorias que por si só já são excludentes. Então, a militância surge para problematizar estas questões, ao passo que aprofunda o debate em torno da premissa falaciosa cuja intenção é fazer a sociedade crer numa equiparidade de direitos, que na prática só é acessível aos grupos dominantes.

Militar é, nesse sentido, dar visibilidade aos invisibilizados e fazê-los enxergar a sociedade a partir de uma óptica, que apesar de cruel, é passível de ser transformada. Por essa razão, não é possível militar no singular. Esta palavra carrega uma ânsia por inclusão. Logo, seria egoísmo e insuficiente agrupar todas as lutas dentro de um único vocábulo. Assim, as militâncias se pluralizam porque representam as carências especificas de grupos com pouca ou nenhuma representatividade. Marcha das vadias, Parada LGBT, Movimento negro, são alguns dos exemplos. Dentro de cada um deles, todavia, há diversas outras ramificações focadas em atender aos anseios urgentes de indivíduos necessitados de recortes mais detalhados para as suas lutas. É aí onde o politicamente correto se (con)funde com a militância. Por acreditar ser o bastante existir agrupamentos reivindicatórios específicos, a sociedade trata com desdém a aparição de subgrupos, pois entende ser desnecessário e, às vezes, até contraprodutivo fatiar tanto as pautas existentes.

De fato, falta unicidade em muitas militâncias, o que prejudica a disseminação de suas queixas, bem como a credibilidade de suas lutas. Entretanto, a falta de empatia social nesse sentido se baseia na quase total ausência de incentivo educacional à defesa de causas urgentes para a sociedade. O que há é uma educação cada vez mais tecnicista, voltada a realização de tarefas das quais o automatismo se sobressai do pensamento crítico da realidade. Imersos nessa pedagogia servil, muitos não encontram tempo, nem razão, para participar de levantes sociais, tão pouco legitimar suas existências, pois não foram orientados a se enxergar naquele panorama, logo, ignoram suas pautas. Dessa forma, muitos indivíduos preferem se aliar aos discursos dominantes do que se arriscar a colaborar com pactos dos quais não foram devidamente inteirados a firmar.

A relação com a política é outro ponto responsável por afugentar muitas pessoas de aderirem certas militâncias. Entendida como um ato político mas nem sempre associado à politicagem, militar é, sobretudo, uma forma de empoderamento a partir do instante em que a pessoa se percebe excluída do seio social e usa sua realidade como plataforma de inclusão pessoal e incentivo aos demais a sua volta a insurgirem-se contra o sistema. Ou seja, por mais que haja intervenção partidária em alguns segmentos militantes, o que é passível de discussão, isso não limita o campo de cobrança, fazendo com que cada um busque se empoderar como protagonista de dilemas geralmente caros a outras pessoas. Trata-se de ecoar o lugar de fala o qual costuma ser silenciado pela retórica predominante no país. Militar é garantir que as vozes dos emudecidos passem a ser ouvidas e, uma vez audíveis, reverberem junto aqueles que negligenciaram ferozmente suas lutas.

As maneiras de se fazer isso são inúmeras. Vão da estética, assumindo cabeleiras, perfis corporais, vestimentas e posturas identitárias particulares, até ações comportamentais vistas como complexas, como beijo, andar de braços dados, gestos simples mas hostilizados por quem faz parte do padrão de relacionamento “aceitável”. Como também ao encontro da valorização de direitos negados pela perseguição da cor e tudo aquilo oriundo dessa lacuna no percurso histórico que construiu no Brasil a ideia de que há seres superiores e inferiores de acordo com o seu tom de pele, mesmo que isso não seja admitido pela maioria. Diante disso, militar permite a muitos indivíduos a chance de se emancipar ideologicamente frente ao modelo reinante cuja característica principal é normatizar certos rótulos vistos como destoantes daquilo que se atribuiu como tolerável. É uma afronta necessária. Além disso, quando se legitima a existência de uma dada pessoa, por mais subversiva que ela pareça, encoraja-se outras a se afirmarem formando, assim, novos coletivos.

É disso que as militâncias tratam, de transfigurar o corpo humano em um registro único, mas que pode ser percebido através de outros com necessidades semelhantes. Militar é documentar essas matérias humanitárias vilipendiadas pelas réplicas tidas como perfeitas pelo seio social. Por isso que, para muitos, essa exigência se torna abstrata, pois, além do total desconhecimento sobre a pluralidade do outro, o que resvala em antipatia, há também a caracterização do outrem a partir daquilo que é esperado pela maioria. Logo, quando alguém transgrede essa linha de montagem deslegitima-se suas existências. São essas barricadas fincadas profundamente na sociedade que impedem o avanço de discussões tão pertinentes a tantos grupos minoritários, que vão às ruas, às redes, militar por suas realidades negligenciadas. É preciso ocupar os espaços dantes privados aos majoritários para bradar todos os inconformismos presos na garganta. Isso significa resgatar os lugares de fala privados desses grupos, muito embora vejam nisso uma atitude politicamente correta em demasia. Porém, trata-se de uma vitória por vez, paulatina, mas significativa daqueles que sozinhos ou agrupados militam em prol de tantas individualidades esquecidas.   

Pelo menos três vídeos de brasileiros assediando mulheres durante a Copa do Mundo Masculina da FIFA de 2018 viralizaram na última semana. Fosse um evento isolado, seria possível pensar em tolerar o argumento de que foi apenas uma “brincadeira em má hora” ou uma graça “que saiu dos limites”. A similaridade entre as condutas de agentes independentes, porém, coloca a lógica a favor das feministas: existe uma forte questão estrutural que une e explica esses eventos.
Para começo de conversa, é preciso reconhecer que a Copa do Mundo e os eventos esportivos em geral seguem marcados por uma desequilibrada masculinidade. Não são poucas as denúncias do machismo nas mais diversas modalidades: desde os casos de assédio sexual na ginástica e na natação, nos Estados Unidos e no Brasil, passando pelo caso das interrupções compulsórias de carreira por conta da maternidade no vôlei brasileiro, chegando no presente da ainda imensa desvalorização da Copa do Mundo de Futebol Feminino – que existe, pasmem, desde 1991 e já teve 7 edições!
É claro que o Mundial de Futebol Masculino é um evento importante para a população brasileira, e não podemos fazer críticas descoladas que invalidem por completo sua potencialidade de fortalecer laços e criar orgulho popular. Entretanto, e isso não pode deixar de ser dito, a Copa do Mundo Masculina é um evento organizado por homens para homens, no qual reina soberano o ideal hegemônico de masculinidade: pautado pela competição, pela exaltação da superioridade, necessidade constante de afirmação, humilhação, agressividade e silenciamento entre os homens e dos homens contra as mulheres.
Assim como um evento não é essencialmente bom ou mau, também não advogamos pela ideia de que os homens sejam natural e biologicamente violentos. Nada é natural. O que acontece é que uma masculinidade passa a ser tóxica ao reproduzir uma construção histórica do masculino superior e dono do mundo, especialmente na figura dos homens heterossexuais, brancos e economicamente dominantes – exatamente o perfil dos homens que estão assediando as mulheres russas, o que não nos surpreende.
Um dos traços da masculinidade dominante – a do Self-MadeMen – é a necessidade de se provar constantemente na esfera pública. Entretanto, após uma prova é necessário realizar outra e mais outra e infinitas mais para que constantemente esteja assegurado àquele homem o reconhecimento de sua virilidade pelos demais. Uma forma de viver baseada, portanto, em ansiedade e competição. Apesar de se tratar de uma construção social, esses homens são responsáveis por seus atos pois escolhem ser e permanecer ignorantes quanto a sua posição de privilégios desiguais nas relações de gênero.
Compreender algumas das estruturas desse modelo de ser homem nos ajuda a situar o comportamento dos assediadores brasileiros na Rússia. Parece não haver um ambiente mais propício que um evento esportivo faraônico – e, por óbvio, competitivo – para que sejam praticados os exercícios de comprovação da masculinidade dominante. Esses homens não sentiram nenhum tipo de constrangimento, culpa ou mesmo senso de responsabilidade ao humilhar as cidadãs russas; pelo contrário, se sentiram completamente confortáveis e socialmente amparados pelo aparato que os sustenta e o qual eles alimentam. 
Esse tipo de masculinidade se cria e sustenta no antagonismo às mulheres, aos negros, e às pessoas LGBT+, que são constantemente diminuídas, desvalorizadas e coisificadas. Se um grupo social (homens dominantes) não se reconhece em um outro grupo (mulheres), as relações do primeiro com o segundo são norteadas por valores utilitaristas de consumo, aproveitamento, uso e abuso, os quais são projetados nos corpos femininos atacados pelo racismo e pela cultura do estupro.
A cultura do estupro é a forma como tratamos nossas mulheres frente à pressão do poder do patriarcado – as mulheres são vistas, por um lado, como vítimas indefesas de seus corpos e, por outro, como culpadas por seus desejos. Um dos vídeos deixa isso bastante óbvio: a mulher tem sua autonomia sexual violada, sendo induzida ao erro de falar algo que, se tivesse plena ciência do que se trata, talvez não o fizesse, ainda mais sem controle quanto à exposição do material gravado. Os homens, por sua vez, atingem a completude de seu destino manifesto de macho alfa dominante quando conseguem, se valendo de uma coisa tão banal como a diferença de idioma, assaltar à mulher a autonomia sobre seu corpo e sua imagem.
O patriarcado e as opressões não se sustentam apenas na misoginia, mas também num profundo racismo. É esse ranço que explica o fato de, em um dos vídeos, alguns homens gritarem “buceta rosa” ao lado de uma mulher loira. Para além da coisificação da mulher, reduzida ao seu órgão sexual, numa banalidade sem fim, estamos lidando aqui com um óbvio racismo que trata de hierarquizar as mulheres por raça, fomentando a exclusão social, a violência e a competição feminina e a partir da desvalorização de um imenso grupo social, como nos explicou Ana Paula Lisboa.
As reivindicações têm amparo legal e têm repercutido em respostas pelas autoridades competentes contra os assediadores de um dos vídeos. Eduardo Nunes, Tenente da Polícia Militar de Santa Catarina, está enfrentando um processo administrativo aberto pela Corporação; Diego Valença Jatobá, advogado e ex-Secretário de Turismo em Ipojuca – PE enfrentou nota de repúdio da OAB de Pernambuco; Felipe Wilson foi demitido do seu emprego da companhia área Latam Airlines. Já Luciano Gil Mendes Coelho assiste à divulgação pública de seu envolvimento, como investigado, na operação ‘Paradise’ da Polícia Federal e do Inquérito Administrativo que está respondendo perante a Prefeitura de Araripina devido ao não comparecimento para exercer as funções de engenheiro civil como servidor público efetivo lotado na Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura. O inquérito pede a exoneração do servidor dos quadros do funcionalismo público municipal.
Além disso, os quatro assediadores poderão ser processados na Rússia a partir da atuação da jurista russa Alyona Popova, que criou uma petição online contra os atos machistas por violência e humilhação pública à honra e à dignidade de outra pessoa. Por fim, mas não menos importante, o Ministério Público Federal no Distrito Federal abriu procedimento investigatório criminal pelo cometimento do crime de injúria.
Parece tempestade em copo d’água, eles afirmam. Mas só se tratarmos disso como uma questão individual. Apesar de ser importantíssima a materialização da responsabilização dos agressores, sabemos que a punição isolada não basta.
O grande problema, e o motivo pelo qual as ativistas têm total razão em se levantar e debater o caso à exaustão, é que não se trata de uma situação isolada, mas sim da reprodução de toda uma pesada estrutura social que coloca todas as mulheres em uma condição vulnerável. Denunciar os casos da vez é apenas uma forma de forçar o mundo dos homens a pensar sobre suas questões.
Se o agressor insiste em permanecer refratário a pensar e mudar, insiste o ativismo feminista em dizer: isso não é sobre você, é um ato de amor pela emancipação da sociedade das amarras do patriarcado.
Isabela Guimarães Del Monde, advogada sócia do Tini e Guimarães Advogados e Cofundadora da Rede Feminista de Juristas – deFEMde.
Tainã Góis, advogada e pesquisadora, mestranda em Direito Coletivo do Trabalho, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas – deFEMde.
Visto no: Justificando

Dentre as tantas magníficas lições legadas por Warat, uma das que mais me encanta por sua capacidade de tirar o véu discursivo que encobre o que há de pior nas ações racistas, machistas e/ou lgbtfóbicas, é aquela que se resume na frase “Não existem palavras inocentes”.[1]  Digo isso porque, algumas vezes, para além das ofensas diretas, provocam ainda maior asco os discursos que tentam justificá-las com o uso  de expressões chave demonstrativas das relações simbólicas de poder que vigem nesta nossa dita sociedade de “pessoas de bem”.
Recentemente, como todos e todas tivemos o desprazer de tomar conhecimento,  um grupo de brasileiros – diga-se, homens, brancos e supostamente héteros (!) –,  apareceram em vídeos divulgados internacionalmente em uma demonstração exemplificativa dos diferentes tipos de violência das quais as mulheres no Brasil e no mundo são vítimas no Brasil e no mundo. A covardia das ações praticadas falam por si só. Uma mulher, em meio à gritaria de baixo calão masculina, ignorante quanto ao que a ela, e sobre ela, diziam.
A imagem da jovem ofendida como mulher, por ser mulher, por trogloditas fardados com camisetas verde e amarelo é, como sói acontecer, grotesca. Ela traz à mente uma coletânea de atos de violência conhecidos por todas nós mulheres em nosso dia a dia. Mas, especialmente, também me fez lembrar de, dentre outros tantos atos misóginos que marcaram o golpe de 2016, aquele consistente na utilização da figura da ex-Presidenta Dilma como um adesivo de conotação sexualmente violenta que era colado nos tanques de combustíveis por muitos que naquela época também vestiam a camiseta “canarinho”.
Quem sabe esses mesmos autores da ação na Rússia não teriam um decalque desses em seus carros? Não lhes concedo o privilégio da dúvida.
Enfim… indo ao ponto que me move escrever este texto, ante tudo o que as imagens mostram, é motivo de ainda mais repugnância o discurso de autodefesa dos agressores centrado, 1. na minimização do ato violento, por eles entendido como se uma mera brincadeira fosse; 2. na justificativa de que, com a Copa, vive-se um “ambiente carnavalesco” na Rússia; e, 3. na afirmação de serem “pais de família trabalhadores”, ou seja, “cidadãos de bem”[2].
Ah, sempre o cidadão de bem…  Esse ilibado senhor, de regra defensor da lei e da ordem, autoproclamado como detentor de uma a moral “acima de qualquer suspeita” e que se distingue do “outro”, do “marginal”, do “delinquente” que ele estigmatiza e encarcera. Para esses “cidadãos de bem” de camiseta verde e amarela: “Quem está brincando no carnaval exagera um pouquinho na bebida e às vezes passa do ponto”.
Confesso que é brilhante a comparação com o carnaval.
Ou será que poderíamos encontrar melhor metáfora do que a do carnaval para compreender o que se esconde por trás das palavras destes senhores? Afinal, acaso não seria o carnaval um momento máximo do machismo da sociedade brasileira que durante quatro dias considera tudo possível, muito especialmente pela coisificação e sexualização dos corpos femininos? Para vocês, na copa ou no carnaval, róseas ou pretas, o que vale é a festa de sua superioridade como “homens”, que “dizem” ser.
Não, não existem palavras ingênuas.
Como diz Ana Gabriela Ferreira o poderio do discurso vai além de sua simples capacidade de enunciação, ele não somente se projeta através do que é falado ou escrito, “mas através da soma de compreensões por ela formuladas, traduzidas e reiteradas, as figuras arquetípicas são criadas e prospectadas ao longo do tempo, formando as sociedades e amalgamando suas complexidades.”[3]
Concordo com ela. Portanto, se, de um lado os atos praticados na Rússia estão expostos a quem quiser ver, por outro, seus discursos, segundo os quais, aqueles e aquelas que contra estes atos se revoltam não passam da transformação de “um copo d’água em uma tempestade”, revelam o que de pior existe nesse nosso país racista, lgbtfóbico e machista.
Não “meus senhores”,  não basta pedir desculpas “às mulheres que possam ter se sentido ofendidas”. Não é de hoje que suas ofensas são, de uma Presidenta a uma jovem russa, dirigidas a todas nós mulheres.
Desejo-lhes alguma sorte, pois espero muito que logo se avistem judicialmente com as mulheres da terra de Kollontai.
*Soraia Mendes é pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É professora, advogada e coordenadora nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM/Brasil.
Visto no: Justificando

Distantes da torcida, jogadores partem para a Copa desconectados da realidade brasileira em meio à greve dos caminhoneiros

Neste atípico domingo, a seleção brasileira encerrou a primeira etapa de preparação para a Copa do Mundo e embarcou rumo a Londres, onde prosseguirá com os treinamentos antes de chegar à Rússia. Enquanto o país vive um colapso de serviços em consequência da greve dos caminhoneiros, jogadores, comissão técnica e dirigentes circulavam de helicóptero entre Teresópolis e Rio de Janeiro. Seguiram para o Galeão sob forte escolta policial e tiveram cada passo no aeroporto transmitido como um estrondoso acontecimento em rede nacional. Despedida digna de uma seleção que despreza sua gente. O processo de elitização dos estádios e a frieza dos cartolas ampliaram o abismo que separa os craques dos meros mortais.

Na Granja Comary, a equipe de Tite fez apenas um treino aberto ao público. A confusão logo se estabeleceu, já que o centro de treinamentos em Teresópolis não possui estrutura para abrigar tantos torcedores. Muitos, incluindo crianças com camisas amarelas, foram barrados do lado de fora mesmo depois de passar horas na fila à espera de uma senha de acesso ao local. Sim, é preciso pegar senha para acompanhar um treino protocolar da seleção. Um treino. Quem conseguiu entrar, se acotovelava por uma selfie ou um autógrafo durante os minutos em que jogadores se dispuseram a atender os fãs. Amontoadas em uma grade que controlava a entrada para as arquibancadas improvisadas, algumas pessoas demonstraram a revolta contra o tratamento de gado dispensado pela CBF com gritos de “uh, uh é 7 a 1”, em alusão ao maior vexame da história do futebol brasileiro.

Resumo da ópera: teve tentativa de invasão, frustração e muita desorganização. Na Copa de 2014, a Granja Comary já havia reproduzido um retrato fiel da desigualdade social no Brasil. Boa parte dos treinos era aberta a torcedores, porém, somente àqueles que moram no condomínio fechado vizinho ao complexo e a seus convidados VIPs. Condôminos resolveram lucrar em cima do privilégio e passaram a cobrar por convites. Ter o nome na lista custava entre 50 e 100 reais. Os treinos “abertos” serviram só para reforçar benesses dos ricos e tornar a seleção ainda mais inacessível aos pobres.

A Copa “padrão FIFA” tinha ingressos proibitivos para quem depende de salário mínimo padrão Brasil. Houve casos de abastados que torraram até 5.000 reais pelo direito de assistir à humilhante eliminação diante da Alemanha na semifinal. O encarecimento virou regra pós-Copa. Estádios se converteram em espaços elitizados e os clubes, na esteira das novas arenas, inflacionaram a arquibancada, chancelados pela política de preços da CBF. Os jogos do Brasil em casa pelas Eliminatórias foram um acinte ao bom senso num cenário de crise econômica. Em Porto Alegre, contra o Equador, as entradas custaram, em média, 214 reais. Mais de 20.000 lugares na Arena do Grêmio ficaram vazios. Contra o Paraguai, na Arena Corinthians, que confirmou a classificação antecipada para o Mundial, o preço dos ingressos variou entre 100 e 1.000 reais. Também em São Paulo, a partida contra o Chile, realizada do Allianz Parque, alcançou renda superior a 15 milhões de reais, um recorde nacional. O bilhete mais barato, desconsiderando a meia-entrada, saía por 250 reais.

Quantos brasileiros podem se dar ao luxo de pagar 250 reais para ver um jogo de futebol? Talvez seja pouco para aquele 1% da população que concentra uma enorme fatia das riquezas, mas representa quase 1/3 do rendimento mensal de mais da metade dos trabalhadores do país. A CBF, que fatura caminhões de dólares por ano, não teve sensibilidade para compreender que um treino aberto em Teresópolis é muito pouco para um time que diz representar mais de 200 milhões de torcedores. Depois do fracasso na última Copa, a confederação sequer moveu esforços para reaproximar a seleção de seu povo. Preferiu seguir caminho inverso ao afastá-la de quem não tem dinheiro sobrando.

Um quadro ainda mais grave se levarmos em conta que, dos 23 jogadores convocados para a Copa, apenas três (Cássio, Fágner e Geromel) atuam no Brasil. Nos acostumamos a ver a seleção e nossos talentos pela TV. Interesses de patrocinadores e acordos comerciais sempre falam mais alto. Os dois únicos amistosos antes da Copa, contra Áustria e Croácia, serão promovidos no exterior por intermédio da Pitch International, empresa investigada pela Justiça americana no escândalo de corrupção da FIFA. Ao contrário dos torcedores comuns, representantes e convidados de patrocinadores da CBF tiveram livre acesso às atividades da seleção na Granja Comary.

A comissão técnica chegou a cogitar um jogo de despedida no Brasil, mas a cúpula da confederação não encontrou brecha na agenda para viabilizar o desejo de Tite. Aquele clima de oba-oba inflado em 2014, de fato, é totalmente dispensável. Mas o torcedor brasileiro, carente de ídolos e violentado pela elitização de sua própria seleção, merecia, no mínimo, uma despedida com ingressos a preços populares e estádio cheio – de preferência, o Maracanã, pelo simbolismo. Ou, pelo menos, um treino de verdade, portões abertos, como fez a Argentina ao receber 30.000 torcedores no estádio do Huracán antes de enfrentar o Haiti na mítica Bombonera. Dirigentes que mandam em nosso futebol parecem habitar outro planeta, incapazes de reconhecer o valor de quem se dispõe a enfrentar fila e pegar senha sonhando resgatar, em frações de um minuto, o vínculo perdido com estrelas tão distantes.

Visto no: El País

Há poucas semanas dez meninos morreram queimados em um presídio de Goiânia. Foram carbonizados dentro de um estabelecimento que sequer poderia existir, em face da vedação constitucional à imposição de sanções penais a menores de 18 anos. Daniel, que chegou a sobreviver ao incêndio, sofreu lentamente uma morte ainda mais dolorosa, depois da amputação de um braço e dias de internação.
Podemos imaginar a cena de horror: o incêndio, os gritos, o choro pela dor lancinante, corpos carbonizados, já sem vida, agarrados uns aos outros como quem busca o socorro que estava ali à porta, mas que não veio. 
Muitos goianos não se incomodaram, outros até comemoraram e alguns poucos se indignaram. As autoridades, esquivando-se de responsabilidades pela tragédia há tempos anunciada, jogam nas vítimas a culpa pela sua própria morte. Como as coisas não costumam mudar nesse campo, nada mudou; e o presídio, ilegal, continua funcionando.
Agora chegam as imagens dos meninos presos nos Estados Unidos. Arrancadas dos pais imigrantes, crianças estão sendo recolhidas em jaulas e expostas a toda sorte de violências físicas e psicológicas. As cenas são chocantes, assim como os áudios com os gritos e o choro desesperado.
Tal como aqui, também lá não se manifesta a indignação geral e muitos “cidadãos de bem” apoiam as medidas de segregação, indiferentes à crueldade praticada contra meninos e meninas e insensíveis ao sofrimento advindo da separação de suas famílias.

É sintomático que uma das primeiras respostas do governo americano tenha sido o anúncio da saída do Conselho de Direitos Humanos da ONU, não sem antes, é claro, responsabilizar os imigrantes pela situação vivenciada pelos seus filhos.
Existem diferenças entre Goiânia e o Texas, a começar da pouca visibilidade e a quase nenhuma repercussão do que houve por aqui. Mas também há semelhanças, pois, enquanto lá são crianças, filhos e filhas de imigrantes, que estão sendo mantidas em situação de cárcere, aqui dez meninos que estavam presos morreram!
A crueldade do aprisionamento é inaceitável em ambos os casos; a ilegalidade também. Se a segregação nas tendas texanas vem sendo comparada ao que aconteceu nos campos de concentração nazistas, o que houve no presídio juvenil de Goiânia também pode ser comparado ao que se via nos fornos crematórios de Auschwitz. Dez meninos foram queimados pelo fogo que nasce da omissão do Estado, da indiferença da sociedade goiana e da ilegalidade do encarceramento de quem jamais poderia estar preso.
O que acontece nos Estados Unidos mostra para o mundo o que o capitalismo reserva para os excluídos do sistema, os indesejáveis eleitos como inimigos a serem combatidos. Do lado de cá, são os corpos de dez meninos que escancaram a ilegalidade da prisão de adolescentes no Brasil, essa rotina naturalizada nas práticas do sistema de justiça. E é em Goiânia, esta cidade encravada no interior de um país periférico, onde assumimos a morte como uma possibilidade, como política pública não declarada e perversa, para os meninos que não estão sob a proteção do capital.
*Haroldo Caetano é Promotor de Justiça, Mestre em Ciências Penais (UFG), Doutorando em Psicologia (UFF).
Visto no: Justificando

07 junho 2018



Em tempos de autoafirmação de identidades, muitas pessoas são encorajadas a sair as ruas exaltando seus corpos, estilos, gostos pessoais, preferências sexuais, posturas estas que por si só são importantíssimas, não apenas por incentivar outros indivíduos invisibilizados a olharem para si mesmos, mas também como forma de militância, indo de encontro a todas as imposições que nos cercam. Porém, nem sempre é possível chegar ao grande público como se é, ou melhor, como se tem vontade de ser. Na contramão dos nossos desejos, há uma silenciosa ditadura gritando um NÃO bem audível para nos coibir de realizar qualquer mudança em nossa personalidade que ameace aquilo visto como aceito pela maioria dominante. Então, entre o ser ou não ser, muitos ainda se negam o direito de existir plenamente contribuindo para uma baixa autoestima, a qual, quando não trabalhada a tempo, pode desembocar em outras patologias emocionais.

De fato, não é fácil se rebelar contra o sistema. Aqueles que conseguiram se sobressair nesse sentido sentem na pele, muitas vezes literalmente, o peso dessa transgressão. Os exemplos são muitíssimos. Variam do manequim que usamos, a textura do cabelo, passando pela tonalidade de nossa pele, as roupas que vestimos, aos gestos que usamos, e vão até questões mais intimistas como quem preferimos nos relacionar, sobretudo sexualmente falando. Assim, encaixotados em moldes pré-definidos, não vemos escapatória, a não ser se enquadrar ao que já é determinado ou recriar nossas próprias embalagens de apresentação. Para isso, é preciso ter criatividade e isto, por ser algo nato, se desenvolve mais efetivamente em uns indivíduos e outros não. Por essa razão, muitos se frustram em suas representações de si, pois não encontram mecanismos de se sobressair ao ponto de criar uma persona digna de visibilidade para os demais a sua volta.

Ilhados entre a norma e a inovação, aquelas pessoas sentem bem mais o peso da exclusão, pois não pertencem ao que é visto como aceito, tão pouco conseguem se encaixar entre os inaceitos. Isso se dá também pela própria construção da personalidade de cada pessoa. Isto porque, o que nos tornaremos é reflexo daquilo que nos foi impregnado ao longo da vida. Nesse acúmulo, as interferências sociais/midiáticas/familiares/religiosas/culturais, esculpem nossas formas, geralmente em réplicas, nos aprisionando ao que foi, e ainda é, pré-estabelecido. Assim, por mais feitos realizados, conquistas adquiridas, metas concretizadas, sentimo-nos insuficientes para essa sociedade predatória da qual nos cobra a oferecer mais do que podemos e o pior, a inferiorizar o muito que já demos a/ou somos.

Não é de se surpreender que haja tantas pessoas insatisfeitas consigo mesmo, pois a cobrança social alimenta à pessoal e nos faz parecer desencaixados do mundo. Logo, desesperados por uma migalha de pertencimento que não é nos ofertado, ficamos cabisbaixos, isolados em nossas incertezas, retroalimentando negatividades capazes de se transformarem em depressões ou até práticas suicidas. Tamanhas ações depreciativas refletem justamente o desejo desse coletivo normatizado: o de querer nos fechar em uma bolha, encapsulando nossas particularidades, desejos e anseios, ao invés de oferecer recursos diversos para que nossos perfis sejam legitimados como são. Por isso, os cabelos cacheados, o turbante, a cor de nossa pele (principalmente a negra), as mulheres plus size, as feminilidades e masculinidades, dentre tantas outras pautas caras a nossa identidade social, precisam ser problematizadas, não só para direcionar as pessoas perdidas em suas representações, como ampliar as opções de existir nessa sociedade indiscutivelmente limitada.

Aliás, penso que é justamente na resistência onde mora o grande lance de buscarmos uma moldura capaz de nos representar publicamente. O barato de ser o que somos reside nisso, em nos autorretratar genuinamente respeitando, antes de tudo, aquilo que somos, com as nossas referências, vontades, limitações biológicas, carências e inquietações. Resistir também significa validar a coragem de que saiu minimamente do casulo da opressão para escancarar sua personalidade através daquilo do qual acha que mais lhe define, por mais fora do convencional que pareça para o restante da sociedade. Então, quando encontrar alguém na rua com um visual/postura/trejeitos/identidade diferentes da sua, legitime a ousadia dela em ser quem é e se sirva dessa coragem para romper o lacre do qual te fecharam. Às vezes, precisamos ser tocados pelo outro para passar a nos sentir em nós mesmos. Permita-se!

Não podemos, porém, buscar em vão uma autossuficiência voltada a agradar aos demais. Se essa for a intenção, passaremos o resto da vida frustrados e com os níveis mais baixos de autoestima. A priori, é preciso redesenhar nossa própria identidade, traçar os riscos capazes de materializar quem somos sem a petulância de levar a público uma perfeição inexistente. Esse rascunho de si leva tempo para se ajustar e geralmente é finalizado quando a maturidade entra em cena. Porém, isso não significa que não é possível criar um perfil imediato de si agora, neste momento, mesmo que falte um retoque aqui ou acolá. O grande lance de ser suficiente para si é que nunca estaremos plenamente concluídos. Haverá sempre uma parte de nós inacabada precisando de uma cor aqui, uma ajustada ali, até que estejamos temporariamente satisfeitos com o todo que criamos. Quando menos imaginarmos, estaremos exalando autoestima a atraindo aqueles, que em outrora, torceram o nariz para nós, por não nos verem como somos ou porque temíamos nos mostrar para estes como éramos por medo de sermos mais excluídos.

Então, voltaremos a nos retocar ao longo da vida, porque passaremos a entender que somos incompletos e não há nada de errado nisso. Faltar algo em nós é o que permite ao outro ser a soma em nossas vidas, da mesma forma que o que nos transborda pode preencher as lacunas de quem nos cerca. Trata-se indiscutivelmente de uma constante troca. O problema é que o maldito sistema nos faz crer que o que possuímos é pouco, insignificante, quando na verdade há muitas pessoas por aí precisando desse ínfimo para retocar suas existências. Filosoficamente, somos suficientes nas nossas insuficiências. Talvez o que falte em cada um de nós seja apenas essa percepção do quão frágil, incompletos e despreparados somos, mesmo que alguns prefiram se enganar acreditando estar acima dos outros por meras convenções sociais. Enquanto isso, vamos contornando as imposições e moldando um perfil pessoal que, se não agrada a todos, pelo menos nos represente e nos faça acreditar que, por mais insuficientes que sejamos aos olhos alheios, não somos, nem permitiremos, sermos para nossos.

Apesar de muito popular nos discursos de autoajuda, o amor próprio não é uma ação fácil de ser realizada. Por mais que saibamos da importância de nos amar, aceitar quem somos, acreditar em nossas potencialidades, sobretudo para nos blindar dos inevitáveis desafios emocionais da vida, nem sempre nos amamos o suficiente para estarmos plenamente protegidos. Na verdade, isso acontece porque, assim como o mar, o amor tem momentos revoltos e de calmaria, ambos necessários e de extrema beleza. O problema é que nas tempestades da vida, somos arrastados até a arrebentação desse sentimento. Então, atordoados pela correnteza, deixamos que o ódio passe a submergir nossa existência ao ponto de não sermos capazes de respirar, sufocando-nos em amarguras, carências e tristezas. Assim, ao invés de nos amar, permitimos que o odiar guie o leme de nossas vidas, mesmo que haja uma bússola interna repleta de amor, apenas precisando de ajustes para redirecionar tanto sentimento bom acumulado.

Deve ser uma barra encarar o espelho e odiar o reflexo do outro lado. Trata-se de negar aquilo que nos tornamos, por acreditarmos ser insuficiente para aqueles que nos rodeia. É uma terrível cobrança pessoal muitas vezes ligada ao que deveríamos ser, ou ter sido, para sermos melhores, mais aceitos e perfeitos. Analisando estas três instâncias, é fácil encontrar nelas as incoerências pelas quais o ódio poderia ser facilmente dissipado. A primeira diz respeito ao modelo competitivo em que estamos inseridos. É exigido cada vez mais de nós o melhor na vida pessoal, profissional, virtual, social, amorosa, que, perdidos em tantas exigências, muitos de nós não consegue corresponder aos anseios da família, do chefe, do companheiro (a), dos internautas, vizinhos, contribuindo para nos fazer surtar, sobretudo os jovens. Então, incapazes de atender todas essas demandas, vamos desapontando cada uma dessas instâncias. É quando o ódio passa a ganhar espaço à medida em que sufoca seu grande opositor, o amor.

Somado a isso, os agrupamentos sociais tendem a abraçar os indivíduos que comungam dos mesmos discursos, gostos pessoais, características físicas, opiniões, visões de mundo, partículas essas muitas vezes ditadas pela sociedade dominante. Logo, quem não se adequa é invariavelmente excluído de fazer parte dos seletos grupos que se criam. Sem esse pertencimento, alguns indivíduos se perdem dentro de si, isolados em seus sofrimentos, incapazes de interagir com seus pares, sem acesso a diálogo em casa, na escola e na rua. Assim, todo o amor represado dentro de si se transforma paulatinamente em ódio pessoal, pois tais pessoas se culpam por terem sido eliminadas do convívio entre os demais. Todavia, nem sempre ser excluído de determinadas relações é fruto de alguma falha nossa. Significa, na maioria das vezes, que o critério de adesão alheio não corresponde ao muito que temos a oferecer.

Dos três, a obrigação pela perfeição é a mais insana, porém, a que retroalimenta todas as outras ditas até agora. É uma palavra pequena mas de imensa reivindicação. Ser perfeito requer de nós uma escravidão ilimitada que vai da aparência ao êxito profissional e percorre as complexas águas da individualidade humana. Mesmo cientes da impossibilidade da excelência, buscamos a maestria mesmo que o fracasso seja inevitável. Em muitos lares, a comparação com aqueles que nos rodeia só agrava o problema: “você não é tão bom/boa quanto ele (a)”. É uma afirmação dura de ouvir, mais ainda de digerir. Muitas vezes, quando dita por quem amamos, ou nutrimos certos afetos, fica revirando em nossa mente, enfraquecendo as poucas defesas que criamos ao longo da vida. O perigo de frases daquela natureza reside em nos fazer naufragar dentro de nós mesmos invalidando nosso amor próprio, ao passo que o ódio assume o controle.

Geralmente é essa a premissa do ódio próprio: nos fazer crer que no não há terra firme a nossa volta, apenas um mar de incertezas e solidão, e no meio dele há você confrontando-se consigo mesmo. Então, sem ter com que direcionar tanta fúria, acontece o autoataque ao pouco de dignidade que nos restava. Uns se isolam do mundo, por se acharem indignos de pertencer a outros grupos. Outros apresentam rompantes de humor em casa, na escola, apresentando comportamentos ora chamativos ora agressivos. Há os que sucumbem às drogas, à criminalidade, recorrendo aos perigos da ilicitude para encontrar algum significado para suas existências. E, por fim, os fragilizados demais para continuar, entregando-se aos braços sempre abertos da depressão. Os mais desesperados ainda se mutilam, cogitam o suicídio e até chegam a realizá-lo em último caso, pois não conseguem encontrar um sentido naquilo em que veem no espelho. É a morte dando sentido as nossas inexistências.

Entretanto, em todo esse desamor, por mais desesperança que haja, de perto é possível enxergar a profundidade do amor no interior dessas pessoas corroídas por uma ideia deturpada de ódio pessoal. São indivíduos extremamente sensíveis, ávidos para amar intensamente todos a sua volta, mas ignorados pela cada vez mais fluída vida moderna. Pessoas que ouviram repetidas vezes que eram incapazes, imperfeitas, incompletas e inferiores, da boca de entes queridos, amigos, parceiros (as), num momento em que suas resistências já não suportavam mais ignorar tantos insultos. Porque, os elogios que recebemos demoram a vir, mas quando chegam são como águas límpidas refletindo as nossas expectativas. Já as ofensas são ondas revoltas, como tsunamis, destruindo os limites que nos mantinham seguros e deixando um rastro longo de destruição a longo prazo.

Nesse sentido, tão complexo quanto amar é odiar. Apesar de opostos, estes sentimentos costumam nos confrontar nos momentos em que estamos mais fragilizados, quando a vida resolve semear a semente da dúvida naquele terreno pessoal até então infértil. O amor demora a dar frutos, porque precisa de tempo para ser regado. Exige cuidados excessivos, vigilância redobrada e dedicação permanente. Já o ódio facilmente germina em nós, pois a dor serve de fertilizante para que ele cresça, muitas vezes ramificando-se como uma praga em nossa essência. Por essa razão, nos odiamos tão facilmente do que nos amamos, porque direcionamos energias distintas para cada uma dessas sensações. Então, seja negligenciando o amor próprio, seja esperando que este afeto nos seja dado por aqueles que nos rodeiam, passamos a nos depreciar deliberadamente, a ponto de nos ferir, às vezes de forma irreversível.

Em contrapartida, se você está entre aqueles que não se suportam, revisite seu eu e não dê vazão a esse ódio. Ele não te pertence, é apenas um produto destrutivo implantado em sua mente querendo derrotar suas reservas de amor guardadas a setes chaves. Não permita que o ódio as encontre. Isso seria doloroso demais para si e a todos que te rodeiam. Entenda de uma vez por todas que este sentimento conflituoso encontrou morada em você, porque o comando dos seus sentimentos foi usurpado por piratas emocionais acostumados a roubar de nós aquilo que mais falta a eles: amor próprio. Então, assuma o leme da sua vida, acredite nesse tesouro precioso escondido no seu peito e reative a bússola suprema que guia nosso amor, o coração. Se ele bate, há esperança de dias melhores, com águas calmas e cristalinas. Se for o caso, recorra a espiritualidade como válvula de transcendência, busque ajuda psicológica, converse com estranhos, mas não desista de si, não se boicote, não abandone o navio antes de chegar a terra firme.

Há muitos mares para navegar, experiências para viver e amores para compartilhar. Ame-se!

Ela era fã de romances. Lia livros e via filmes que falavam de amor e ficava imaginando como seria se ela fosse a personagem principal. Imaginava o homem dos seus sonhos, como ele seria e como seria sua aproximação. Lily era daquelas mocinhas de filme, gostava de histórias com final feliz e possuía uma imaginação tão louca quanto fértil. Freqüentadora assídua de um bar próximo de onde morava, Lily era conhecida lá por ser discreta e sempre tomar a mesma bebida, na mesma mesa toda a semana. O bar era uma danceteria discreta, música ambiente, bar man e sempre frequentado pelas mesmas pessoas. Ela nunca se interessara pelos caras que ali bebiam e conversavam. Achava que eles nunca lhe dariam o romance que ela tanto almejava. Queria algo arrebatador, diferente. Algo que lhe tirasse da mesmice e lhe levasse para dentro de seus livros e filmes de romance, mas desta vez de verdade, não só na imaginação.
Uma certa noite chovia muito e Lily entrou no Dancing e pediu o de sempre ao garçom. Ele lhe trouxe o martini com três azeitonas. Lily gostava do gosto que as azeitonas deixavam no final da sua bebida. E depois ela as comia devagar, saboreando o martini ali impregnado. Naquela noite, ela pouco se interessou em observar as pessoas que estavam no Dancing. Estava concentrada no novo livro de romance que comprara antes de entrar ali. Quando enfim terminou o primeiro capítulo do livro, viu que o martini tb tinha se acabado e com ele as azeitonas. Chegou a pensar que o livro estava tão interessante, que nem percebeu quando as tinha comido. Lily precisava ir pra casa, estava a muito tempo ali sentada sem perceber. Ainda bem que morava bem próximo ao Dancing. Alguns passos e estaria em casa.
Quando fechou o livro e levantou a cabeça para pedir a conta ao garçom, seus olhos lhe levaram para a porta por onde está entrando, naquele instante, um homem bem apressado. Parece estar querendo se proteger da chuva. “Coitado!” Ela pensou. Mas seu pensamento não passou disso. Afinal, era apenas mais um freqüentador novo no Dancing. E neste momento ele a avistou. E foi como se os olhos dele tivesse lhe dado um close. Assim como acontecem nos cinemas. Ele ficou parado por um tempo contemplando Lily. Parecia comê-la com os olhos. O que a deixou muito sem jeito e talvez com um pouco de medo. Mas ela sorriu timidamente a ele. E logo se imaginou fazendo poses para os olhos daquele homem desconhecido que a olhava como se a tivesse fotografando para não esquecer do seu rosto. Pensou que talvez fosse bom retribuir a ele os olhares, afinal ele era muito bonito, pelo menos assim de longe. E foi então, quando pensou nisso, que ela lhe sorriu dessa vez com tamanha felicidade. Pois tinha algo dizendo a Lily que era para ela agir dessa forma. Parecia que os olhos daquele homem a tinham hipnotizado.
Ele veio em sua direção, para Lily não havia mais ninguém no Dancing, apenas ela e aquele homem misterioso. Quando ele se aproximou, ela conseguiu ver direito o seu rosto. Tinha as sobrancelhas grossas e bem desenhadas, um rosto quadrado e lábios médios. O queixo era bem pronunciado. Não possuía barba e nem bigode e os cabelos eram negros e ainda tinha um pouco de costeleta. Parecia aquele personagem do filme que ela tinha visto semana passada. Pensou ser imaginação. Talvez devesse parar de ler e de ver tantos romances. Mas a sua imaginação acabara de lhe oferecer um drinque. Ela disse que sim apenas com a cabeça. Ele puxou a cadeira ainda olhando em seus olhos, quando o garçom se aproximou. E sem tirar os olhos dela ele pediu: “Traga para essa moça o mesmo que estava bebendo e um scotch para mim!” Lily se sentiu confusa. Pensou em ir embora, mas antes mesmo que ela juntasse suas coisas ele falou novamente: “O que um anjo azul faz aqui neste lugar?!” Anjo azul?! Que brega! Mas assim era Lily, brega como seus romances. E nesse instante sua visão ficou flou. Depois deste dia, vários martinis com três azeitonas Lily tomou com aquele homem que deveria ter vindo do romance mais meloso que ela já tinha lido ou visto. Ás vezes era presenteada com uma rosa azul e um poema feito especialmente para ela. Lily estava aproveitando cada momento daqueles encontros no Dancing, que passaram a ser rotineiros e vivia como as personagens mais amadas da face da ficção. Mas o seu romance, de fictício não tinha nada.. Todos os dias quando chegava em casa, e escutava o blues que estava tocando no Dancing quando se conheceram, ficava pensando no olhar, nas palavras em tudo o mais que aquele homem lhe proporcionava, ela se comparava a uma gema sem clara, completamente desmilinguida. Era assim que ela pensava estar. Numa certa noite ele abusou um pouco do tal scotch e entre tantas palavras de amor ele lhe disse que o corpo dela seria só dele aquela noite. “Oh…por favor!” Ela disse. O achou atrevido e ela não seria dessas. Afinal ela era a mocinha e não a moça malvada que quer separar o casal, pensava ela. Mas não era isso o que Lily queria dizer. Queria mesmo ter seu corpo envolto ao dele. Mesmo assim, ela colocou seu xale em volta do busto para esconder o decote da chuva ou de quem quer que seja e se foi. Cheia de vergonha, com o rosto vermelho e quente.
Lily continuou freqüentando o Dancing, mas já não queria encontrar aquele homem. Achava que ele tivesse desistido dela por ela se negar a ir pra cama com ele. Chegou a se arrepender de dizer não, mas Lily era muito tímida e contida em seus sentimentos carnais. Ela queria sim se entregar ao homem da sua vida. Mas achava que ele tinha sido muito canalha ao lhe proferir aquelas palavras. “Meu corpo só dele?! Não sou uma mercadoria!” chegou a pensar cheia de raiva sentada na mesma mesa, tomando seu Martini. Mesmo não querendo encontrá-lo, Lily não parava de olhar para a porta do Dancing. Queria que estivesse chovendo como da primeira vez. E achou que ele nunca mais voltaria ali. Lily tentou se ater ao seu novo romance e quando percebeu que folheava as páginas do livro sem prestar atenção no que estava escrito ali, decidiu ir embora. Juntou seu casaco e bolsa e caminhou até a porta. Quando a abriu, eis que surge em sua frente aquele homem. Tinha ele em suas mãos um buquê de rosas azuis e dez poemas feitos especialmente para ela. Tinha juntado por todos esses dias que não haviam se encontrado. Mas Lily ficou irredutível, apesar de querer abraçar seu grande amor, não pegou as flores ou os poemas, Lhe disse adeus e saiu caminhando. Ele foi atrás dela e gritava seu nome lhe pedindo para esperar. Lily parou e ele em sua frente disse que lhe amava e que a queria como esposa e não como mercadoria. O coração de Lily disparou, era tudo o que ela queria ouvir desde que se conhecia por gente. Ela mal conseguia acreditar quando ele a beijou no altar da Igreja da cidade onde nascera.
Com o passar do tempo, Lily nunca mais leu ou viu um romance. Pensava que, o que ela estava vivendo era suficiente. Nunca mais tomaram drinque no Dancing. Afinal, lá era cheio de homens, não ficaria bem para uma mulher casada freqüentar aquele lugar de solteiros. E tb nunca mais recebera suas rosas azuis ou seus poemas. Sentia falta de tudo aquilo. Talvez Lily seria mais feliz anteriormente e não sabia disso. Achava que sua felicidade estivesse nas mãos de um romance, mas estava enganada. Sua privação da vida que tinha antes lhe respondera que não. O romance da vida real lhe dissera que não.

Visto no: Blog da Rosinha