Nunca se problematizou
tanto as questões sociais quanto na atual realidade brasileira. Sem dúvidas,
essa mudança está intimamente ligada ao acesso praticamente irrestrito à
internet, bem como às redes sociais, aos aplicativos e as discussões fecundas
originadas dentro desses espaços que moldam a vida moderna. Assim, debates relevantes
são levantados na rede, pautas são construídas, inquietações são
compartilhadas, levando ao grande público pendências antes restritas às mesas
acadêmicas. Confundindo-se muitas vezes com o politicamente correto, as novas e
antigas militâncias sociais não buscam apenas ressiginificar certas visões
estereotipadas dos grupos desfavorecidos, mas também e, sobretudo, emancipa-los
através de suas identidades; assegurando-lhes a autonomia para coexistir em
meio a uma sociedade historicamente excludente. O problema, porém, reside na
recepção dada aos militantes, que em conjunto ou individualmente, lutam para
validar suas demandas frente a uma atmosfera social desestimulada a
reivindicar.
A importância de se
militar sobre algo parece óbvia quando se trata do Brasil, visto que as
disparidades existentes por aqui criam a ambientação propícia às diversas
reivindicações. Basta analisar a disparidade entre sexos, sobretudo na questão
salarial, na aquisição de cargos de poder e na violência de gênero; verificar a
intolerância frente às facetas da sexualidade humana, sobretudo quando foge do
padrão “família tradicional brasileira”; além da hipócrita perseguição vindoura
ao povo negro, suas raízes, ancestralidades e legado. Para uma minoria
privilegiada, talvez seja difícil compreender tal processo de empoderamento
nestes e noutros grupos. Isto se dá, porque é justamente a ideia de harmonia
social que é vendida e facilmente comprada pela maioria, ignorando recortes de
sexo, gênero, raça, identidade, classe e posição social, categorias que por si
só já são excludentes. Então, a militância surge para problematizar estas
questões, ao passo que aprofunda o debate em torno da premissa falaciosa cuja
intenção é fazer a sociedade crer numa equiparidade de direitos, que na prática
só é acessível aos grupos dominantes.
Militar é, nesse
sentido, dar visibilidade aos invisibilizados e fazê-los enxergar a sociedade a
partir de uma óptica, que apesar de cruel, é passível de ser transformada. Por
essa razão, não é possível militar no singular. Esta palavra carrega uma ânsia
por inclusão. Logo, seria egoísmo e insuficiente agrupar todas as lutas dentro
de um único vocábulo. Assim, as militâncias se pluralizam porque representam as
carências especificas de grupos com pouca ou nenhuma representatividade. Marcha
das vadias, Parada LGBT, Movimento negro, são alguns dos exemplos. Dentro de
cada um deles, todavia, há diversas outras ramificações focadas em atender aos
anseios urgentes de indivíduos necessitados de recortes mais detalhados para as
suas lutas. É aí onde o politicamente correto se (con)funde com a militância.
Por acreditar ser o bastante existir agrupamentos reivindicatórios específicos,
a sociedade trata com desdém a aparição de subgrupos, pois entende ser
desnecessário e, às vezes, até contraprodutivo fatiar tanto as pautas
existentes.
De fato, falta
unicidade em muitas militâncias, o que prejudica a disseminação de suas
queixas, bem como a credibilidade de suas lutas. Entretanto, a falta de empatia
social nesse sentido se baseia na quase total ausência de incentivo educacional
à defesa de causas urgentes para a sociedade. O que há é uma educação cada vez
mais tecnicista, voltada a realização de tarefas das quais o automatismo se
sobressai do pensamento crítico da realidade. Imersos nessa pedagogia servil,
muitos não encontram tempo, nem razão, para participar de levantes sociais, tão
pouco legitimar suas existências, pois não foram orientados a se enxergar
naquele panorama, logo, ignoram suas pautas. Dessa forma, muitos indivíduos
preferem se aliar aos discursos dominantes do que se arriscar a colaborar com
pactos dos quais não foram devidamente inteirados a firmar.
A relação com a
política é outro ponto responsável por afugentar muitas pessoas de aderirem
certas militâncias. Entendida como um ato político mas nem sempre associado à
politicagem, militar é, sobretudo, uma forma de empoderamento a partir do
instante em que a pessoa se percebe excluída do seio social e usa sua realidade
como plataforma de inclusão pessoal e incentivo aos demais a sua volta a insurgirem-se
contra o sistema. Ou seja, por mais que haja intervenção partidária em alguns
segmentos militantes, o que é passível de discussão, isso não limita o campo de
cobrança, fazendo com que cada um busque se empoderar como protagonista de
dilemas geralmente caros a outras pessoas. Trata-se de ecoar o lugar de fala o
qual costuma ser silenciado pela retórica predominante no país. Militar é
garantir que as vozes dos emudecidos passem a ser ouvidas e, uma vez audíveis,
reverberem junto aqueles que negligenciaram ferozmente suas lutas.
As maneiras de se fazer
isso são inúmeras. Vão da estética, assumindo cabeleiras, perfis corporais,
vestimentas e posturas identitárias particulares, até ações comportamentais
vistas como complexas, como beijo, andar de braços dados, gestos simples mas
hostilizados por quem faz parte do padrão de relacionamento “aceitável”. Como
também ao encontro da valorização de direitos negados pela perseguição da cor e
tudo aquilo oriundo dessa lacuna no percurso histórico que construiu no Brasil
a ideia de que há seres superiores e inferiores de acordo com o seu tom de
pele, mesmo que isso não seja admitido pela maioria. Diante disso, militar
permite a muitos indivíduos a chance de se emancipar ideologicamente frente ao
modelo reinante cuja característica principal é normatizar certos rótulos
vistos como destoantes daquilo que se atribuiu como tolerável. É uma afronta
necessária. Além disso, quando se legitima a existência de uma dada pessoa, por
mais subversiva que ela pareça, encoraja-se outras a se afirmarem formando,
assim, novos coletivos.
É disso que as
militâncias tratam, de transfigurar o corpo humano em um registro único, mas
que pode ser percebido através de outros com necessidades semelhantes. Militar
é documentar essas matérias humanitárias vilipendiadas pelas réplicas tidas
como perfeitas pelo seio social. Por isso que, para muitos, essa exigência se
torna abstrata, pois, além do total desconhecimento sobre a pluralidade do
outro, o que resvala em antipatia, há também a caracterização do outrem a
partir daquilo que é esperado pela maioria. Logo, quando alguém transgrede essa
linha de montagem deslegitima-se suas existências. São essas barricadas
fincadas profundamente na sociedade que impedem o avanço de discussões tão
pertinentes a tantos grupos minoritários, que vão às ruas, às redes, militar
por suas realidades negligenciadas. É preciso ocupar os espaços dantes privados
aos majoritários para bradar todos os inconformismos presos na garganta. Isso
significa resgatar os lugares de fala privados desses grupos, muito embora
vejam nisso uma atitude politicamente correta em demasia. Porém, trata-se de
uma vitória por vez, paulatina, mas significativa daqueles que sozinhos ou
agrupados militam em prol de tantas individualidades esquecidas.
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