Distantes da torcida, jogadores partem para a Copa desconectados da realidade brasileira em meio à greve dos caminhoneiros
Neste atípico
domingo, a seleção
brasileira encerrou a primeira etapa de preparação para a Copa do Mundo e
embarcou rumo a Londres, onde prosseguirá com os treinamentos antes de chegar à
Rússia. Enquanto o país vive um colapso de serviços em consequência da greve dos
caminhoneiros, jogadores, comissão técnica e dirigentes circulavam
de helicóptero entre Teresópolis e Rio de Janeiro. Seguiram para o Galeão sob
forte escolta policial e tiveram cada passo no aeroporto transmitido como um
estrondoso acontecimento em rede nacional. Despedida digna de uma seleção que
despreza sua gente. O processo de
elitização dos estádios e a frieza dos cartolas ampliaram o
abismo que separa os craques dos meros mortais.
Na Granja
Comary, a equipe de Tite fez apenas um treino aberto ao público. A confusão
logo se estabeleceu, já que o centro de treinamentos em Teresópolis não possui
estrutura para abrigar tantos torcedores. Muitos, incluindo crianças com
camisas amarelas, foram barrados do lado de fora mesmo depois de passar horas
na fila à espera de uma senha de acesso ao local. Sim, é preciso pegar senha
para acompanhar um treino protocolar da seleção. Um treino. Quem conseguiu
entrar, se acotovelava por uma selfie ou um autógrafo durante os minutos em que
jogadores se dispuseram a atender os fãs. Amontoadas em uma grade que
controlava a entrada para as arquibancadas improvisadas, algumas pessoas
demonstraram a revolta contra o tratamento de gado dispensado pela CBF com
gritos de “uh, uh é 7 a 1”, em alusão ao maior vexame da história
do futebol brasileiro.
Resumo da
ópera: teve tentativa de invasão, frustração e muita desorganização. Na Copa de
2014, a Granja Comary já havia reproduzido um retrato fiel da
desigualdade social no Brasil. Boa parte dos treinos era aberta a
torcedores, porém, somente àqueles que moram no condomínio fechado vizinho ao
complexo e a seus convidados VIPs. Condôminos resolveram
lucrar em cima do privilégio e passaram a cobrar por convites.
Ter o nome na lista custava entre 50 e 100 reais. Os treinos “abertos” serviram
só para reforçar benesses dos ricos e tornar a seleção ainda mais inacessível
aos pobres.
A Copa
“padrão FIFA” tinha ingressos proibitivos para quem depende de salário mínimo
padrão Brasil. Houve casos de abastados que torraram até 5.000 reais pelo
direito de assistir à humilhante eliminação
diante da Alemanha na semifinal. O encarecimento virou regra
pós-Copa. Estádios se converteram em espaços elitizados e os clubes, na esteira
das novas arenas, inflacionaram a arquibancada, chancelados pela política de
preços da CBF. Os jogos do Brasil em casa pelas Eliminatórias foram um acinte
ao bom senso num cenário de crise econômica. Em Porto Alegre, contra o Equador,
as entradas custaram, em média, 214 reais. Mais de 20.000 lugares na Arena do
Grêmio ficaram vazios. Contra o Paraguai, na
Arena Corinthians, que confirmou a classificação antecipada para o
Mundial, o preço dos ingressos variou entre 100 e 1.000 reais. Também em São
Paulo, a partida contra o Chile, realizada do Allianz Parque, alcançou renda
superior a 15 milhões de reais, um recorde nacional. O bilhete mais barato,
desconsiderando a meia-entrada, saía por 250 reais.
Quantos
brasileiros podem se dar ao luxo de pagar 250 reais para ver um jogo de
futebol? Talvez seja pouco para aquele 1% da população que
concentra uma enorme fatia das riquezas, mas representa quase 1/3 do
rendimento mensal de mais da metade dos trabalhadores
do país. A CBF, que fatura caminhões de dólares por ano, não teve
sensibilidade para compreender que um treino aberto em Teresópolis é muito
pouco para um time que diz representar mais de 200 milhões de torcedores.
Depois do fracasso na última Copa, a confederação sequer moveu esforços
para reaproximar a seleção de
seu povo. Preferiu seguir caminho inverso ao afastá-la de quem não
tem dinheiro sobrando.
Um quadro
ainda mais grave se levarmos em conta que, dos 23 jogadores convocados
para a Copa, apenas três (Cássio, Fágner e Geromel) atuam no Brasil.
Nos acostumamos a ver a seleção e nossos talentos pela TV. Interesses de
patrocinadores e acordos comerciais sempre falam mais alto. Os dois únicos
amistosos antes da Copa, contra Áustria e Croácia, serão promovidos no exterior
por intermédio da Pitch International, empresa investigada pela Justiça
americana no escândalo de corrupção da
FIFA. Ao contrário dos torcedores comuns, representantes e
convidados de patrocinadores da CBF tiveram livre acesso às atividades da
seleção na Granja Comary.
A comissão
técnica chegou a cogitar um jogo de despedida no Brasil, mas a cúpula da
confederação não encontrou brecha na agenda para viabilizar o desejo de Tite.
Aquele clima de oba-oba inflado em 2014, de fato, é totalmente dispensável. Mas
o torcedor brasileiro, carente de ídolos e violentado pela elitização de sua
própria seleção, merecia, no mínimo, uma despedida com ingressos a preços
populares e estádio cheio – de preferência, o Maracanã,
pelo simbolismo. Ou, pelo menos, um treino de verdade, portões abertos, como
fez a Argentina ao receber 30.000 torcedores no estádio do Huracán antes de
enfrentar o Haiti na mítica Bombonera. Dirigentes que mandam em nosso futebol
parecem habitar outro planeta, incapazes de reconhecer o valor de quem se
dispõe a enfrentar fila e pegar senha sonhando resgatar, em frações de um
minuto, o vínculo perdido com estrelas tão distantes.
Visto no: El País
Dói pensar que apesar de tudo, todos são gente como a gente. A ganância e a inveja destroem a humanidade e tudo aquilo que um dia poderia ser bom.
ResponderExcluirSomo tantos e grandes e ao mesmo tempo incapazes e pequenos.