23 junho 2018

A masculinidade tóxica na copa do mundo (dos homens) - por Isabela Guimarães Del Monde e Tainã Góis**


Pelo menos três vídeos de brasileiros assediando mulheres durante a Copa do Mundo Masculina da FIFA de 2018 viralizaram na última semana. Fosse um evento isolado, seria possível pensar em tolerar o argumento de que foi apenas uma “brincadeira em má hora” ou uma graça “que saiu dos limites”. A similaridade entre as condutas de agentes independentes, porém, coloca a lógica a favor das feministas: existe uma forte questão estrutural que une e explica esses eventos.
Para começo de conversa, é preciso reconhecer que a Copa do Mundo e os eventos esportivos em geral seguem marcados por uma desequilibrada masculinidade. Não são poucas as denúncias do machismo nas mais diversas modalidades: desde os casos de assédio sexual na ginástica e na natação, nos Estados Unidos e no Brasil, passando pelo caso das interrupções compulsórias de carreira por conta da maternidade no vôlei brasileiro, chegando no presente da ainda imensa desvalorização da Copa do Mundo de Futebol Feminino – que existe, pasmem, desde 1991 e já teve 7 edições!
É claro que o Mundial de Futebol Masculino é um evento importante para a população brasileira, e não podemos fazer críticas descoladas que invalidem por completo sua potencialidade de fortalecer laços e criar orgulho popular. Entretanto, e isso não pode deixar de ser dito, a Copa do Mundo Masculina é um evento organizado por homens para homens, no qual reina soberano o ideal hegemônico de masculinidade: pautado pela competição, pela exaltação da superioridade, necessidade constante de afirmação, humilhação, agressividade e silenciamento entre os homens e dos homens contra as mulheres.
Assim como um evento não é essencialmente bom ou mau, também não advogamos pela ideia de que os homens sejam natural e biologicamente violentos. Nada é natural. O que acontece é que uma masculinidade passa a ser tóxica ao reproduzir uma construção histórica do masculino superior e dono do mundo, especialmente na figura dos homens heterossexuais, brancos e economicamente dominantes – exatamente o perfil dos homens que estão assediando as mulheres russas, o que não nos surpreende.
Um dos traços da masculinidade dominante – a do Self-MadeMen – é a necessidade de se provar constantemente na esfera pública. Entretanto, após uma prova é necessário realizar outra e mais outra e infinitas mais para que constantemente esteja assegurado àquele homem o reconhecimento de sua virilidade pelos demais. Uma forma de viver baseada, portanto, em ansiedade e competição. Apesar de se tratar de uma construção social, esses homens são responsáveis por seus atos pois escolhem ser e permanecer ignorantes quanto a sua posição de privilégios desiguais nas relações de gênero.
Compreender algumas das estruturas desse modelo de ser homem nos ajuda a situar o comportamento dos assediadores brasileiros na Rússia. Parece não haver um ambiente mais propício que um evento esportivo faraônico – e, por óbvio, competitivo – para que sejam praticados os exercícios de comprovação da masculinidade dominante. Esses homens não sentiram nenhum tipo de constrangimento, culpa ou mesmo senso de responsabilidade ao humilhar as cidadãs russas; pelo contrário, se sentiram completamente confortáveis e socialmente amparados pelo aparato que os sustenta e o qual eles alimentam. 
Esse tipo de masculinidade se cria e sustenta no antagonismo às mulheres, aos negros, e às pessoas LGBT+, que são constantemente diminuídas, desvalorizadas e coisificadas. Se um grupo social (homens dominantes) não se reconhece em um outro grupo (mulheres), as relações do primeiro com o segundo são norteadas por valores utilitaristas de consumo, aproveitamento, uso e abuso, os quais são projetados nos corpos femininos atacados pelo racismo e pela cultura do estupro.
A cultura do estupro é a forma como tratamos nossas mulheres frente à pressão do poder do patriarcado – as mulheres são vistas, por um lado, como vítimas indefesas de seus corpos e, por outro, como culpadas por seus desejos. Um dos vídeos deixa isso bastante óbvio: a mulher tem sua autonomia sexual violada, sendo induzida ao erro de falar algo que, se tivesse plena ciência do que se trata, talvez não o fizesse, ainda mais sem controle quanto à exposição do material gravado. Os homens, por sua vez, atingem a completude de seu destino manifesto de macho alfa dominante quando conseguem, se valendo de uma coisa tão banal como a diferença de idioma, assaltar à mulher a autonomia sobre seu corpo e sua imagem.
O patriarcado e as opressões não se sustentam apenas na misoginia, mas também num profundo racismo. É esse ranço que explica o fato de, em um dos vídeos, alguns homens gritarem “buceta rosa” ao lado de uma mulher loira. Para além da coisificação da mulher, reduzida ao seu órgão sexual, numa banalidade sem fim, estamos lidando aqui com um óbvio racismo que trata de hierarquizar as mulheres por raça, fomentando a exclusão social, a violência e a competição feminina e a partir da desvalorização de um imenso grupo social, como nos explicou Ana Paula Lisboa.
As reivindicações têm amparo legal e têm repercutido em respostas pelas autoridades competentes contra os assediadores de um dos vídeos. Eduardo Nunes, Tenente da Polícia Militar de Santa Catarina, está enfrentando um processo administrativo aberto pela Corporação; Diego Valença Jatobá, advogado e ex-Secretário de Turismo em Ipojuca – PE enfrentou nota de repúdio da OAB de Pernambuco; Felipe Wilson foi demitido do seu emprego da companhia área Latam Airlines. Já Luciano Gil Mendes Coelho assiste à divulgação pública de seu envolvimento, como investigado, na operação ‘Paradise’ da Polícia Federal e do Inquérito Administrativo que está respondendo perante a Prefeitura de Araripina devido ao não comparecimento para exercer as funções de engenheiro civil como servidor público efetivo lotado na Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura. O inquérito pede a exoneração do servidor dos quadros do funcionalismo público municipal.
Além disso, os quatro assediadores poderão ser processados na Rússia a partir da atuação da jurista russa Alyona Popova, que criou uma petição online contra os atos machistas por violência e humilhação pública à honra e à dignidade de outra pessoa. Por fim, mas não menos importante, o Ministério Público Federal no Distrito Federal abriu procedimento investigatório criminal pelo cometimento do crime de injúria.
Parece tempestade em copo d’água, eles afirmam. Mas só se tratarmos disso como uma questão individual. Apesar de ser importantíssima a materialização da responsabilização dos agressores, sabemos que a punição isolada não basta.
O grande problema, e o motivo pelo qual as ativistas têm total razão em se levantar e debater o caso à exaustão, é que não se trata de uma situação isolada, mas sim da reprodução de toda uma pesada estrutura social que coloca todas as mulheres em uma condição vulnerável. Denunciar os casos da vez é apenas uma forma de forçar o mundo dos homens a pensar sobre suas questões.
Se o agressor insiste em permanecer refratário a pensar e mudar, insiste o ativismo feminista em dizer: isso não é sobre você, é um ato de amor pela emancipação da sociedade das amarras do patriarcado.
Isabela Guimarães Del Monde, advogada sócia do Tini e Guimarães Advogados e Cofundadora da Rede Feminista de Juristas – deFEMde.
Tainã Góis, advogada e pesquisadora, mestranda em Direito Coletivo do Trabalho, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas – deFEMde.
Visto no: Justificando

Um comentário:

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