Dentre as tantas magníficas lições legadas por Warat, uma das que mais me encanta por sua capacidade de tirar o véu discursivo que encobre o que há de pior nas ações racistas, machistas e/ou lgbtfóbicas, é aquela que se resume na frase “Não existem palavras inocentes”.[1] Digo isso porque, algumas vezes, para além das ofensas diretas, provocam ainda maior asco os discursos que tentam justificá-las com o uso de expressões chave demonstrativas das relações simbólicas de poder que vigem nesta nossa dita sociedade de “pessoas de bem”.
Recentemente, como todos e todas tivemos o desprazer de tomar conhecimento, um grupo de brasileiros – diga-se, homens, brancos e supostamente héteros (!) –, apareceram em vídeos divulgados internacionalmente em uma demonstração exemplificativa dos diferentes tipos de violência das quais as mulheres no Brasil e no mundo são vítimas no Brasil e no mundo. A covardia das ações praticadas falam por si só. Uma mulher, em meio à gritaria de baixo calão masculina, ignorante quanto ao que a ela, e sobre ela, diziam.
A imagem da jovem ofendida como mulher, por ser mulher, por trogloditas fardados com camisetas verde e amarelo é, como sói acontecer, grotesca. Ela traz à mente uma coletânea de atos de violência conhecidos por todas nós mulheres em nosso dia a dia. Mas, especialmente, também me fez lembrar de, dentre outros tantos atos misóginos que marcaram o golpe de 2016, aquele consistente na utilização da figura da ex-Presidenta Dilma como um adesivo de conotação sexualmente violenta que era colado nos tanques de combustíveis por muitos que naquela época também vestiam a camiseta “canarinho”.
Quem sabe esses mesmos autores da ação na Rússia não teriam um decalque desses em seus carros? Não lhes concedo o privilégio da dúvida.
Ah, sempre o cidadão de bem… Esse ilibado senhor, de regra defensor da lei e da ordem, autoproclamado como detentor de uma a moral “acima de qualquer suspeita” e que se distingue do “outro”, do “marginal”, do “delinquente” que ele estigmatiza e encarcera. Para esses “cidadãos de bem” de camiseta verde e amarela: “Quem está brincando no carnaval exagera um pouquinho na bebida e às vezes passa do ponto”.
Confesso que é brilhante a comparação com o carnaval.
Ou será que poderíamos encontrar melhor metáfora do que a do carnaval para compreender o que se esconde por trás das palavras destes senhores? Afinal, acaso não seria o carnaval um momento máximo do machismo da sociedade brasileira que durante quatro dias considera tudo possível, muito especialmente pela coisificação e sexualização dos corpos femininos? Para vocês, na copa ou no carnaval, róseas ou pretas, o que vale é a festa de sua superioridade como “homens”, que “dizem” ser.
Não, não existem palavras ingênuas.
Como diz Ana Gabriela Ferreira o poderio do discurso vai além de sua simples capacidade de enunciação, ele não somente se projeta através do que é falado ou escrito, “mas através da soma de compreensões por ela formuladas, traduzidas e reiteradas, as figuras arquetípicas são criadas e prospectadas ao longo do tempo, formando as sociedades e amalgamando suas complexidades.”[3]
Concordo com ela. Portanto, se, de um lado os atos praticados na Rússia estão expostos a quem quiser ver, por outro, seus discursos, segundo os quais, aqueles e aquelas que contra estes atos se revoltam não passam da transformação de “um copo d’água em uma tempestade”, revelam o que de pior existe nesse nosso país racista, lgbtfóbico e machista.
Não “meus senhores”, não basta pedir desculpas “às mulheres que possam ter se sentido ofendidas”. Não é de hoje que suas ofensas são, de uma Presidenta a uma jovem russa, dirigidas a todas nós mulheres.
Desejo-lhes alguma sorte, pois espero muito que logo se avistem judicialmente com as mulheres da terra de Kollontai.
*Soraia Mendes é pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É professora, advogada e coordenadora nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM/Brasil.
Visto no: Justificando
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