Eles morrem de todas as formas mais cruentas de morrer. Morrem não porque tenham invadido uma casa, não porque tenham molestado um gato, não porque tenham furtado uma banana podre de uma barraca de feira, não. Morrem por serem quem são. Morrem matados, humilhados, por serem como são. Morrem faz tempo, morrem nos guetos, morrem nos cortiços. Morrem em toda parte.
No dia em que fui dispensado do serviço militar obrigatório, éramos milhares de adolescentes em um ginásio poliesportivo de Ribeirão Preto. Estava prestes a fazer dezoito; um de nós, porém, muito diferente de todos nós, vestia roupas femininas, usava saltos femininos, tinha cabelo feminino, foi exibido à multidão de garotos como se fora um bicho e, ali, para delírio da plateia, teve seu cabelo raspado. Eu estava a poucos passos dele e era nítido que estava aterrorizado. Também se chamava Roberto, como eu, e estava na fila poucos metros à minha frente. Foi vaiado, foi xingado e carimbado: Pederasta! Um carimbo enorme, que até hoje, caso ainda esteja vivo por aí, ornamenta seu Certificado de Dispensa de Incorporação. Foi enxotado, por ser um péssimo exemplo à juventude brasileira. Uma das cenas mais marcantes de minha vida. A concha acústica que formava o ginásio, lá conhecido por Cava do Bosque… Saiu pregado, anti-cristo da moral e dos bons costumes. Soube depois que ele morava perto de casa. Nunca o havia visto antes, nunca o vi depois. Desapareceu.
No júri, C. L. J. se tornou meu conhecido. Matava na Avenida Celso Garcia, uma das mais importantes aqui de Sampa. Matou muitos e só matou muitos deles, porque eram invisíveis, marginalizados, desprotegidos e sem direito a alçarem voos à dignidade humana, à dignidade processual. Somente foi identificado quando mais de uma dúzia haviam sido brutalmente mortos, emasculados. C. L. J. era um herói condecorado por atos de bravura, havia matado outros em situações extremas. Só parou de matar quando matou excessivamente e sempre me perguntei se houve um caso de alguém ter matado mais doze médicos, costureiras, protéticos, publicitários ou coveiros. Não. Só conseguiu matar tanta gente porque as pessoas que matava eram menos pessoas. Eram não pessoas.
Carlota (nome que troco propositadamente) passou pelas dores terríveis de uma cirurgia de transformação. Pobre, inscreveu-se em um desses programas oficiais politicamente corretos e percebeu que jamais teria chances de atendimento, além de ter sido obrigada a devassar sua vida e sua intimidade a entrevistas invasivas de toda espécie. Partiu para uma aventura enlouquecida e, após prostituir-se muito além do suportável, conseguiu pagar, em Milão, alguém que fizesse a operação, com o mínimo padrão de segurança. De volta ao Brasil, tentou mudar seus documentos e festejar a vida nova. Não deferiram nem indeferiram, uma vez que o juiz de direito mandou expedir um mandado de averbação e nele carimbar: transexual. A explicação de Sua Excelência foi simples: era uma precaução para que Carlota não enganasse as pessoas, ocultando sua real condição. Na cabeça do Magistrado, as pessoas conferem as carteiras de identidade de seus parceiros. Carlota sentiu-se um lixo e disse para mim que preferia ter sido morta no parto.
Todas essas pessoas passaram por minha vida, inclusive as envergonhadas famílias das travestis mortas, numa cena de filme de horror. Uma delas me pediu para que o sobrenome da família fosse poupado: até morto e depois de emasculado, estripado e assassinado, encontrou-se tempo para sentir-se vergonha pela exposição dos parentes, que não tinham nada com aquilo.
Vejo agora a indignação furiosa de quem se inconformou com uma alegoria na Passeata do Orgulho Gay, na verdade uma manifestação de milhões de pessoas contra a intolerância, manifestada no repúdio à homofobia. A passeata que irrita, somente irrita porque expõe ao sol os preconceitos, as limitações e os ódios que se cultivaram nos últimos meses, em que erguemos e cultivamos frondosas árvores de frutos envenenados.
A alegoria, porém, remonta ao tratamento que se deu a um homem que era diferente dos demais de sua época. Aos que creem na Sua existência, pareceria mais coerente identificar-se com a alegoria do que abominá-la. Se há milhões de pessoas que acreditam que Jesus é o Salvador, talvez tenham se dado conta de que a principal lição não teria sido apreendida: o amor, o respeito, a igualdade.
Temos um Jesus crucificado por dia em cada poste. Temos o Jesus Gay, temos o Jesus Negro, temos o Jesus Morador de Rua, temos o Jesus preso em cadeias fétidas, temos o Jesus morto na periferia, temos o Jesus subempregado nos faróis, temos o Jesus analfabeto, temos o Jesus morrendo à míngua nos hospitais sem saúde no Brasil, temos o Jesus retirando dos lixões sua subsistência e matando sua fome com comida podre, temos o Jesus criança abusado sexualmente, temos o Jesus criança vitimizado em porradas e fraturas, temos o Jesus criança prostituindo-se em paraísos tropicais deslumbrantes, temos o Jesus criança que dorme no ventinho quente do Metrô nas noites geladas da Paulicéia, temos o Jesus enlouquecido zumbizando pela rua, temos o Jesus morto pela intolerância, homem ou mulher, mulher ou homem, temos o Jesus que é estuprada pelo marido, pelo pai, pelo irmão, pelo avô, temos o Jesus carvoeiro, temos o Jesus que quebra coco, temos o Jesus morto no trem, temos o Jesus torturado numa viatura policial, temos Jesus para todos os gostos.
Deixemos que o Jesus da Parada Gay renasça em uma ponte de discernimento, igualdade, respeito à pluralidade, aos direitos humanos, à dignidade para todos, à paz, à felicidade como projeto de cada um, em liberdade e em comunhão de liberdade.
Aos que não conseguirem, aos que sequer tentarem, aos que se irritarem lendo isso, que procurem dentro de si o Jesus perdido em algum lugar.
Certamente, Ele existe e só espera uma única chance.
Visto no: Justificando
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