Não é raro – para não dizer frequente – nos depararmos, em alguns setores de movimentos sociais, com palavras de ordem a bradar que homens não podem ser feministas, heterossexuais não podem lutar contra a discriminação de homossexuais, “brancos” (e ficam aqui as aspas para indicar a frágil definição conceitual da categoria “raça”) não podem militar contra o racismo, cis-sexuais não podem defender direitos dos transsexuais, “ricos” não podem combater a exclusão social.
Todo esse “não-pode-não-pode-não-pode” geralmente procura ser justificado pelo argumento da qualidade inata de opressor, ou seja: que homens “nascem” machistas e não sabem o que passa uma mulher, heterossexuais “nascem” no privilégio da heterossexualidade e jamais poderão experimentar uma manifestação homofóbica como um homossexual, o “branco” “nasce” racista e não será alvo de discriminação racial, e assim por diante, muitas vezes acompanhando-se tais argumentos de acusações de “hipocrisia” e “petulância”.
Mas será produtivo continuar a despender tanto tempo e energia na fogueira das vaidades de disputa pelas caixinhas e prateleiras mais bem-acabadas e detalhadas onde colocaremos, indicados por abas coloridas, as feministas cis-brancas, as defensoras dos direitos das trans-negras, os militantes do movimento negro homossexual, as lésbicas brancas periféricas, os bissexuais deficientes, e toda a miríade de combinações possíveis entre vulnerabilidades sociais?
É evidente ser imprescindível reconhecer as especificidades de demandas de todos os grupos, muitas vezes obscurecidas pela essencialização dos sujeitos de direitos – daí o problema em se falar de demandas para “A” mulher, “O” negro, “O” homossexual, “O” transsexual, ignorando as diferentes realidades e trajetórias experimentadas pelos indivíduos que compõem as categorias, negando-lhes suas identidades. Mas é importante não confundir identidade com posição política: ser negro é identidade, militar contra o racismo (qualquer que seja o tom da sua pele) é posição política. Ser (uma das muitas possibilidades de) mulher é identidade, ser feminista (qualquer que seja seu sexo ou seu gênero) é posição política. Ser homossexual é identidade, lutar contra a homofobia (qualquer que seja sua orientação sexual) é posição política. E esta confusão entre identidade e posição política e a disputa por essas categorias podem trazer ainda mais cisão e intolerância entre os grupos sociais, ou seja, o efeito contrário do que (imagino) se pretende.
Para agregar mais elementos a essa reflexão e possibilitar que diferenciemos o que é identidade e o que é posição política – e poder constatar que não são condicionantes entre si – vale a pena esmiuçar alguns conceitos que ajudam a compreender a construção cultural e social da exclusão de determinados grupos: a ideologia discriminatória, o preconceito e a discriminação.
A ideologia discriminatória pode ser descrita como um conjunto de crenças na inferioridade de determinado grupo, construindo uma identidade alvo de preconceito. A ideologia discriminatória opera por meio de uma lógica perversa, pois forma e fomenta mentalidades de modo a ensinar, desde muito cedo, que situações de injustiça e exclusão são normais e fazem parte da vida. E todos crescemos e formamos nossas identidades expostos às mais diversas ideologias discriminatórias: quando crescemos assistindo a um programa de TV de sucesso que nos ensina que um homem de trejeitos classificados como afeminados é algo digno de riso (e não de respeito), aprendemos que “isso é assim mesmo”, da mesma forma quando meninas são ensinadas “a sentar direito para se dar ao respeito”, ou quando se afirma que negros “de sucesso” são cantores de determinados estilos musicais ou atletas de determinadas modalidades (alguém aí lembra de um violoncelista ou esgrimista negro?).
O preconceito, como se depreende da própria análise semântica do termo, é um “pré-conceito”, ou seja, o julgamento de pessoa ou situação com base na ideologia discriminatória, e não no que de fato se conhece sobre aquele indivíduo. A ideologia discriminatória alimenta os preconceitos construindo estereótipos negativos, que são representações essencializantes e coletivamente compartilhadas, inclusive por quem sofre o preconceito. Sendo mulher e crescendo sendo ensinada a “sentar direito para me dar ao respeito”, internalizo a norma segundo a qual somente serei digna de respeito se me portar de determinada maneira (e acreditarei que as mulheres que não “sentam direito” não são dignas de respeito). Sendo negro, cresço aprendendo que para ter sucesso há apenas um leque bem estreito de opções que me restringirão a determinadas trajetórias de vida, e me faltarão modelos de outras experiências. Sendo homossexual, aprendo que serei objeto de ridicularização e marginalização. E, nem é preciso dizer, que os grupos imunes a alguns preconceitos, internalizarão e serão empoderados pela assimetria de poder imposta pela ideologia discriminatória.
Esse aprendizado da norma preconceituosa (e, portanto, injusta) conduz à ponta do iceberg, que é a discriminação: ação decorrente do julgamento preconceituoso construído e legitimado pela ideologia discriminatória. Quando se acredita que meninas tem que “sentar direito para se dar ao respeito”, ensina-se desde cedo a julgar a menina que “não senta direito” como não sendo digna de respeito, e, como consequência deste julgamento, ela poderá ser preterida em determinadas situações em decorrência do julgamento de seu caráter a partir de sua vida sexual. Quando se acredita que negros somente fazem sucesso quando são músicos ou atletas, ensina-se que não são capazes de outras trabalhos, e, como consequência deste julgamento, serão discriminados quando ousarem exercer outro tipo de atividade.
Desta forma, é importante o reconhecimento de identidades de grupos histórica, cultural e socialmente vulnerabilizados para que se possam ressignificar signos como aparências, comportamentos, roupas, sotaques e recolocá-los no campo da representação coletiva como algo positivo: daí a importância de movimentos como a Marcha das Vadias, a Parada do Orgulho LGBT, ou o clássico “black is beautiful”. Mais importante ainda é dar voz a essas pessoas, que em geral são subrepresentadas nas arenas de debate político, para que possam falar por si mesmas a respeito dos obstáculos que precisam transpor, e pensar as melhores estratégias para tanto.
Porém, há que se cuidar para não transformar a militância pela igualdade de direitos em uma busca pelo inimigo: classificam-se rapidamente todos os homens como machistas inatos, todos os heterossexuais como homofóbicos de nascença, todos os “brancos” racistas de pai e mãe, em uma reedição da ideia do pecado original. Na melhor das hipóteses, recebem na testa o carimbo indelével com os dizeres “em desconstrução”, como se fosse razoável atribuir culpas a sujeitos determinados, diagnosticar maldades individuais passíveis de tratamento ou punição, a ignorar quase que por completo o processo de construção de mentalidades preconceituosas, legitimadas por ideologias seculares e manifestadas por atitudes discriminatórias.
Mais justo, eficaz e maduro é sermos todos indignados pelas mais diversas discriminações: não preciso ser mulher para me indignar com o machismo, não preciso ser negra para me indignar com o racismo, não preciso ser homossexual para me indignar com a homofobia, não preciso ser transsexual para me indignar com a transfobia, não preciso ser pobre para me indignar com a exclusão social. Acusar esse novo “outro” de privilegiado afasta do debate e impede a empatia imprescindível para erradicar toda forma de preconceito e discriminação.
Então, na minha identidade de cidadã (como indivíduo que ocupa uma relação de direitos e deveres com o Estado e com os demais cidadãos), considero que sim, é problema meu se um negro sofreu preconceito racial, se uma mulher foi alvo de machismo, se um homossexual foi discriminado. É de meu interesse viver em uma sociedade libertária e igualitária.
Maíra Zapater é graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP. Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv.
Visto no: Justificando
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