07 junho 2018

O lugar que não escolhi chamar de lar


Para um desenvolvimento saudável, além do acesso a saúde, educação, segurança e alimentação, as crianças e os adolescentes precisam crescer em ambientes onde o alicerce psicológico lhes garanta uma construção emocional tranquila. Sem priorizar esta questão, muitas lacunas podem ser abertas na vida desses futuros adultos, sobretudo no que se refere a sua autonomia para tomar decisões cruciais para sua sobrevivência em sociedade. Entretanto, em muitos lares, não é dado o devido enfoque a essa pauta. Assim, cercado de violências físicas, ideológicas, simbólicas e emocionais, a psique de muitos jovens cresce abalada, sedimentando em suas personalidades perfis pessoais enfraquecidos pelos traumas adquiridos com aqueles que deveriam garantir o fortalecimento de suas crias. Com base nisso, que lares são esses onde as opressões se tornam protagonistas na vida de tantos indivíduos em construção, sufocando suas personas com ares de agressividade cuja inalação insere em suas entranhas os odores da hostilidade, que serão expelidos ainda mais tóxicos no futuro?

De todos esses vapores, o da violência continua sendo o mais nocivo. Por se apresentar de diversas formas, os lares violentos constroem o pano de fundo para emoldurar no outro, sobretudo nos mais juvenis, a banalização da violência em detrimento da total exclusão do diálogo. Ao crescer em atmosferas onde o grito é o canal primitivo utilizado como comunicação entre os pertencentes daquele local, possivelmente muitas crianças reproduzirão esta forma interacional quando adultas. As mais sensíveis, absorverão aqueles berros como práticas animalescas de se chegar ao outro, elaborando uma entonação pessoal mais contida, algo beirando a timidez ou total incomunicação com o mundo lá fora. Além de mexer com o caráter emotivo dos envolvidos. Há casos em que pessoas, mesmo após adultas, chorem quando são repreendidas por algum erro, principalmente se o interlocutor elevar o tom de voz. São sequelas advindas da falta de conversação, insensatez e imaturidade de muitos adultos em lidar com seus problemas.

Não é de se estranhar que muitas crianças e adolescentes se tornem mais introspectivos ao longo da vida, privando-se de se posicionarem publicamente. Vítimas de uma ditadura familiar, da qual o mais forte, geralmente aquele que mantém o sustento da casa, é o que dita o que pode ou não ser falado e quem tem ou não o direito de fala, muitos infantes limitam-se a se expor o menos possível. Esse controle na fala interfere nos estudos, na interação entre os jovens, nas conquistas amorosas, em entrevistas de emprego e em tantas outras áreas determinantes para nossa vivência em sociedade. Há aqueles, que proibidos de se colocar em casa, encontram em outras esferas sociais a chance de expor o que sentem, geralmente em demasia. Falam incontrolavelmente como se estivessem há anos amordaçados dentro de suas realidades. E estavam! Então, quando há uma chance de se mostrarem como são, seus problemas ganham voz exibindo a face desse tipo de violência.

Somado a isso, vêm as agressões físicas das quais, quando presenciadas pelos menores, geram nestes sentimentos que variam de autodepreciação à revolta, ou pior, da naturalização à banalização. Não é de se surpreender, por exemplo, quando rapazes frutos desses recintos se transformem em homens violentos com seus cônjuges, pois aprenderam a usar dentro de casa a força física como forma de impor o respeito esperado. É a violência usada para intimidar, criando uma ideia distorcida de subserviência entre aqueles que habitam o espaço chamado de lar. Se a herança familiar trouxer no seu bojo assédios, estupros, privações do direito de ir e vir, humilhações, ameaças a integridade física do outro, a juventude inserida nesse coquetel molotov difundirá essas e outras violências dentro dos seus contextos de vida.

Esses pais, mães, conhecidos ironicamente como “responsáveis” pela criação infanto-juvenil dos muitos cidadãos brasileiros, são os mesmos culpados por intoxicar o ar da juventude com suas brigas mesquinhas, reflexo de relações doentias, fragilizadas pela traição, falta de companheirismo e desamor. A alienação parental é uma prova disso. Quando o fim de um relacionamento amoroso se dá, muitas vezes de forma egoísta, quem paga o ônus de ver os progenitores se separando são aqueles que não têm nada a ver com isso, os filhos. Entretanto, para barganhar uma faísca de esperança, ou simplesmente usar os rebentos como moeda de troca para ferir o ego do outro, pais e mães usam sua prole de cabo de guerra na tentativa fracassada de macular uma das partes da questão, quando, na verdade, ambos estão equivocados por recorrer a esse artifício. Deslocados no meio do fogo cruzado, muitas crianças e adolescentes são influenciados a se posicionar para um dos lados do embate, ou elaboram uma ojeriza parental agravando ainda mais esse dilema.

A superproteção familiar é outra artimanha comum em lares irrespiráveis. Sob alegações questionáveis, pais e mães superproterores proíbem a autonomia juvenil de conhecer coisas, experienciar realidades, descobrir suas preferências, se aventurar, arriscar, alimentar a natural curiosidade da juventude pelo novo. Então, na sua neura em criar um casulo impenetrável para seus filhos, muitos desses pais colaboram negativamente para a formação daqueles indivíduos. Por essa razão, muitos jovens, cada mais tardiamente desmamados, sentem-se inseguros a tomar decisões quando a vida adulta lhes bate à porta. Não sabem qual carreira seguir. Por não terem tido liberdade de experimentar o mundo, desconhecem os rumos que tomarão em suas vidas. Indecisos, são mais propensos a patologias modernas como a depressão. Outros encontram nas drogas, lícitas ou não, o refúgio para suas incertezas, mesmo que para isso insiram-se no labiríntico caminho da criminalidade.

Esses lares não foram os desejados por muitos jovens. Eles não escolheram presenciar seus entes amados digladiando-se ferozmente para conquistar meros instantes de destaque. Tão pouco são culpados por reproduzir muitas dessas violências, adquiridas em anos de opressão, em suas vidas adultas. Assim como esponjas, a juventude, sobretudo na tenra infância, é mais susceptível a absorver exemplos nocivos de comportamento, naturalizando-os e, na pior das hipóteses, reproduzindo-os dentro dos seus contextos. É preciso reavaliar isso. Enquanto adultos, muitos pais, mães e responsáveis, precisam assumir os encargos da criação emocional de seus filhos, construindo seres fortes, autônomos e independentes. Se possível, pacíficos, respeitosos, abertos ao diálogo e avessos à violência. É isso que a sociedade espera, já que o lar é a instância principal na formação educacional do indivíduo, onde os valores mais humanos deveriam ser repassados e problematizados. Esse é o exemplo de um habitat sadio. Porém, qualquer coisa que vá de encontro a isso não merece receber o nome de lar.

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