21 fevereiro 2018



A linguagem nunca viveu momentos tão difíceis. Para se expressar, o indivíduo de hoje precisa ser o mais minucioso possível, pois qualquer deslize na comunicação pode levá-lo ao terreno minado da não interpretação, ou pior, da distorção da palavra. Texto, contexto, discurso, enunciação, são instâncias indissociáveis, mas suas categorias perderam seu sentido inaugural nestes tempos sombrios. Fatia significativa deste fenômeno se deve a difusão das redes sociais e o acesso praticamente irrestrito da população, em sua maioria iletrada no campo da leitura - o que resvala na compreensão de textos - na internet. Por essa inadequação linguística, recentemente o hit “Que tiro foi esse?”, da cantora Jojo Todynho, caiu em desgraça após ser considerado como apologia à violência reinante no Brasil, mesmo a funkeira esclarecendo o significado pretentido da música. Entretanto, é preciso aproveitar esse equívoco para uma finalidade mais nobre. De fato, o primeiro sentido dado a “Que tiro foi esse?” parece mais apropriado agora que o governo Temer permitiu que a intervenção militar entrasse mais uma vez em cena na história do país.

Após ser aprovada pela Câmara de Deputados, toda sorte de comentários, análises, debates, discussões, textos e mais textos, em suas múltiplas manifestações, foram, e serão, elaborados para atribuir juízo de valor à Intervenção Militar. Mais que justo, diante da forma como essa manobra inegavelmente política e inconstitucional tem sido feita. Em sua maioria, o que se versa é sobre a ilegitiminidade dada a operação, ao fracasso da segurança pública no Rio de Janeiro dentre sucessivos governos e os interesses escusos, mas óbvios, do presidente mais odioso da história brasileira. Então, quando “as palavras incomodam o suficiente”, como disse Martha Medeiros em uma de suas crônicas, elas despertam a inflexão inesperada daquilo que se almejava. Menos de um dia após ser facultado o direito ao Exército de ter plenos poderes na “seguridade” das favelas cariocas (que este espaço fique bem claro), o próprio Exército se manifestou nas redes, afirmando que Intervenção Federal não é o mesmo que Intervenção Militar. A explicação se tornou ainda mais ambígua do que a sua mera conceituação, sobretudo quando se leva em conta o histórico de truculência militar no Rio e em todo o país.

Voltemos brevemente ao hit da Jojo Todynho. Os problematizadores de plantão enxergaram na letra uma incitação da violência, destacando um trecho da música para chegar a tal conclusão. O Exército da Intervenção Militar incorre pelo mesmo erro. Não se podem analisar textos falados, escritos e imagéticos, desatrelado do contexto a que estes estão intimamente vinculados. As experiências das produções textuais, sejam elas quais foram, são oriundas de uma época, cumulativo de sentimentos e experimentações, visões de mundo empíricas e factuais, das quais não podem ser desconsideradas. Sem esse entendimento qualquer linguagem soará imprecisa, desconectada da realidade, de modo a perder sua total relevância e funcionalidade. Foi o que ocorreu com “Que tiro foi esse?” e é o que, sordidamente, o Exército Brasileiro está se propondo a fazer. Enquanto o tiro de Jojo Todynho foi de alegria, pluma e purpurina, o da Intervenção Militar será digno dos bombardeios do Oriente Médio. Ou seja, tentar substituir a abruta participação das Forças Armadas por outras palavras não surtirá o mesmo efeito enquanto o contexto de atuação for o mesmo.

Essa tentativa fraudulenta de eufemizar a linguagem para evitar maiores alardes talvez funcionasse em momentos mais remotos da história nacional, quando o acesso à informação era mais limitado. Porém, no boom da tecnologia, apesar da carência no quesito interpretação de texto, ainda há muitas pessoas capazes de discernir táticas arbitrárias, principalmente contra os mais desfavorecidos. E não é clichê redizer o quanto são os favelados, pobres, negros, jovens, o público alvo dessa operação. As estatísticas antes disso já comprovam porque tais vivem na mira dos criminalizadores do poder. Também não é irrelevante reiterar a ineficiência do poder público para gerir um projeto de Segurança Pública comprometido com o bem de todos, e não apenas os mais abastados. Uma segurança repaginada, desde a contratação, passando pela política de apreensão de suspeitos, aparato policial, condições dignas de trabalho, menor morosidade nos trâmites legais, resvalando diretamente na reconfiguração das cadeias. Tudo isso é sabido e possível de ser concretizado, mas o mais rentável é manter a política antidrogas, incentivar o porte de armas e criminalizar as minorias.

Há um artigo muito pertinente sobre essa abissal realidade brasileira da Jornalista e Escritora, Eliane Brum, chamado “Também Somos o Chumbo das Balas”. Brum mostra-se chocada com a falta de empatia com os moradores mortos no morro da Maré, no Rio, em detrimento dos da Avenida Paulista nos protestos de 13 de junho de 2013; enfatiza a brutalidade como os policiais incidem sobre a população, não distinguindo bandidos de possíveis criminosos; alerta para a utilização indistinta de balas de borracha nas avenidas brasileiras e de fuzis nas favelas; ainda sobre a polícia, o texto fala sobre como a militarização desses servidores só se insurgem contra os moradores daquelas áreas periféricas e o mais chocante disso tudo, a população brasileira, em especial à classe média, se mostra apática diante de tal massacre do povo pobre, preto e favelado. Pelo visto, a Intervenção Militar não será diferente. Os paladinos de Temer não hesitarão em ferir inocentes para que a “ordem” burguesa seja restabelecida, já que a proteção daqueles moradores está em enésima posição de importância. Será um remake, remasterizado em Full HD do aclamado por muitos, Tropa de Elite. Acontece que Temer, sua corja e a burguesia, assistirá ao massacre no conforto de suas casas. Já os residentes das favelas cariocas farão de suas moradias as trincheiras de mais uma guerra.

 É estranhamente curioso que essa Intervenção Militar se dê às portas das eleições presidenciais, quando um dos possíveis candidatos é abertamente a favor da militarização como forma regulamentadora da proteção da sociedade. O partidarismo da questão é o responsável por suplantar mais uma vez os direitos daqueles que desconhecem esta premissa. Outrossim, não se pode esperar bonanças dessas ações ao famigerado presidente Temer. Seria pretencioso de mais da parte dele almejar algum louro da população, ao expô-la à barbárie. Ele não seria tolo. O que está em jogo, além dos claros interesses políticos, é o esvaziamento da linguagem, através de uma resposta amadora à violência, para que a população se veja crente de que apenas a panaceia das Forças Armadas apaziguará o longo caminho da criminalidade, sustentado em boa medida pelo próprio governo, que agora se rebela contra sua obra. Aos mais apocalípticos, é preciso dar a devida atenção: talvez o regresso dos horrores da Ditadura Militar não seja uma obra da mera fantasia. Parece que o Brasil está trilhando o mesmo caminho, mas, como de praxe, nessa cultura da deseducação, da não leitura e da total irreflexão, até que o fatídico interesse dos malfeitores ganhe forma, eles tentarão de todas as maneiras embaralhar a linguagem até que não faça o menor sentido. Tudo para justificar as ações já claramente injustificáveis.

A serviço de algo maior, “Que tiro foi esse?” foi só a primeira de muitas distorções.

 
Seja qual for à fase da vida, ser deixado por alguém que amamos é doloroso. Toleramos com muita reserva quando essa ausência se dá por razões alheias a nossa vontade, como é o caso da morte. Mesmo nessas horas, é difícil consentir ao outro o pleno direito de seguir adiante. Em vida, porém, apartar-se daquele do qual nutrimos certo sentimento é bem mais complexo, sobretudo quando a relação é entre casal, constituída de um lar e com crianças envolvidas. Então, quando tudo parecia estar em plena normalidade, eis que uma das partes se manifesta dizendo que não dá mais para continuar, que tudo está acabado, que não é possível manter tal relacionamento, enquanto do outro lado o ouvinte, chocado e perplexo, questiona-se o porquê de repentina decisão unilateral. Casos assim são rotineiramente comuns nos relacionamentos a dois, abalando aquilo que se mostrava teoricamente consolidado.  Ficam, então, os questionamentos: por que agora? Por qual razão? Se não havia intenção de perdurar, porque chegou até onde chegou?
Dias de Abandono, de Elena Ferrante, não se propõe, a priori, a responder tais questões, mas em analisar a ruptura inesperada que há numa relação estável de 15 anos e as implicações que isso resvala para uma das partes, neste caso a protagonista Olga. Casada, com dois filhos e um cachorro, ela é surpreendida pelo marido Mário, quando este, numa tarde de abril, como bem pontua a autora, afirma que vai deixá-la sem razão aparente. Olga, atônita com a notícia, chega a duvidar do que foi dito pelo seu esposo, revirando o passado do casal em busca de outras ocasiões das quais ele pensou em desistir da relação, e voltou atrás. Entretanto, com o passar dos dias, a frieza com que ele passa a tratá-la faz com que as dúvidas de Olga rapidamente desapareçam. Diante dessa inesperada fase em sua relação, ela tenta, em vão, interpelar Mário sobre as razões de sua decisão, mas ele continua evasivo e distante, como se algo de cumulativo tivesse feito com que sua tomada de decisão fosse irrevogável.

Diante da certeza do abandono, seus dias passam a ser um misto de frustração, medo, dúvida e cólera. Ela, que até então era uma mulher extremamente educada, de fala e gestos taciturnos, se vê irreconhecivelmente ensandecida, sem controle sobre aquilo que diz e das ações que realiza. Esgueirando-se para o fundo do poço, utiliza de todas as artimanhas possíveis para reaver a relação perdida, mas, a cada tentativa, se vê ainda mais humilhada pela rejeição do marido. Fracassada, visivelmente perturbada e desorientada, as primeiras vítimas de seu desequilíbrio são os filhos. Por serem ainda crianças, absorvem fatalmente o clima de violência criado em casa por aquela separação imprevisível. Além delas, amigos do antigo casal, vizinhos e até o cachorro da casa, não escapam das inevitáveis retaliações de Olga, inconformada com o injustificável término do seu casamento, que para ela, àquela altura do campeonato, seria até o fim da vida.
Até então, não parece nada de novo. A temática vivida pela personagem foi repetidas vezes utilizada em diversos outros romances ao longo da história. O que diferencia Dias de Abandono são sua narrativa e a construção psicológica da protagonista. Para quem leu este livro, depois da primeira frase, é praticamente impossível fechá-lo. É como se estivéssemos abandonando a própria Olga pela segunda vez, potencializando seu sofrimento, renunciando a chance dela de se reequilibrar, ao mesmo tempo, torcendo para que ela dê uma reviravolta mirabolante em sua vida. Ficamos presos ao penoso mundo que ela passou a criar. Além disso, as constantes crises que ela vivencia nos fazem incorporar a sua dor, extraindo de nós uma identificação quase como um furto, que só percebemos quando nos damos conta que nos subtraíram algo de importante. Dias de Abandono apresenta, sem percebermos, a empatia que desconhecíamos daquela personagem, ao ponto de lamentar junto com ela, sofrer com ela, reconfortá-la e torcer para que ela supere todos os dissabores da separação.

Tamanha sintonia não se dá à toa. A escolha de uma protagonista, com filhos, deixada subitamente pelo marido, diz muito do momento feminino em várias partes do mundo. Antes, a naturalidade que tais abandonos ocorriam não deixava espaço para problematização. Porém, com as merecidas conquistas das mulheres em diversos âmbitos, passou-se a se questionar o papel delas dentro das relações conjugais, desde as relações abusivas, excessos de obrigações, renúncias, desejos e a falta de entendimento que ainda persiste para com as questões femininas, sobretudo quando há crianças, carreira e feminilidade envolvidas. O pseudônimo de Elena Ferrante não foi o bastante para maquiar sua clara intenção de fazer de sua obra uma ode aos dilemas das mulheres modernas, ferozmente discutido pelos inúmeros movimentos feministas. A mulher que é abandonada com filhos para criar, sem emprego, vivendo às custas do ex-marido, perdendo aos poucos a vaidade por estar imersa nas tarefas domésticas, que agora são exclusivamente dela.
Esta tomada de reflexão é evidente na obra de Ferrante, mas não tira sob hipótese alguma o peso de sua narrativa. O brilhantismo de Dias de Abandono consiste em tocar na ferida, remoê-la ao ponto de nos sentirmos machucados como a protagonista, ao passo que vemos a nossa parcela de culpa, enquanto sociedade, por permitir de alguma forma que casos desse tipo se naturalizem. Neste ínterim, o livro vê no abandono um problema, a partir do momento que não entendemos que as relações conjugais são frágeis e podem ruir a qualquer instante. Ao invés disso, porém, acreditamos piamente na versão eterna das relações, torcendo num final feliz que raramente ocorre. Estar com alguém é também estar disposto a ser deixado por esse alguém. Logo, é preciso ter discernimento antes de se aventurar num relacionamento a dois e não deixar escapar a hipótese de uma ruptura inesperada. É sempre bom lembrar que estar com alguém não significa nos anular.
 
Entretanto, quando nos boicotamos, perdemos o controle da relação e não distribuímos igualitariamente os encargos que surgem quando estamos juntos. No geral, ainda é a mulher é carregar os maiores fardos. Foi dessa carga que Elena Ferrante veio esvaziar desde o início: o machismo vigente em nossa sociedade é tão desmedido, que precisa ser constantemente desentranhado das profundas raízes em que foi semeado para que significativas mudanças ocorram de fato. Por isso, quando a literatura moderna se destina a elaborar verossimilhanças dessa natureza, o que se espera é uma mudança radical no pensamento do leitor, sobretudo aqueles avessos aos pensamentos mais humanísticos. Caso isso não aconteça, a simples leitura de Dias de Abandono suscitará um bom debate sobre os reais papeis que homens e mulheres assumem dentro de um relacionamento, e como cada um deles precisa encarar a responsabilidade de estar com o outro ou de deixá-lo partir, sem que se deixe um rastro interminável de incertezas.


Deve ser difícil, no mínimo, ser a Anitta.
Todos opinam sobre seu cabelo — dread é “apropriação cultural”, bleh! –, sobre seu discurso, sobre sua bunda. Talvez ela nem se incomode tanto, porque está ocupada produzindo clipes sensacionais.
 
O último, da música “Vai Malandra”, foi, por si, a resposta afiada que a cantora costuma direcionar aos haters: trancinhas no cabelo, com apropriação cultural e tudo, uma bunda brasileiríssima sem correção nas celulites e um Brasil muito brasileiro escancarado numa superprodução pro mundo inteiro.
Anitta, que prometia, com os rumos estéticos de sua carreira, uma abordagem artística cada vez menos brasileira, surpreendeu, de novo. Só a linguagem do clipe é meio gringa (e faz mal?): o resto é Brasil, nu e cru.
Lulu Santos, que aparentemente não entende nem de Brasil nem de música, criticou nas redes o clipe, a cantora e a bunda.
 
Pfff.
 
Aqui cabe um parêntese: nem a bossa nova, careta por tradição, comungaria da chatice da persona Lulu Santos, que compete com a chatice de suas músicas. Talvez fosse mais facilmente aceito no rock, que se tornou um velho careta e conservador, mas até pra isso lhe falta musicalidade.
 
Não, Lulu, não é só uma bunda: O funk de Anitta tem gerado discussões sociais contemporâneas e importantíssimas, e não é de hoje. Assim caminha a humanidade, graças a gente como você, a passo de formiga e sem vontade.
Aliás, não foram só a bunda e as tranças que incomodaram: a esquerda progressista (risos) não brinca em serviço quando o assunto é cagação de regra.
 
Reclamaram — e muito — do olhar masculino do produtor do clipe, acusado de assédio, como se isso tirasse o mérito empoderador do clipe e da música.
 
Spoiler: se o olhar fosse verdadeiramente masculino, as tais celulites teriam sido apagadas na edição.
 
Não foram, porque a última palavra é dela, e eu não sei vocês, mas eu tenho um orgasmo mental só de imaginar uma mulher impondo as próprias celulites diante de um produtor assediador metido a importante.
Vai, malandra. Os cães ladram e a caravana passa.
Visto no: DCM


A inquietação tem motivado a humanidade a atribuir valores a tudo aquilo que foge da sua compreensão. Em meio ao caos imposto pela dúvida, tudo o que era desconhecido precisou ser nomeado, pois conceituar esses eventos foi à maneira encontrada por nós para dar um crivo ao que nos cercava, fazendo o impensável ganhar algum sentido. As palavras passaram então a carregar a significância esperada por nós. Isso acontece a gerações, a principio com os fenômenos naturais, a chuva, os ventos, os raios, etc. Depois outros ícones foram sendo criados sob o mesmo julgo do passado, ora erguendo grandes impérios, ora os destruindo, ora exaltando a glória de heróis míticos, ora divinizando-os. A forma meticulosa de como isso se deu recebe o nome de mito, o qual não é capaz de ser esclarecido pelos olhos da razão, pois ele faz parte do campo sagrado criado por nós homens para dar sentido ao que escapa de nossos domínios. Por essa razão, o mito é tão antigo, porque remonta ao âmago das criaturas, antes primitivas, que agora civilizadas, dão outros sentidos aos mitos.
Em Deuses Americanos, Neil Gaiman cria uma interessante obra de fantasia para nos explicar que muitos dos mitos de ontem permanecem entre nós, esgueirando-se em busca de espaço, após serem postos de lado pelos “deuses modernos”. Mesmo não morrendo definitivamente, eles ganham outras acepções de acordo com as necessidades daqueles que os cultuam. Por se passar nos EUA, a obra enfoca o descaso que houve com todos os povos vindos à América, suas culturas, tradições e, claro, seus mitos, muitos dos quais praticamente destruídos, outros renegados e boa parte incorporados pelo novo mundo. Estes últimos sobreviveram como todos os outros seres míticos sobrevivem: porque atendem as exigências de um povo que necessita de algo maior para acreditar. O mito também é a prova de que há algo de vital em nós que não duraria sem o apelo aos mitos. São eles que nos mantém vivos, dando relevância a nossa estada no mundo.
 
Em contrapartida, mesmo subsistindo no mundo moderno, os deuses e deusas antigos agora se veem obsoletos, porque a humanidade idolatra outras figuras mitológicas, vistas pelos anteriores como de menor sacralidade. O embate entre esses deuses parece ser inevitável. Novas e velhas deidades fazem da terra o campo de batalha para disputar a hegemonia da devoção dos humanos. O astuto Wednesday é o personagem criado por Gaiman para aguçar essa possível batalha. Sendo um deus antigo, ele teme que os novos o substituam por completo. Então, ele escolhe Shadow, um mortal recém-saído do presídio, a ser o parceiro dele numa espécie de convenção de deuses do passado. Para o leitor, Shadow não parecia ser a melhor escolha. Incrédulo, distante e perdido, em muitos momentos da narrativa, ele dúvida dos acontecimentos inexplicáveis a sua volta, não sendo capaz de traçar uma justificativa racional para àquelas ações mágicas. Mas, foi esta a intenção de Gaiman, escolher um indivíduo cujo perfil moderno se diferencia pelo desapego ao sagrado, algo ampliado a muitos outros seres humanos na atualidade.
 
Com um olhar crítico, Deuses Americanos questiona a mudança de paradigma vivenciada pelos mitos com o passar doa anos. Os seres imaculados do passado, que regiam a vida na terra a partir da sua própria vontade, agora não são mais invocados nas preces humanas, nem recebem oferendas através dos agradecimentos pelas bonanças vindas do céu. Não são mais cultuados nas datas costumeiras, tão pouco suas histórias são recontadas as novas gerações, que cada vez mais os desconhecem. As celebrações, festivais, banquetes e sacrifícios praticamente foram instintos, dando lugar a singelas manifestações de respeito pela existência de entidades que governavam os episódios de outrora. Em seu lugar, outros deuses tangíveis passaram a ser venerados: o deus da mídia, da internet, da tecnologia, da música, dos automóveis, e tantos outros divinizados pelas novas práticas iconoclásticas da vida moderna.
 
Vendo a quase completa deterioração dos deuses antigos, mesmo sabendo de sua importância, surge um sentimento de pesar ao perceber a descartabilidade a qual criamos e nos desfazemos dos símbolos. Esse ímpeto partidário aflora depois de ler Deuses Americanos e compreender como o nosso egoísmo se apropria do sagrado que criámos, mas não titubeia em recusá-lo quando outra divindade é elaborada ou reconstruída para nos servir. Somos tão patéticos, nesse sentido, que sem os mitos dificilmente a soberania humana seria uma realidade. Foram os diversos deuses e deusas que construímos que nos permitiram chegar até onde chegamos, impondo-nos limites às nossas ousadias, determinando para onde íamos depois da morte ou explicando o porquê de nossas privações em vida. Cada passo, cada tomada de decisão, cada desafio, tudo só foi possível graças aos mitos que originamos das nossas necessidades para transcender as nossas incontáveis limitações.
 
Por ser produto da criatividade humana, o mito recebeu centenas de outros significados, muitos deles, porém, tentaram minimizar a essência do mito: chamado de religião, crença, fábula, lenda, alegoria, símbolo ou metáfora, todas essas palavras cabem dentro do bojo mitológico idealizado antes mesmo do homem dar seus primeiros passos no universo. Mesmo que tentem esvaziar a palavra mito do seu sentido original, ela continuará soerguendo-se frente à insuficiência de outro conceito capaz de satisfazer as carências humanas. Gaiman conscientemente faz isso ao propor a insurgência dos deuses antigos contra os novos. Talvez, num primeiro olhar, pareça que a intenção do autor é aniquilar uma das partes. Quando na verdade é apenas o oposto disso. Ao soerguer deuses atemporais dos mais frívolos da atualidade, a obra evidencia também a maleabilidade do mito, que pode assumir inúmeras facetas da vida, sem necessariamente ser chamado como tal. Então, sem plena noção disso, continuamos a ser guiados por mitos e fingimos que estes tem outro nome, uma mentira confortável nutrida por séculos.
 
Seja como for, os mitos não morrem. Estão vivíssimos entre nós, determinando nossas ações cotidianas mais ou menos como se fazia nas primevas civilizações. O que talvez tenha morrido foi seu caráter sacro, bem como todas as atitudes destinadas ao divino. Entretanto, isto não descaracteriza o poder de influência exercido pela mitologia em nossas vidas. Continuamos buscando ícones para expandir os nossos limites, ao passo que elaboramos cada vez mais totens para preencher esse nosso constante vazio existencial. Tem funcionado, pelo menos a curto prazo. Pelo visto, pouco mudou das práticas mitológicas antigas das atuais, a não ser a rápida variedade de deuses que vem e vai, o que se justifica pela celeridade da vida moderna. Fora isso, Deuses Americanos, além da crítica mordaz a formação dos EUA, cutuca todo esse novo mundo que foi unificado pelos mitos contemporâneos, através da massificação do poder financeiro. Lendo esta obra de Neil Gaiman, faz ainda mais sentido a célebre frase de Fernando Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”.

Muito se estudou e se conhece do período colonial no Brasil. A produção histórica de conhecimento é muito vasta e existe um arsenal enorme de informações sobre todo o período da colonização brasileira desde os livros didáticos, passando pelo desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas e chegando até os debates bancados pelos movimentos sociais e populares. Mas até onde filtramos essas informações ou, sem sermos contraditórios, nos colocamos na tarefa de aprofundar os impactos que mais de 60% de recorte histórico brasileiro deixou de cicatrizes em nossa estrutura? Como pensar a plataforma estruturada com a colonização e o regime de escravidão e massacre sob povos tradicionais e negros como base para formação de um país extremamente desigual? Estamos 130 anos após a Abolição da escravidão no Brasil e essas perguntas precisam ser base de debates políticos importantes se almejarmos pensar o país de hoje e onde chegamos. Um grande desafio, mas necessário. Os desfiles carnavalescos deste ano colocaram na ordem do dia o contexto. A Paraíso do Tuiuti deu um show e gritou: Não sou escravo de nenhum senhor!
A COLONIZAÇÃO, A ESCRAVIDÃO E A ABOLIÇÃO!
A expansão marítima moderna, como parte de uma articulação sistêmica e muito bem esboçada, foi o início de uma encruzilhada com novos povos, novas culturas e novos tipos de exploração. O interesse por áreas comerciais e a necessidade de fincar-se que o capitalismo tinha o fez recorrer ao método colonizador de dominação, que pode ser analisada sob diversos vieses: territorial, cultural, político e sobretudo econômico. Vieses estes que não são fragmentários, mas se relacionam de forma compactuada. O processo de expansão do capital tem, desde muito tempo, ditado a realidade do povo negro. A concretização do sistema mercantil do capitalismo, ainda na sua fase de estruturação, já mostrava que as benesses do capital sempre iriam se contrapor à população mais vulnerável. Em todos esses aspectos, a capacidade de transformação humana da natureza se fazia necessária, como parte elementar do próprio sistema capitalista. Em um período onde as grandes confusões com os novos métodos da classe em ascensão eram difundidas popularmente, cabia aos exploradores europeus voltarem todas as facetas criativas para justificar o plano de dominação. Com isso, as ciências e a religião, com grande influência civilizatória, passaram a ser justificativas menores para a dizimação de civilizações nativas e para escravização delas para subserviência de mão-de-obra. O processo de submissão de qualquer tipo de conhecimento que não seja o atrelado ao europeu- branco foi base para a consolidação do sistema escravagista brasileiro, a construção da estrutura do racismo se deu, milimetricamente, de forma institucional, e com o respaldo da ciência e da religião. O programa racista que interpela todos os vieses citados estava em vigor de forma muito mais profunda do que versículos bíblicos que justificam e tratados científicos que encorajam. A branquitude europeia incorporava o plano já nascido mesmo antes do próprio capitalismo e colocava suas cartas com muita violência e capacidade destrutiva. 1500 não é fruto de um acidente histórico, é uma trama engendrada globalmente com extrema capacidade dizimativa! Como disse MC Carol na música “Não foi Cabral”: “Ninguém trouxa família/Muito menos filho/Porque já sabia/Que ia matar vários índios/Treze caravelas/Trouxe muita morte.”
O conceito de “descoberta” utilizado em livros didáticos é eurocêntrico, porque além de forjado por aqueles que escreveram os livros serve a difusão de uma narrativa que esconde o programa, e só o esconde porque ele ainda está em vigor, não teve fim e alcança seus objetivos de forma a satisfazer os do andar de cima. A escolha por arrancar os povos africanos de seus territórios para utilizarem de mão de obra bebe no fato de exterminarem com nativos para facilitar a exploração e tomada de novos mundos e também porque o racismo foi forjado como arma ideológica de dominação global para servir a isso em ampliação do racismo como justificação de privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas, como Clóvis Moura descreve bem. Com isso, a colonização como programa das novas classes dominantes e o racismo remodelado desenvolve uma combinação histórica que impossibilita a compreensão marxista de luta de classes separada da luta racial, afinal a classe explorada do Brasil tem na base piramidal os povos arrancados das Áfricas e esmagados na “nova terra”.
Na base econômica do Brasil colônia, a produção teve um destaque rotatório que influenciou no desenvolvimento urbano e civilizatório. O primeiro estado criado, a Bahia, tinha no açúcar a sua matéria base no modelo plantation. Recorria obviamente à mão-de-obra escrava. Salvador, capital baiana, é a cidade mais negra fora d’África. Na Amazônia, a ocupação desenfreada ditada nos moldes do desenvolvimento, das missões jesuíticas ao advento do ciclo da borracha demonstrou o caráter desenfreado de exploração de mão de obra escrava, seja indígena ou negra africana. Durante a exploração do ouro nas Minas Gerais, a “corrida do ouro” fez com que a disputa pela exploração e trabalho do ouro se desse por outros grupos não-negros e não-nativos, os tropeiros imigrantes é um exemplo. O modelo colonial já começava a sofrer tremores maiores com as lutas travadas internas e a auto-organização do povo escravizado, além de idealistas brancos com outros interesses que raras as vezes se encontravam. O surgimento de vários Quilombos e a fortificação de muitos outros, figuras símbolos de resistência como Dandara e Zumbi dos Palmares já eram conhecidas e reivindicadas como exemplos da luta negra organizada no país e muitas revoltas como A Revolta da Cabanagem, protagonizada por negros e indígenas insatisfeitos com o governo regencial e com a intensa exploração na província do Grão-Pará, e a Revolta dos Malês em 1835 em Salvador foram marcas de um bruto período de resistência diária de um povo vítima da pior exploração possível. Todos esses antecedentes preparam a nossa libertação, mas não foram suficientes para impedir que a Lei Áurea de 13 de Maio de 1888 tenha sido o “fim da escravidão”, mas a continuidade de nós na parte de baixo da pirâmide, como aqueles que não tinham direitos ou que precisávamos vender os poucos conquistados para comer e viver.

 
O PÓS-ABOLIÇÃO: SAÍMOS DAQUI E FOMOS PARA ONDE?

Durante a abolição da escravidão no Brasil, a capital já era o Rio de Janeiro, a mesma cidade que hoje passa por uma situação radical de violência com raiz no racismo proibicionista das drogas e no modelo urbano segregacionista. A Lei Áurea não incluiu o negro no desenvolvimento acelerado e não o orientou a integrar-se no trabalho assalariado, não por simples erro construtivo da Lei, mas por abertura dominante a permitir que o racismo continuasse como justificativa de exploração. Em “A integração do negro na sociedade de classes” Florestan Fernandes afirmou:

“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (…) Essas facetas da situação (…) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”.
Este é um dos aspectos mais importantes, mas não devemos desconsiderar a periferização da população negra urbana em contrapartida à aceleração industrial e arquitetônica, à criminalização cultural, à negação de serviços e a direitos básicos, à perseguição violenta com recursos do Estado, à continuidade da difusão ideológica de dominação a partir também das teorias de branqueamento, etc. No Pós-Abolição fomos para uma situação de abolicionados e serviência a uma propaganda da abolição que não era destinada a nós, afinal estávamos muito ocupadas e ocupados tentando sobreviver.
130 ANOS DEPOIS…
No final do ano passado, foi divulgado um levantamento feito pelo Ministério da Justiça do Brasil que apresentava uma informação sobre o sistema carcerário brasileiro: somos a terceira maior população carcerária do mundo. Multiplicamos oito vezes em 26 anos e temos o dobro de presos em relação a vagas reais nas penitenciárias. Um mês antes, levantamento feito pelo Fórum de Segurança Pública trazia o dado de que 71% das vítimas de homicídios no Brasil são negros. Em dezembro, o Anuário do Fórum de Segurança Pública também trazia que o número de negros mortos por policiais é o dobro de brancos, e mesmo do lado da polícia, os que mais morrem são negros (223, contra 171 brancos e 179 não identificados). O encarceramento de mulheres brancas caiu, o de mulheres negras cresceu. A taxa de escolarização das mulheres brancas é de mais de 20%, a de mulheres negras é menor que 10%. Por que todas essas estatísticas apontam contra nós? O argumento de proporcionalidade numérica não dá conta, porque nas estatísticas positivas não somos nós que estamos no topo! Por que não são pessoas negras que ocupam o posto das pessoas mais ricas do país, mas são homens brancos.
Em momentos de intensificação de crises econômicas do capital, os do andar de cima, que não abrem mão de suas parcelas de lucro, acirram a retirada de direitos e a exploração dos de baixo. A base piramidal da sociedade se enlarga para sustentar a fatia gorda dos de cima. Encaramos medidas como a Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização e Reforma da Previdência. Nós que já somos maioria no mercado informal, somos jogados ainda mais para os piores postos de trabalho. Cresce o número de moradores de rua, de adoecimentos da mente, de vendedoras de doces e lanches e até de universitários desempregados, a maioria de regra tem uma cor. O Nordeste é a região com maior número de desempregados e o Norte vem logo após. A Bahia em agosto de 2017 foi o estado com estatísticas mais cruéis, apontou o IBGE. No Pará, estado com a maior população autodeclarada negra do Brasil, Belém padece como a capital com maior proporção de pessoas vivendo em periferias no país, e uma das mais perigosas do mundo, reflexo óbvio do quanto a pobreza nesse país tem cor. A realidade é mais dura para quem é negro no Brasil, ainda ocupamos os lugares mais ínfimos da sociedade, os espaços políticos ainda são de maioria branca, as Universidades – mesmo com a política de cotas – são espaços de hegemonia branca, e a permanência do estudante negro e pobre na academia não é amparada pelas tímidas políticas afirmativas. A mentalidade escravagista domina a sociedade brasileira, após a abolição da escravidão os negros brasileiros ainda continuam tendo uma vida muito difícil, sem acesso aos equipamentos da cidade, morando nas periferias, que cada vez mais longes do centro, se tornam reduto da ausência do Estado. Em 2018, completamos 130 anos da abolição da escravidão no Brasil, mas o racismo ainda é a base programática do capitalismo. Para superá-lo é preciso, portanto, estratégias que revelem e derrubem o racismo junto com os muros econômicos e políticos da ordem.
POR UMA REVOLUÇÃO RACIAL
O Brasil neocolonial revestiu as facetas da colonial. Precisamos derrubar o radical desses dois e fazer do sufixo o nosso motim geracional! Precisamos recuperar a teoria de Florestan Fernandes, como foi bem desenvolvida em análise essa proposição pelo professor Maycon Bezerra em “O marxismo descolonial de Florestan Fernandes e a esquerda socialista do século XXI”, na organização da rebeldia constante e persistente da negritude sob os regimes sem servirmos de sustentação burocrática e passiva para a burguesia nacional e internacional. Sobre Florestan, Bezerra coloca:
“[…] Teoricamente, nunca aceitou o marxismo deformado pela ótica positivista da burocracia stalinista, nunca dissociou materialismo de dialética em sua compreensão do marxismo. Politicamente, nunca teve acordo com a estratégia de colocar os trabalhadores passivamente a reboque do desenvolvimentismo da “burguesia nacional”. Ainda quando julgou que a modernização burguesa da sociedade brasileira tivesse o potencial de levar o processo histórico além dos interesses restritos dos capitalistas […]”
Florestan Fernandes e muitos outros pensadores e pensadoras como Angela Davis são parte de um arsenal teórico que precisamos recorrer para pensar estratégias de organização da negritude no Brasil e no mundo. O Black Live Matter nos EUA segue sendo um grande exemplo no enfrentamento ao racismo no centro do imperialismo, onde a crise também é responsável pelo aumento da desigualdade. O número de moradores de rua nos EUA cresceu enormemente, em Los Angeles aumentou em 23% chegando a quase 60 mil. O país da maior população carcerária do mundo é também o país articulador de um programa racista mundial. Se como disse Angela Davis, não basta não sermos racistas, é preciso sermos antirracistas. Colocar essa máxima em prática é desenvolver a partir de elementos desiguais e combinados possibilidades de expor as feridas, de nos mantermos vivos e de construir a longo prazo uma saída. Partem de nossas tarefas: outra política de drogas, o fim dos antecedentes criminais que impossibilitam novos empregos, a luta contra as medidas de extinção de direitos trabalhistas e a organização de trabalhadores do mercado informal, da manutenção de cotas nas universidades e por uma real permanência estudantil, batendo de frente com os poderosos engravatados que assim como o reitor da USP afirmam que a universidade não é para a gente. Partem dessas tarefas sem perder o horizonte estratégico da fundação do new society, sem nunca perder a intrínseca relação classe, raça e gênero também como método de superação da velha esquerda que separa e acusa. É preciso muita coragem e ousadia e que as multidões sejam contaminadas pelo sangue de nossos ancestrais e pelo sonho de mudar a nossa realidade, algo que o sambódromo do Rio de Janeiro e o mundo acompanhou no desfile da Paraíso do Tuiuti no Carnaval deste ano e que precisamos colocar como tarefa nossa.

*Por Iago Gomes do Juntos! BA e Matheus Lisboa do Juntos! PA
 
Visto no: Juntos

Quem já, em algum momento da vida, teve a oportunidade de servir de ouvinte para relatos alheios sabe o quão difícil é digeri-los, ainda mais quando o que se ouve refere-se a questões tidas delicadas como sexo, sexualidade, religião, política, tudo isso junto ou outros temas tão espinhosos quanto. Ficamos durante dias revivendo as memórias do outrem incrédulos com histórias de sofrimento, humilhação, geralmente de total silêncio e resignação e, raras as vezes, de superação. Em nosso mundinho, achamos improvável que um ser humano igual a nós passe por tamanhas privações, seja vivendo dentro de nossa própria casa, na outra esquina, num estado distante ou em outro continente. Essa inconcebível ideia de que há histórias inconversáveis, trancafiadas durante anos de martírio, talvez seja uma estratégia criada sorrateiramente pela sociedade atual, para que determinadas dores não sejam revisitadas.
 
Entretanto, As Boas Mulheres da China descortinam esse véu e não apenas revisitam os relatos de diversas mulheres de uma China da Revolução Cultural, mas também de pré e pós aquele acontecimento histórico. Ao ler as histórias de provação daquelas mulheres, de infâncias destroçadas por ideologias políticas controversas, relacionamentos abusivos, emudecimento, estupros e todos os dissabores das violências físicas e simbólicas, a primeira impressão é que tais relatos foram colhidos de chinesas de séculos mais longevos, e não dos anos 1960 e 1970 do último milênio. Surpreende-nos também a forma como tais eventos chegaram até a autora, que corajosamente destinou uma parte de sua carreira para catalogar tais narrativas, expondo-as a princípio no rádio em seu programa Palavras na Brisa Noturna. Anonimamente, e aos poucos, centenas de mulheres foram sendo encorajadas por Xinran a contar seus dilemas na rádio, como uma espécie de porta voz daquelas que por anos foram silenciadas por uma cultura machista.
 
Antes de ser um livro de entrevistas, é um confessionário do qual inúmeras mulheres se compelem em relatar através de cartas as suas histórias que são contadas no programa de rádio de Xinran. Das milhares recebidas, apenas algumas são destinadas ao livro, no geral a autora selecionou as crônicas de horror que mais a surpreenderam. Para quem leu a obra, sabe o quão penoso é seguir adiante. Temos a sensação de que não haverá um relato pior do que o anterior, porém, tristemente somos surpreendidos por outro reconto de penúria ainda mais apavorante. Por isso, não será feito aqui uma síntese do que foi lido, por duas razões: é preciso que as verossimilhanças daquelas histórias sejas vividas com o respeito e profundidade que elas merecem; além disso, nada do que for antecipadamente exposto nessas palavras dará conta do calvário sofrido por aquelas mulheres de uma China agora tão distante de nós.
 
O pioneirismo desta obra reside justamente em dar outra chance às mulheres daquelas histórias de reencontrarem em suas dores a humanidade usurpada por anos de humilhação. Evidentemente que não é fácil reviver certos traumas. Nisso Xinram foi muito habilidosa, pois não fez de As Boas Mulheres da China uma obra piegas, fincada apenas no sentimentalismo. Por mais que exista uma forte carga emocional, esta não é a protagonista das histórias. Todas as dores relatadas nos tocam não porque estejam a serviço do emocional, mas por retratar verdades inegáveis sobre o olhar daquelas cidadãs que tiveram suas existências físicas e mentais irrevogavelmente devassadas. O protagonismo está nisso, em nos mostrar a monstruosidade das ações humanas, seja por motivações econômicas, políticas ou culturais, que resultam no aniquilamento dos mais fracos e na total supressão da dignidade destes. É a prova de que as lutas das minorias tem uma razão de existir, em todos os cantos do globo.

Num paralelo talvez distante, recordei-me da história das Noivas de Cordeiro, uma comunidade em Minas Gerais composta majoritariamente por mulheres que ficou desconhecida do grande público até 2008, quando o canal GNT fez um documentário bem interessante sobre os dilemas dessas mulheres narrado por Lya Luft. Guardadas as devidas proporções entre ambas, fiquei pensando quantas outras misérias compõem as realidade de mulheres no Brasil e no mundo, as quais ainda desconhecemos, seja porque não foram devidamente registradas pela história, ou se perderam nela, seja pela falta de empatia dos detentores do conhecimento- restrito em sua maioria aos homens, ou a carência de pessoas com a vontade e valentia de Xinran, de ir atrás dessas histórias não contadas, trazendo-nos uma reflexão pontiaguda das vidas secretas de mulheres que podem estar, e estão, passando por algum flagelo semelhante ou pior aos das mulheres da China ainda nos dias de hoje. Fico retesado só de imaginar.

As Boas Mulheres da China também reforça a importância de se ouvir as pessoas, adentrar suas cercanias e enveredar suas reentrâncias, por mais doloroso que possa ser para aquele que se desnuda e aquele que ouve. Há um pouco de redenção nisso tudo, mas não o bastante para sarar todas as feridas, até porque muitas delas, como sabemos, são incicatrizáveis. Este é um outro aspecto desta obra, nos dizer que determinados traumas são irremediáveis, mas nem por isso merecem ser abandonados por completo. Ao vasculhar o passado mais obscuro das pessoas vítimas de opressão de inúmeros gêneros, damos a elas o que parece mínimo, porém é mais que o suficiente diante de anos de exclusão e descaso: a chance de contarem a sua versão da história a partir da sua própria óptica, sem as interferências daqueles ditos dominantes. Poder ler em alto e bom som as histórias dessas pessoas sem voz, sem nome, sem família, futuro e tantas outras perspectivas caras aos seres humanos, é um doloroso privilégio. É, sem dúvida, o fio de esperança que faltava para que a vida delas passasse a fazer um pouco de sentido. A nossa também.  

Publicado no Facebook de Elika Takimoto
Estou procurando entender que tanto empoderamento feminino estão encontrando por aparecer na tela uma puta raba sem Photoshop.
Exibir o corpo das mulheres é uma afirmação da sexualidade ou apenas uma outra forma de exploração? Eu, sinceramente, estou com muitas dúvidas.
Vejo Anitta “lacrando” e fico me perguntando em que medida o último clipe derruba padrões de beleza. Em que medida um clipe que exibe corpos femininos e começa com uma bunda, ainda que com celulite, mas uma puta raba daquelas tomando conta de toda a tela, ajuda na causa feminista? Em outras palavras: o que o cu tem a ver com a causa?
Não sejamos ingênuos. Anitta trabalha em um sistema que requer que as mulheres tenham uma determinada aparência porque se não forem lindas do jeito que são e rebolarem como fazem não serão expostas na televisão.
Entendo perfeitamente que tudo aquilo possa ser uma reivindicação da sexualidade. O que não percebo é uma ferramenta de mudança real na estrutura do patriarcado que muitas pessoas estão vendo com esse clipe. Mudança veria se me dissessem que o Brasil passou a ler mais e que havia parado de babar vendo bunda que ocupa a tela toda.
Olhando por um lado, vejo uma heroína, uma mulher forte, lucrando de forma inteligente com o que tem. Olhando por outro, percebo mais uma marionete. Constato que muitas manas são estrategistas bem perspicazes que sabem usar essa sexualidade e obter muito lucro. Palmas para elas.
Não percebo, porém, um clipe desse ajudar na desconstrução de um mundo machista de entretenimento que coloca a sexualidade feminina em uma caixa de forma que ela seja a mais chamativa possível.
Vi apenas mais um clipe não diferente de outros pornoficados exacerbando a cultura da hipersexualização da mulher. Cadê a ideia de que ser sexy pode ser algo diferente disso que estou assistindo? Cadê o ensinamento maior para as manas que o modo como elas percebem seus corpos é mais importante que a forma como os homens as vêem? Anitta seria rainha da porra toda se tivesse outro corpo?
“Ah mais antigamente mostrava a bunda para agradar macho, hoje não. Hoje temos Anitta com celulite.” Ah, gente.
Vi bunda de chacrete, bunda da Gretchen, bunda da Xuxa, bunda de Carla Perez, bunda bunda bunda. Curti a música, me distraí com o clipe Vai, malandra. Daí a afirmar que as mulheres estão lacrando, o Brasil evoluindo, mentes se abrindo e o machismo sendo desconstruido por causa da bunda da Anitta com celulite na tela toda vai um abismo.
Nada contra Anitta como não tive nada contra Carla Perez. São duas lindas e excelentes dançarinas. Estou me posicionando contra pessoas que estão vendo traços de evolução em uma humanidade cujo foco ainda é a bunda.
Foi divertido e só. O Brasil continua um cu.
Visto no: DCM

Quantos de nós temos uma segunda chance de viver um grande amor? Ou melhor, quantos de nós nos damos essa oportunidade, sobretudo quando a velhice nos bate à porta? Provavelmente poucos se aventurariam numa relação a dois depois dos 60, 70 ou 80 anos. Numa sociedade que romantiza os relacionamentos juvenis, impera-se uma validade para o amor, que é bastante cruel com as pessoas mais velhas, impedindo-as de se aventurarem em novas experiências. Essa devastadora prática é antiga e responsável por muitos dos males acrescentados às pessoas idosas. Um desrespeito a sua saúde física, mental e emocional, além de uma afronta a quem teve o privilégio de chegar até uma certa idade, privando-as do direito de experienciar novas sensações ou revivê-las de acordo com o seu contexto de vida. É o momento de repensarmos isso e olharmos com menos preconceito e mais empatia para essa classe que engrossa as estatísticas de longevidade em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Nossas Noites nos faz esse convite à reflexão do amor na terceira idade. Lança o olhar para esse público tão estigmatizado pela sociedade, que finge ignorar a todo custo essa fase da vida, ou retardá-la através dos métodos oferecidos pela famigerada indústria da beleza. Com uma narrativa simples, a obra conta a história de dois vizinhos, septuagenários, ela viúva e ele idem, que resolvem passar as noites dormindo juntos para espantar a solidão, depois de estarem acostumados há anos de cia nos seus respectivos casamentos. A iniciativa é inusitada, mas aos poucos agradam os personagens, que se divertem com os encontros às escondidas e as conversas antes da chegada do sono. De forma leve, a obra narra como cada um deles perdeu seus cônjuges, sua rotina antes desses encontros e as poucas histórias interessantes vividas por eles, que se conheciam de vista por morarem na mesma rua, mas contadas por ambos sob ópticas diferentes.

O livro tem um traço marcante que merece ser mencionado: a narrativa não dá lugar a um clímax, aquele ponto alto que é comum em muitos romances e que deixa a obra mais eletrizante, prendendo o leitor. Evidentemente que este recurso é útil quando bem utilizado, mas, muitas vezes, mais que empobrece a obra do que a enriquece. Em Nossas Noites, porém, não há esse mecanismo. O romance do início ao fim não tem praticamente um momento marcante. Tudo se desenrola no ritmo lento daqueles personagens. Parece que essa foi justamente e intenção de Haruf: dar a narrativa uma pegada condizente com a história da qual estava sendo contada, sem maculá-la com efeitos exagerados capazes de descaracterizá-la. Funcionou, e nem por isso perdeu o seu encanto. Nossas Noites é de uma elegância ímpar. Um romance delicado, profundo e único entre dois indivíduos que partilharam uma longeva história de vida e se dão a oportunidade de reviver um amor sem reservas, mesmo que precisem enfrentar a sociedade por isso.

É o que acontece. Ao longo da história, a relação entre eles intriga primeiro os vizinhos, amigos em comum e depois os familiares, que sob o manto do preconceito, investem fortemente contra aquele romance. Daí em diante todos os dissabores vividos pelos “amores proibidos” são vivenciados por eles, com o acréscimo maior a sua condição idosa mais do que pelo sentimento existente entre eles. Vários subterfúgios são criados para que o relacionamento não vingue, chegando a abalá-los profundamente. Entretanto, quando duas pessoas se permitem dar mais uma chance, poucas interferências são capazes de impedi-las de realizar seus objetivos. Pode até haver momentos de fraquezas, breves indecisões, mas tais titubeadas são efêmeras e sucumbem em meio a algo maior que sempre está em jogo: a nossa felicidade. Este sentimento supremo é levado ao extremo por aquele casal de idoso, que já desconheciam há tempos o que era estar novamente apaixonado, até que tal sentimento lhes presenteou.

Nossas Noites lança ainda um olhar para outras questões vistas de soslaio pela sociedade como o sexo, a sexualidade, o prazer, novos arranjos conjugais, a opinião pública, a pressão da sociedade, o preconceito etário, os desafios da velhice, o abandono da pessoa idosa, a inevitabilidade da morte, todos subtemas complexos irrefletidos ou ignorados pela sociedade “Forever Young” da qual somos submetidos desde sempre. O interessante é que esses assuntos não são problematizados claramente na obra. Haruf preferiu a sutileza da sugestão em vez de focar numa crítica mais ferrenha aos dilemas vividos pelos mais velhos. O enfoque é na nova oportunidade dada aos personagens, mas todos os outros desafios oriundos desta escolha estão claramente visíveis para o leitor mais atento, ora de forma mais categórica, ora diluída por todo o romance.

Em boa medida, Nossas Noites é um romance ousado, por retratar a coragem de duas pessoas viúvas, vistas pela sociedade como no fim da vida, mas que encontram um no outro o que faltava para dar uma guinada em sua história, mesmo que ela tenha fim amanhã ou depois. Também desconstrói a ideia falaciosa de que não podemos mais amar na velhice, que é feio ou nojento, adjetivos criados para limitar os prazeres conjugais a determinadas faixas etárias. De forma subliminar, fica exposto no livro que não é preciso viver grandes aventuras para se amar, nem correr grandes riscos para estar perto de quem gostamos. Às vezes, é mais perigoso não se permitir, deixando que a solidão ganhe espaço na nossa existência, encurtando ainda mais a nossa qualidade de vida. Nisso, o livro busca nos deixar claramente uma reflexão sobre como os nossos preconceitos nos impedem de provar novas formas de felicidade por medo do que a sociedade pensará do rumo do qual estamos dando a nossa vida.

Haruf, que está em outro plano, diz através dessa obra que é preciso ignorar as expectativas sociais em detrimento da nossa felicidade. Nos deixa um alerta claro de que a sociedade está mudando no tocante à velhice e esta deve ser vivida em plenitude. É uma reflexão necessária para quem acredita que não é possível gostar, se apaixonar ou amar alguém, porque o fulgor da juventude os abandonou. Nesta sociedade mercantil, saber que o amor é interminavelmente durável é um maná dos céus. Eu, que estou na casa dos trinta, me senti esperançoso ao ler Nossas Noites. É um livro que guardarei na memória por muito tempo. E, caso tenha a sorte de chegar à velhice, espero ter a chance de continuar amando e sendo amado, e não me fecharei para novas experiências amorosas, apenas temendo o que a sociedade vai ou não pensar sobre mim. É disso que se trata a felicidade, burlar o que está estabelecido por um bem maior. Então, que mais pessoas leiam este livro e transgridam a rancorosa e limitada definição existente de amar.

O beijo do desenho “Star vs. as Forças do Mal”


Será que ninguém percebeu a cortina de fumaça que é o tal boicote proposto por Silas Malafaia à Disney? A melhor maneira de distrair a opinião pública de um fato é protagonizando outro.
Sinto-me tão ofendido com o beijo gay num desenho da Disney quanto com as travessuras do Pica-Pau ou com as maldades de Tom & Jerry. O que Silas Malafaia e seu séquito precisam entender é que a arte retrata a realidade. Há beijos entre pessoas do mesmo sexo nas ruas, nos shoppings, nos comerciais etc.
Se quisermos que nossos filhos sejam seres humanos menos preconceituosos e mais tolerantes, devemos, desde já, mostrar-lhes o mundo como ele é, com toda a sua diversidade. O que não podemos é colocá-los dentro de uma bolha, num mundo de faz-de-conta, pois quando crescerem não estarão preparados para as demandas da vida real.
Eu ficaria muito desapontado se soubesse que um filho meu participou de um bullying com um colega gay da escola. Mas me sentiria orgulhoso se soubesse que ele saiu em sua defesa. Na minha época de garoto, não havia este tipo de cena em desenhos. Em compensação, sempre houve muita violência. Entretanto, havia entre os garotos da escola a prática conhecida como “meinha”, na qual trocavam favores sexuais, mesmo sendo héteros.
Apesar de estudar numa escola de orientação batista, cansei de flagrar colegas nesta prática no banheiro ou num terreno baldio nos fundos da escola. Mesmo tendo meus escrúpulos cristãos desafiados, eu evitava emitir qualquer juízo condenatório. Simplesmente, me afastava. Se houvesse algum colega gay, muitos implicavam, batiam e ainda por cima abusavam sexualmente dele. Isso era deplorável. Sua hipocrisia me enojava. Alguns desses algozes tinham pais cristãos.
Ora, se os pais não ensinam, a arte acaba preenchendo a lacuna. Não sou eu quem vai condenar um desenho animado pelo simples fato de apresentar um gesto afetuoso entre pessoas do mesmo sexo.
E por falar em homossexualidade, deixando o moralismo hipócrita de lado, como a Bíblia realmente trata a questão?
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Você se considera tímido? Então, responda-me com sinceridade: como se sente ao saber que os tímidos encabeçam a lista dos que passarão toda a eternidade sendo torturados no inferno? Pelo menos é o que lemos em Apocalipse 21:8.
Confira: “Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos que se prostituem, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte.”
Quando postei esta pergunta em meu perfil no facebook, a primeira resposta que obtive foi: “Sinto q se eu n for p o inferno de um jeito, vou de outro…rs”
Obviamente que esta resposta bem humorada está baseada na crença de que ir ou não para o inferno tenha a ver com o fato de constar de uma lista. Se depender exclusivamente disso, seria aconselhável dar uma checada noutras listas apresentadas nas Escrituras:
“Mas, ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira.”Apocalipse 22:15
E então, escapou desta? Você se considera um “cão”, seja lá o que isso signifique? Pratica feitiçaria? Anda se prostituindo por aí? Já matou alguém? Possui ídolos? Se prostra perante eles? Conta uma mentirinha de vez em quando? Não!? Tem certeza? Ok. Digamos que desta você escapou por pouco. Mas não termina aí. Vamos à próxima lista?
“Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.”

1 Coríntios 6:9,10

A coisa agora começou a apertar pra você, não? Já está até suando frio, hein? Mas que bom que você não é o que se poderia chamar de devasso, muito menos de adúltero… quer dizer, desde que não leve em conta aquela estória de que basta uma olhada para a mulher alheia e você já adulterou com ela…
Mas, tudo bem, né? Ninguém é de ferro. Mas pelo menos, você não é GAY! Isso mesmo! Tudo, menos isso. Você pode até ser um maldizente (vulgo, fofoqueiro), mas não anda por aí desmunhecando. Quer saber… Deus nem vai se importar com os outros itens da lista. Desde que você não seja gay.
Está vendo como a gente trata logo de arrumar uma desculpa para salvar nossa pele? O importante é garantir que você esteja dentro e não fora, incluído e não excluído dos VIP’s que herdarão o reino dos céus.
É relativamente fácil dar uma manipulada quando nossas vicissitudes se encontram perdidas entre tantas outras. Parecem ser apenas detalhes que passam despercebidos. Mas aquela lista de Apocalipse é intragável. Pelos simples fato de ser encabeçada por uma vicissitude que julgamos ser trivial. Sete em cada dez pessoas se consideram tímidas. E agora?
Já sei. Há uma saída! Vamos vasculhar o texto em seu idioma original. Quem sabe a palavra “tímido” tenha outro significado. Talvez assim, a gente consiga salvar a pele de muita gente, inclusive a nossa.
Depois de uma breve pesquisada, a gente descobre que a palavra traduzida por “tímido” naquela passagem é ‘deilos’, encontrada em outros dois textos do Novo Testamento. Vamos dar uma conferida neles para ver se a gente escapa da lista?
Ambas as passagens relatam o episódio em que Jesus socorreu os Seus discípulos numa tempestade que quase os levou ao naufrágio (Mt.8:26, Mc.4:40). “Por que sois tão tímidos? Ainda não tendes fé?”, repreendeu-os Jesus. Concluímos daí que a tal timidez de que fala Apocalipse deve estar ligada à falta de fé. Não é o nosso caso, não é mesmo? Quer dizer… pensando bem, houve momentos em nossa caminhada em que nos intimidamos diante das circunstâncias.
Ser “tímido” não teria a ver com ser introspectivo, calado, ter pavor de falar em público, e sim com sentir-se intimidado diante de uma situação. Então, sinto em lhe informar que por mais que nos desdobremos para fazer uma exegese que livre a nossa cara, estamos todos numa situação delicada. Então, que tal colocar tudo isso na conta da misericórdia divina? Se Jesus pôde sair em socorro daqueles discípulos, certamente se compadecerá de nós e não nos deixará de fora.
Concordo plenamente. Só não concordo quando usamos duas medidas. Uma para livrar nossa pele, e outra para condenar os que consideramos indignos de desfrutar da mesma salvação. Esquecemo-nos de que estamos todos no mesmo barco, enfrentando a mesma tempestade. Somos humanos. Falíveis. Vulneráveis. Desesperadamente carentes da graça de Deus.
Reparou que numa das listas que apresentei acima encontramos os “efeminados” e “sodomitas”? É baseada nesta lista que afirmamos com convicção de que homossexuais são indignos de serem alcançados pela mesma graça que nos alcançou.
Que tal sermos honestos para fazer o mesmo tipo de exegese que fizemos para tentar salvar a pele dos tímidos?
O termo grego traduzido por “efeminados” é “malakoi”, que pode ser literalmente traduzido como “mole”, “macio”, “suave ao toque” (algo como “molengão”). Alguém sem fibra, que se entregava facilmente diante de uma situação de pressão. Em época de implacável perseguição contra os cristãos, o mínimo exigido de um seguidor de Cristo é que fosse firme. O termo “malakoi” aponta para uma inaceitável fraqueza de caráter.
Por que traduziram este termo como “efeminado”? Porque nas culturas antigas, a feminilidade era vista como sinônimo de fragilidade. Seria mais ou menos como dizer a um filho hoje em dia: Seja homem! Não seja uma mulherzinha! É óbvio que o objetivo de quem usa tal expressão não é diminuir o valor da mulher, mas encorajar o filho a portar-se varonilmente.
Dicionários teológicos associam malakos (singular de “malakoi”) a um homem afeminado, mas reconhecem que o termo pode significar pessoas promíscuas, isto é, dadas aos prazeres da carne, tanto homens, quanto mulheres. Porém, há estudos que relacionam malakoi com a prostituição masculina praticada na época de Paulo, principalmente em Corinto, cidade famosa por sua depravação sexual.
Já o termo “arsenokoitai”, traduzido como “sodomita” na versão de Ferreira de Almeida, só passou a se referir a prática homossexual a partir da Alta Idade Média. Etimologicamente, o radical linguístico “arsen” significa macho, enquanto “koitos” significa leito. Bem da verdade, “arsenokoitai” é um termo de significado obscuro, que não possui qualquer registro na literatura clássica grega. O que levou alguns a considerar tratar-se de neologismo do próprio Paulo.
Convém lembrar que há uma enorme quantidade de vocábulos do grego clássico usados para designar o comportamento homossexual, porém, Paulo não lançou mão de nenhum deles. Logo, podemos deduzir que o apóstolo estivesse falando de algo bem particular e não propriamente da homossexualidade. A Bíblia de Jerusalém, considerada uma das melhores traduções das Escrituras, traduz o termo “arsenokoitai” como “pessoas de costumes infames”.
É plausível crer que Paulo estivesse se referindo à prática da prostituição cúltica tão disseminada no império romano, onde homens, independentemente de sua orientação sexual, tinham relações tanto com pessoas do mesmo sexo, quanto com do sexo oposto, atribuindo a isso um valor devocional.
Festas religiosas como a dedicada a Dionísio, deus do vinho (conhecido também como Baco; daí o termo “bacanal”, festival de Baco) eram verdadeiras orgias, onde famílias inteiras se entregavam aos prazeres desenfreados da carne, julgando com isso estarem cultuando ao seu ídolo.
É também neste contexto de idolatria que Paulo expressa seu repúdio no primeiro capítulo de sua epístola aos Romanos, onde denuncia aqueles que, “dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis”(Rm.1:22-23).
Razão pela qual “Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos entre si; pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador”(vv.24-25). Repare que tudo começa na idolatria. Este é o contexto imediato. Como juízo, Deus os entrega a si mesmos, como se dissesse: É isso mesmo que vocês querem? Então, lá vai…
A partir deste ponto, Paulo descreve as tais “paixões infames” às quais Deus os abandonou.
“Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.” Romanos 1:26-27
Interessante notar que, se a interpretação que tem sido feita está correta, é a primeira vez que encontramos nas Escrituras qualquer menção à homossexualidade feminina. Em Levíticos 18:22 lemos sobre a proibição de homem deitar-se com outro homem como se fosse mulher, mas não vemos nada acerca da mulher que se relaciona sexualmente com outra. Acho que isso mereceria certa atenção. Porque se o assunto é, de fato, homossexualidade, então, não se poderia deixar de fora as mulheres. Há quem acredite que Paulo teria corrigido isso.
Será que Paulo estava falando de homoafetividade? Ou estaria falando de uma prática diretamente ligada à idolatria?
Imagine homens de orientação heterossexual mantendo relações homossexuais só para agradar a uma divindade pagã! Pois era justamente isso que acontecia naquela sociedade. Nada mais antinatural. Por isso, eles se embriagavam e usavam máscaras. A embriaguez era para tomar coragem e desafiar sua própria natureza.
A máscara era para proteger o anonimato, e assim, ajudá-los a lidar com a culpa e a vergonha. Não se tratava de homossexualidade propriamente, mas de orgia, de promiscuidade elevada ao mais alto grau. Seres humanos reduzidos a objetos de prazer. Tudo em nome do culto a uma divindade pagã.
Assim como é antinatural a um homem ter relações com outro homem, sendo ambos héteros, também é antinatural forçar um homossexual a casar-se com alguém do sexo oposto para suprir as expectativas da sociedade que prima pela hipocrisia.
Mas digamos que a exegese apresentada aqui não o tenha convencido. Você prefere crer que homossexuais estão fadados a serem punidos para sempre no inferno, desde que sua própria timidez seja alvo da misericórdia divina. Que tal se avançarmos um pouco na leitura de Romanos 1?
A severidade com que Deus julgará os idólatras, também julgará os que não se importaram de ter conhecimento de Deus (e aqui, o apóstolo mira sua metralhadora giratória para os judeus), que, mesmo não praticando tais coisas, aprovavam os que a praticavam (v.32).
Por isso, o mesmo Deus que entregou os gentios às suas próprias paixões, também os entregou “a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm; estando cheios de toda a iniquidade, fornicação, malícia, avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade; sendo murmuradores, detratores, aborrecedores de Deus, injuriadores, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais e às mães; néscios, infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia” (vv. 28-31).
E por falar em lista, sabe o que mais me chama atenção nesta em particular? O último item. De que adiantaria escaparmos de todas as listas apresentadas nas Escrituras, mas cairmos justamente no último item desta?
A falta de misericórdia nos faz inescusáveis perante Deus. Não foi à toa que Jesus disse que bem-aventurados são os misericordiosos, pois alcançarão misericórdia. Sinceramente, espero ser contado entre estes. Se tiver que pecar pelo excesso, que peque pelo excesso de misericórdia e não de juízo.
O objetivo de Paulo nos primeiros capítulos de Romanos é mostrar que todos somos farinha do mesmo saco. Judeus e gentios, héteros e homossexuais, homens e mulheres, só escaparemos do severo juízo divino se formos tão misericordiosos com os outros quanto somos condescendentes conosco mesmos. “Portanto”, arremata o apóstolo, “és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer se sejas, pois te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro” (Rm.2:1).
Quando vejo o sofrimento de milhões de seres humanos, reputados como escória pelo simples fato de serem gays, meu coração é tomado de misericórdia. Não me vejo à vontade diante de um discurso odioso, que, direta ou indiretamente, fomenta o preconceito. Quando recebo e-mails e mensagens in box de seres humanos dispostos a tirar a própria vida por não se aceitarem, ou por não conseguirem lidar com a pressão social, meu coração se enternece.

Foi o que senti ao assistir ao vídeo postado por Viviany Beleboni, a transexual que encenou a crucificação na Parada Gay em SP, que em prantos denunciou a agressão sofrida por alguém que a chamava de “demônio” e dizia “Você não é de Deus!” Com o olho roxo e feridas à faca abertas no rosto e no braço, Viviany lamentava o episodio. Como ela, muitos têm sido agredidos e até mortos por causa de sua orientação sexual. Espero que este singelo texto ajude a desarmar espíritos e conduzir-nos pelas sendas da compreensão, do amor e da misericórdia.
Visto no: DCM