21 fevereiro 2018

Que tiro foi esse? É a intervenção militar.



A linguagem nunca viveu momentos tão difíceis. Para se expressar, o indivíduo de hoje precisa ser o mais minucioso possível, pois qualquer deslize na comunicação pode levá-lo ao terreno minado da não interpretação, ou pior, da distorção da palavra. Texto, contexto, discurso, enunciação, são instâncias indissociáveis, mas suas categorias perderam seu sentido inaugural nestes tempos sombrios. Fatia significativa deste fenômeno se deve a difusão das redes sociais e o acesso praticamente irrestrito da população, em sua maioria iletrada no campo da leitura - o que resvala na compreensão de textos - na internet. Por essa inadequação linguística, recentemente o hit “Que tiro foi esse?”, da cantora Jojo Todynho, caiu em desgraça após ser considerado como apologia à violência reinante no Brasil, mesmo a funkeira esclarecendo o significado pretentido da música. Entretanto, é preciso aproveitar esse equívoco para uma finalidade mais nobre. De fato, o primeiro sentido dado a “Que tiro foi esse?” parece mais apropriado agora que o governo Temer permitiu que a intervenção militar entrasse mais uma vez em cena na história do país.

Após ser aprovada pela Câmara de Deputados, toda sorte de comentários, análises, debates, discussões, textos e mais textos, em suas múltiplas manifestações, foram, e serão, elaborados para atribuir juízo de valor à Intervenção Militar. Mais que justo, diante da forma como essa manobra inegavelmente política e inconstitucional tem sido feita. Em sua maioria, o que se versa é sobre a ilegitiminidade dada a operação, ao fracasso da segurança pública no Rio de Janeiro dentre sucessivos governos e os interesses escusos, mas óbvios, do presidente mais odioso da história brasileira. Então, quando “as palavras incomodam o suficiente”, como disse Martha Medeiros em uma de suas crônicas, elas despertam a inflexão inesperada daquilo que se almejava. Menos de um dia após ser facultado o direito ao Exército de ter plenos poderes na “seguridade” das favelas cariocas (que este espaço fique bem claro), o próprio Exército se manifestou nas redes, afirmando que Intervenção Federal não é o mesmo que Intervenção Militar. A explicação se tornou ainda mais ambígua do que a sua mera conceituação, sobretudo quando se leva em conta o histórico de truculência militar no Rio e em todo o país.

Voltemos brevemente ao hit da Jojo Todynho. Os problematizadores de plantão enxergaram na letra uma incitação da violência, destacando um trecho da música para chegar a tal conclusão. O Exército da Intervenção Militar incorre pelo mesmo erro. Não se podem analisar textos falados, escritos e imagéticos, desatrelado do contexto a que estes estão intimamente vinculados. As experiências das produções textuais, sejam elas quais foram, são oriundas de uma época, cumulativo de sentimentos e experimentações, visões de mundo empíricas e factuais, das quais não podem ser desconsideradas. Sem esse entendimento qualquer linguagem soará imprecisa, desconectada da realidade, de modo a perder sua total relevância e funcionalidade. Foi o que ocorreu com “Que tiro foi esse?” e é o que, sordidamente, o Exército Brasileiro está se propondo a fazer. Enquanto o tiro de Jojo Todynho foi de alegria, pluma e purpurina, o da Intervenção Militar será digno dos bombardeios do Oriente Médio. Ou seja, tentar substituir a abruta participação das Forças Armadas por outras palavras não surtirá o mesmo efeito enquanto o contexto de atuação for o mesmo.

Essa tentativa fraudulenta de eufemizar a linguagem para evitar maiores alardes talvez funcionasse em momentos mais remotos da história nacional, quando o acesso à informação era mais limitado. Porém, no boom da tecnologia, apesar da carência no quesito interpretação de texto, ainda há muitas pessoas capazes de discernir táticas arbitrárias, principalmente contra os mais desfavorecidos. E não é clichê redizer o quanto são os favelados, pobres, negros, jovens, o público alvo dessa operação. As estatísticas antes disso já comprovam porque tais vivem na mira dos criminalizadores do poder. Também não é irrelevante reiterar a ineficiência do poder público para gerir um projeto de Segurança Pública comprometido com o bem de todos, e não apenas os mais abastados. Uma segurança repaginada, desde a contratação, passando pela política de apreensão de suspeitos, aparato policial, condições dignas de trabalho, menor morosidade nos trâmites legais, resvalando diretamente na reconfiguração das cadeias. Tudo isso é sabido e possível de ser concretizado, mas o mais rentável é manter a política antidrogas, incentivar o porte de armas e criminalizar as minorias.

Há um artigo muito pertinente sobre essa abissal realidade brasileira da Jornalista e Escritora, Eliane Brum, chamado “Também Somos o Chumbo das Balas”. Brum mostra-se chocada com a falta de empatia com os moradores mortos no morro da Maré, no Rio, em detrimento dos da Avenida Paulista nos protestos de 13 de junho de 2013; enfatiza a brutalidade como os policiais incidem sobre a população, não distinguindo bandidos de possíveis criminosos; alerta para a utilização indistinta de balas de borracha nas avenidas brasileiras e de fuzis nas favelas; ainda sobre a polícia, o texto fala sobre como a militarização desses servidores só se insurgem contra os moradores daquelas áreas periféricas e o mais chocante disso tudo, a população brasileira, em especial à classe média, se mostra apática diante de tal massacre do povo pobre, preto e favelado. Pelo visto, a Intervenção Militar não será diferente. Os paladinos de Temer não hesitarão em ferir inocentes para que a “ordem” burguesa seja restabelecida, já que a proteção daqueles moradores está em enésima posição de importância. Será um remake, remasterizado em Full HD do aclamado por muitos, Tropa de Elite. Acontece que Temer, sua corja e a burguesia, assistirá ao massacre no conforto de suas casas. Já os residentes das favelas cariocas farão de suas moradias as trincheiras de mais uma guerra.

 É estranhamente curioso que essa Intervenção Militar se dê às portas das eleições presidenciais, quando um dos possíveis candidatos é abertamente a favor da militarização como forma regulamentadora da proteção da sociedade. O partidarismo da questão é o responsável por suplantar mais uma vez os direitos daqueles que desconhecem esta premissa. Outrossim, não se pode esperar bonanças dessas ações ao famigerado presidente Temer. Seria pretencioso de mais da parte dele almejar algum louro da população, ao expô-la à barbárie. Ele não seria tolo. O que está em jogo, além dos claros interesses políticos, é o esvaziamento da linguagem, através de uma resposta amadora à violência, para que a população se veja crente de que apenas a panaceia das Forças Armadas apaziguará o longo caminho da criminalidade, sustentado em boa medida pelo próprio governo, que agora se rebela contra sua obra. Aos mais apocalípticos, é preciso dar a devida atenção: talvez o regresso dos horrores da Ditadura Militar não seja uma obra da mera fantasia. Parece que o Brasil está trilhando o mesmo caminho, mas, como de praxe, nessa cultura da deseducação, da não leitura e da total irreflexão, até que o fatídico interesse dos malfeitores ganhe forma, eles tentarão de todas as maneiras embaralhar a linguagem até que não faça o menor sentido. Tudo para justificar as ações já claramente injustificáveis.

A serviço de algo maior, “Que tiro foi esse?” foi só a primeira de muitas distorções.

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