21 fevereiro 2018

Nossas Noites – de Kent Haruf


Quantos de nós temos uma segunda chance de viver um grande amor? Ou melhor, quantos de nós nos damos essa oportunidade, sobretudo quando a velhice nos bate à porta? Provavelmente poucos se aventurariam numa relação a dois depois dos 60, 70 ou 80 anos. Numa sociedade que romantiza os relacionamentos juvenis, impera-se uma validade para o amor, que é bastante cruel com as pessoas mais velhas, impedindo-as de se aventurarem em novas experiências. Essa devastadora prática é antiga e responsável por muitos dos males acrescentados às pessoas idosas. Um desrespeito a sua saúde física, mental e emocional, além de uma afronta a quem teve o privilégio de chegar até uma certa idade, privando-as do direito de experienciar novas sensações ou revivê-las de acordo com o seu contexto de vida. É o momento de repensarmos isso e olharmos com menos preconceito e mais empatia para essa classe que engrossa as estatísticas de longevidade em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Nossas Noites nos faz esse convite à reflexão do amor na terceira idade. Lança o olhar para esse público tão estigmatizado pela sociedade, que finge ignorar a todo custo essa fase da vida, ou retardá-la através dos métodos oferecidos pela famigerada indústria da beleza. Com uma narrativa simples, a obra conta a história de dois vizinhos, septuagenários, ela viúva e ele idem, que resolvem passar as noites dormindo juntos para espantar a solidão, depois de estarem acostumados há anos de cia nos seus respectivos casamentos. A iniciativa é inusitada, mas aos poucos agradam os personagens, que se divertem com os encontros às escondidas e as conversas antes da chegada do sono. De forma leve, a obra narra como cada um deles perdeu seus cônjuges, sua rotina antes desses encontros e as poucas histórias interessantes vividas por eles, que se conheciam de vista por morarem na mesma rua, mas contadas por ambos sob ópticas diferentes.

O livro tem um traço marcante que merece ser mencionado: a narrativa não dá lugar a um clímax, aquele ponto alto que é comum em muitos romances e que deixa a obra mais eletrizante, prendendo o leitor. Evidentemente que este recurso é útil quando bem utilizado, mas, muitas vezes, mais que empobrece a obra do que a enriquece. Em Nossas Noites, porém, não há esse mecanismo. O romance do início ao fim não tem praticamente um momento marcante. Tudo se desenrola no ritmo lento daqueles personagens. Parece que essa foi justamente e intenção de Haruf: dar a narrativa uma pegada condizente com a história da qual estava sendo contada, sem maculá-la com efeitos exagerados capazes de descaracterizá-la. Funcionou, e nem por isso perdeu o seu encanto. Nossas Noites é de uma elegância ímpar. Um romance delicado, profundo e único entre dois indivíduos que partilharam uma longeva história de vida e se dão a oportunidade de reviver um amor sem reservas, mesmo que precisem enfrentar a sociedade por isso.

É o que acontece. Ao longo da história, a relação entre eles intriga primeiro os vizinhos, amigos em comum e depois os familiares, que sob o manto do preconceito, investem fortemente contra aquele romance. Daí em diante todos os dissabores vividos pelos “amores proibidos” são vivenciados por eles, com o acréscimo maior a sua condição idosa mais do que pelo sentimento existente entre eles. Vários subterfúgios são criados para que o relacionamento não vingue, chegando a abalá-los profundamente. Entretanto, quando duas pessoas se permitem dar mais uma chance, poucas interferências são capazes de impedi-las de realizar seus objetivos. Pode até haver momentos de fraquezas, breves indecisões, mas tais titubeadas são efêmeras e sucumbem em meio a algo maior que sempre está em jogo: a nossa felicidade. Este sentimento supremo é levado ao extremo por aquele casal de idoso, que já desconheciam há tempos o que era estar novamente apaixonado, até que tal sentimento lhes presenteou.

Nossas Noites lança ainda um olhar para outras questões vistas de soslaio pela sociedade como o sexo, a sexualidade, o prazer, novos arranjos conjugais, a opinião pública, a pressão da sociedade, o preconceito etário, os desafios da velhice, o abandono da pessoa idosa, a inevitabilidade da morte, todos subtemas complexos irrefletidos ou ignorados pela sociedade “Forever Young” da qual somos submetidos desde sempre. O interessante é que esses assuntos não são problematizados claramente na obra. Haruf preferiu a sutileza da sugestão em vez de focar numa crítica mais ferrenha aos dilemas vividos pelos mais velhos. O enfoque é na nova oportunidade dada aos personagens, mas todos os outros desafios oriundos desta escolha estão claramente visíveis para o leitor mais atento, ora de forma mais categórica, ora diluída por todo o romance.

Em boa medida, Nossas Noites é um romance ousado, por retratar a coragem de duas pessoas viúvas, vistas pela sociedade como no fim da vida, mas que encontram um no outro o que faltava para dar uma guinada em sua história, mesmo que ela tenha fim amanhã ou depois. Também desconstrói a ideia falaciosa de que não podemos mais amar na velhice, que é feio ou nojento, adjetivos criados para limitar os prazeres conjugais a determinadas faixas etárias. De forma subliminar, fica exposto no livro que não é preciso viver grandes aventuras para se amar, nem correr grandes riscos para estar perto de quem gostamos. Às vezes, é mais perigoso não se permitir, deixando que a solidão ganhe espaço na nossa existência, encurtando ainda mais a nossa qualidade de vida. Nisso, o livro busca nos deixar claramente uma reflexão sobre como os nossos preconceitos nos impedem de provar novas formas de felicidade por medo do que a sociedade pensará do rumo do qual estamos dando a nossa vida.

Haruf, que está em outro plano, diz através dessa obra que é preciso ignorar as expectativas sociais em detrimento da nossa felicidade. Nos deixa um alerta claro de que a sociedade está mudando no tocante à velhice e esta deve ser vivida em plenitude. É uma reflexão necessária para quem acredita que não é possível gostar, se apaixonar ou amar alguém, porque o fulgor da juventude os abandonou. Nesta sociedade mercantil, saber que o amor é interminavelmente durável é um maná dos céus. Eu, que estou na casa dos trinta, me senti esperançoso ao ler Nossas Noites. É um livro que guardarei na memória por muito tempo. E, caso tenha a sorte de chegar à velhice, espero ter a chance de continuar amando e sendo amado, e não me fecharei para novas experiências amorosas, apenas temendo o que a sociedade vai ou não pensar sobre mim. É disso que se trata a felicidade, burlar o que está estabelecido por um bem maior. Então, que mais pessoas leiam este livro e transgridam a rancorosa e limitada definição existente de amar.

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