A inquietação tem
motivado a humanidade a atribuir valores a tudo aquilo que foge da sua
compreensão. Em meio ao caos imposto pela dúvida, tudo o que era desconhecido
precisou ser nomeado, pois conceituar esses eventos foi à maneira encontrada
por nós para dar um crivo ao que nos cercava, fazendo o impensável ganhar algum
sentido. As palavras passaram então a carregar a significância esperada por
nós. Isso acontece a gerações, a principio com os fenômenos naturais, a chuva,
os ventos, os raios, etc. Depois outros ícones foram sendo criados sob o mesmo
julgo do passado, ora erguendo grandes impérios, ora os destruindo, ora
exaltando a glória de heróis míticos, ora divinizando-os. A forma meticulosa de
como isso se deu recebe o nome de mito, o qual não é capaz de ser esclarecido
pelos olhos da razão, pois ele faz parte do campo sagrado criado por nós homens
para dar sentido ao que escapa de nossos domínios. Por essa razão, o mito é tão
antigo, porque remonta ao âmago das criaturas, antes primitivas, que agora
civilizadas, dão outros sentidos aos mitos.
Em Deuses Americanos, Neil Gaiman cria uma interessante obra de
fantasia para nos explicar que muitos dos mitos de ontem permanecem entre nós,
esgueirando-se em busca de espaço, após serem postos de lado pelos “deuses
modernos”. Mesmo não morrendo definitivamente, eles ganham outras acepções de
acordo com as necessidades daqueles que os cultuam. Por se passar nos EUA, a
obra enfoca o descaso que houve com todos os povos vindos à América, suas
culturas, tradições e, claro, seus mitos, muitos dos quais praticamente
destruídos, outros renegados e boa parte incorporados pelo novo mundo. Estes
últimos sobreviveram como todos os outros seres míticos sobrevivem: porque
atendem as exigências de um povo que necessita de algo maior para acreditar. O
mito também é a prova de que há algo de vital em nós que não duraria sem o
apelo aos mitos. São eles que nos mantém vivos, dando relevância a nossa estada
no mundo.
Em contrapartida, mesmo
subsistindo no mundo moderno, os deuses e deusas antigos agora se veem obsoletos,
porque a humanidade idolatra outras figuras mitológicas, vistas pelos
anteriores como de menor sacralidade. O embate entre esses deuses parece ser
inevitável. Novas e velhas deidades fazem da terra o campo de batalha para
disputar a hegemonia da devoção dos humanos. O astuto Wednesday é o personagem
criado por Gaiman para aguçar essa possível batalha. Sendo um deus antigo, ele
teme que os novos o substituam por completo. Então, ele escolhe Shadow, um
mortal recém-saído do presídio, a ser o parceiro dele numa espécie de convenção
de deuses do passado. Para o leitor, Shadow não parecia ser a melhor escolha.
Incrédulo, distante e perdido, em muitos momentos da narrativa, ele dúvida dos acontecimentos
inexplicáveis a sua volta, não sendo capaz de traçar uma justificativa racional
para àquelas ações mágicas. Mas, foi esta a intenção de Gaiman, escolher um
indivíduo cujo perfil moderno se diferencia pelo desapego ao sagrado, algo
ampliado a muitos outros seres humanos na atualidade.
Com um olhar crítico, Deuses Americanos questiona a mudança
de paradigma vivenciada pelos mitos com o passar doa anos. Os seres imaculados
do passado, que regiam a vida na terra a partir da sua própria vontade, agora
não são mais invocados nas preces humanas, nem recebem oferendas através dos
agradecimentos pelas bonanças vindas do céu. Não são mais cultuados nas datas
costumeiras, tão pouco suas histórias são recontadas as novas gerações, que
cada vez mais os desconhecem. As celebrações, festivais, banquetes e
sacrifícios praticamente foram instintos, dando lugar a singelas manifestações
de respeito pela existência de entidades que governavam os episódios de outrora.
Em seu lugar, outros deuses tangíveis passaram a ser venerados: o deus da
mídia, da internet, da tecnologia, da música, dos automóveis, e tantos outros
divinizados pelas novas práticas iconoclásticas da vida moderna.
Vendo a quase completa
deterioração dos deuses antigos, mesmo sabendo de sua importância, surge um
sentimento de pesar ao perceber a descartabilidade a qual criamos e nos
desfazemos dos símbolos. Esse ímpeto partidário aflora depois de ler Deuses Americanos e compreender como o
nosso egoísmo se apropria do sagrado que criámos, mas não titubeia em recusá-lo
quando outra divindade é elaborada ou reconstruída para nos servir. Somos tão
patéticos, nesse sentido, que sem os mitos dificilmente a soberania humana
seria uma realidade. Foram os diversos deuses e deusas que construímos que nos
permitiram chegar até onde chegamos, impondo-nos limites às nossas ousadias,
determinando para onde íamos depois da morte ou explicando o porquê de nossas
privações em vida. Cada passo, cada tomada de decisão, cada desafio, tudo só
foi possível graças aos mitos que originamos das nossas necessidades para
transcender as nossas incontáveis limitações.
Por ser produto da
criatividade humana, o mito recebeu centenas de outros significados, muitos
deles, porém, tentaram minimizar a essência do mito: chamado de religião,
crença, fábula, lenda, alegoria, símbolo ou metáfora, todas essas palavras
cabem dentro do bojo mitológico idealizado antes mesmo do homem dar seus
primeiros passos no universo. Mesmo que tentem esvaziar a palavra mito do seu
sentido original, ela continuará soerguendo-se frente à insuficiência de outro
conceito capaz de satisfazer as carências humanas. Gaiman conscientemente faz
isso ao propor a insurgência dos deuses antigos contra os novos. Talvez, num
primeiro olhar, pareça que a intenção do autor é aniquilar uma das partes.
Quando na verdade é apenas o oposto disso. Ao soerguer deuses atemporais dos
mais frívolos da atualidade, a obra evidencia também a maleabilidade do mito,
que pode assumir inúmeras facetas da vida, sem necessariamente ser chamado como
tal. Então, sem plena noção disso, continuamos a ser guiados por mitos e
fingimos que estes tem outro nome, uma mentira confortável nutrida por séculos.
Seja como for, os mitos
não morrem. Estão vivíssimos entre nós, determinando nossas ações cotidianas
mais ou menos como se fazia nas primevas civilizações. O que talvez tenha
morrido foi seu caráter sacro, bem como todas as atitudes destinadas ao divino.
Entretanto, isto não descaracteriza o poder de influência exercido pela
mitologia em nossas vidas. Continuamos buscando ícones para expandir os nossos
limites, ao passo que elaboramos cada vez mais totens para preencher esse nosso
constante vazio existencial. Tem funcionado, pelo menos a curto prazo. Pelo
visto, pouco mudou das práticas mitológicas antigas das atuais, a não ser a
rápida variedade de deuses que vem e vai, o que se justifica pela celeridade da
vida moderna. Fora isso, Deuses
Americanos, além da crítica mordaz a formação dos EUA, cutuca todo esse
novo mundo que foi unificado pelos mitos contemporâneos, através da
massificação do poder financeiro. Lendo esta obra de Neil Gaiman, faz ainda
mais sentido a célebre frase de Fernando Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”.
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