Depois de ler, e de
me chocar, tardiamente com a morte do menino Vitor Pinto, índio assassinado no
Sul do Brasil na antevéspera do réveillon, fui teletransportado para minha
adolescência. É que naquela época, mais precisamente em 1997, houve outro crime
bárbaro envolvendo índio. Lembrei-me do líder indígena brasileiro da etnia
pataxó-hã-hã-hãe, Galdino Jesus dos Santos, que foi queimado vivo por um grupo
de jovens de Brasília. O crime teve uma justa repercussão nacional e, se não me
engano, os acusados foram presos, mesmo que por pouco tempo.
Eis
que anos mais tarde o pequeno Vitor Pinto de apenas 2 anos foi covardemente
assassinado. Diferentemente, porém, do seu semelhante anterior, Vitor não teve
a mesma visibilidade midiática. Mesmo com o Boom das redes sociais, pouco se
falou do assassinato desse garoto. Será mais um dado catalogado entre tantas
outras mortes ocorridas em 2015. Mais que isso, Vitor será esquecido, como
todos aqueles que são mortos por nascerem e se tornarem minorias no Brasil.
Sim, esse pequeno indiozinho foi sentenciado pelo preconceito, que não só o
matou mas vem matando toda a sua descendência desde 1500.
Esse
ceifamento é fruto de diversos descasos culturais, os quais semeiam na
sociedade a falsa crença da superioridade desta sobre outras raças. Acreditando
nisso, o homem branco sente-se no direito de burlar legislações e invadir
propriedades indígenas sob o falso julgo do "progresso"; demoniza a
religiosidade desses povos com práticas catequéticas impulsionadas por uma fé mercantilista,
que se propaga pelo país angariando (forçando) novos "fiéis";
desrespeita a integridade física desses indivíduos com práticas escravistas e
de exploração sexual, como se estivéssemos, ainda, no controverso período do
achamento do Brasil; e, sobretudo, desvalorizam a cultura, o legado e toda a herança
histórica desses habitantes renegando-os a subsistência.
Além
de todo esse maltratamento, os índios continuam sendo mortos como em séculos
atrás. O que não mudou foi o senso de impunidade, a obscenidade que corrompe os
poderes públicos nacionais que agem passivamente diante de atrocidades como a
que acometeu a existência do pequeno Vitor. Digo isso, porque muitos dirão que
a morte desse menino não tem motivações preconceituosas, mas que é fruto da
violência urbana banalizada e naturalizada no país. Este é o perigo do
reducionismo: não enxergar a profundidade das coisas, limitando-as a
fatalidade. Muito embora seja verídico que a violência seja uma constância na
sociedade, por que ela só encurta a vida das minorias? Simplesmente porque elas
não existem.
A
invisibilidade matou Vitor Pinto. Como matou também Eduardo de Jesus, garoto
assassinado com um tiro de fuzil na cabeça por um policial no Complexo do
Alemão, favela do Rio de Janeiro. Outro crime absurdo foi o do estudante Rafael
Melo, de 14 anos, morto a paulada e pedradas no Espírito Santo, pelo próprio
tio do garoto que não aceitava o jeito afeminado da vítima. Índios, negros,
pobres, gays, mulheres, dentre outros grupos minoritários, tiveram seu momento
de destaque em 2015, quando foram noticiados longa ou rapidamente pelas mídias
nacionais por serem vítimas da opressão, do desrespeito e do desamparo, social
e legal, que rege esse Brasil de desiguais.
Desses
clichês, resgata-se outro em forma de questionamento: e se fosse o inverso? E
se um índio tivesse matado uma criança branca, como a sociedade reagiria? Temo
em pensar nas respostas para tais questões, pois sem usar de tais artifícios os
indígenas já são massacrados, imagina se estes revidassem? Aliás, se todas as
minorias usassem da violência física para reivindicar seus direitos, nosso país
superaria facilmente os campos de concentração nazistas, pois o que não falta
por aqui é preconceito e preconceituosos para serem combatidos. Entretanto, se
violência resolvesse muita coisa, nossos ex-presidiários seriam fortes
candidatos ao Papado.
O
enfrentamento da injustiça perpassava o choque. A nação ficava de boca aberta
quando um crime bárbaro se tornava manchete midiática. Hoje as reações variam,
porém há uma naturalização da criminalidade, como se esta já fizesse parte do
todo diário da existência humana. A violência até pode listar entre as
características humanas, mas o crime é um fenômeno social e deve ser combatido.
Por isso, quando garotos são assassinados frequentemente dentro desse sistema
significa dizer que a sociedade está na linha tênue do não retorno. Não
retornar implica pensar que estamos caminhando para a barbárie suprema, aquela
da qual o espetáculo maior será matar, não viver.
Infelizmente,
isso já vem ocorrendo na prática. São cadáveres que protagonizam no palco da
intolerância o seu pior papel: o de corpos baleados, cortados, perfurados,
usados como marionetes por aqueles que lavam sua ignorância com sangue e saem
impunes prontos para ceifar novas vidas, daqueles que só passam a existir
depois de mortos, embora que por pouco tempo. Foi isso que aconteceu com o
pequeno índio Vitor Pinto e que acontece constantemente com todos aqueles que
são assassinados por nascerem e estarem em berços ou em posições
desprivilegiadas social e moralmente.
A
morte de Vitor Pinto, como a de todos os outros anônimos brevemente notáveis de
2015, deixa claro a necessidade de se rever o abismo que há entre os aceitos e
os não aceitos. Como pensar em um 2016 melhor depois de saber que na virada do
ano um garoto, que poderia ser meu filho, não estará entre nós para crescer e
lutar pelos seus direitos? Em que panorama se encontra a sociedade atual para
não ir as ruas alardear solidariamente em prol desse garoto, evitando que a sua
morte tenha sido em vão? Qual o papel da rede social, em meio a esse mundo
cibernético, em promover uma discussão que não polemize, mas que problematize
as razões que levam alguém a tirar a vida do outrem baseado apenas em estigmas?
Em meio a tais reflexões, cansa saber que ao final desse
texto, eu terei que lamentar a morte de mais um indivíduo, que igual a mim, não
escolheu ser que é, apenas é. E ser no Brasil significa morrer. Hoje foi o
índio, amanhã pode ser o negro, a mulher, o gay, o deficiente, a prostituta, o
pai de santo... e assim a vida segue entre corpos, cadáveres, caixões e cinismo
daqueles que conhecem as razões de tanta carnificina, possuem as armas para
combatê-las, mas não o fazem. Enquanto isso, eu lamento por sua morte, Vitor,
como lamento a de todos os outros que são levados precocemente pelo
preconceito. Espero profundamente que sua partida não tenha sido em vão,
todavia não posso te garantir otimismo nessas palavras. As únicas garantias que
te dou são: você não será o último e de que não deixaremos de lutar pelos
nossos.
Texto maravilhoso, nos faz repensar em nossos valores..
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