08 janeiro 2016

Eu lamento, Vitor!


Depois de ler, e de me chocar, tardiamente com a morte do menino Vitor Pinto, índio assassinado no Sul do Brasil na antevéspera do réveillon, fui teletransportado para minha adolescência. É que naquela época, mais precisamente em 1997, houve outro crime bárbaro envolvendo índio. Lembrei-me do líder indígena brasileiro da etnia pataxó-hã-hã-hãe, Galdino Jesus dos Santos, que foi queimado vivo por um grupo de jovens de Brasília. O crime teve uma justa repercussão nacional e, se não me engano, os acusados foram presos, mesmo que por pouco tempo.
Eis que anos mais tarde o pequeno Vitor Pinto de apenas 2 anos foi covardemente assassinado. Diferentemente, porém, do seu semelhante anterior, Vitor não teve a mesma visibilidade midiática. Mesmo com o Boom das redes sociais, pouco se falou do assassinato desse garoto. Será mais um dado catalogado entre tantas outras mortes ocorridas em 2015. Mais que isso, Vitor será esquecido, como todos aqueles que são mortos por nascerem e se tornarem minorias no Brasil. Sim, esse pequeno indiozinho foi sentenciado pelo preconceito, que não só o matou mas vem matando toda a sua descendência desde 1500.
Esse ceifamento é fruto de diversos descasos culturais, os quais semeiam na sociedade a falsa crença da superioridade desta sobre outras raças. Acreditando nisso, o homem branco sente-se no direito de burlar legislações e invadir propriedades indígenas sob o falso julgo do "progresso"; demoniza a religiosidade desses povos com práticas catequéticas impulsionadas por uma fé mercantilista, que se propaga pelo país angariando (forçando) novos "fiéis"; desrespeita a integridade física desses indivíduos com práticas escravistas e de exploração sexual, como se estivéssemos, ainda, no controverso período do achamento do Brasil; e, sobretudo, desvalorizam a cultura, o legado e toda a herança histórica desses habitantes renegando-os a subsistência.
Além de todo esse maltratamento, os índios continuam sendo mortos como em séculos atrás. O que não mudou foi o senso de impunidade, a obscenidade que corrompe os poderes públicos nacionais que agem passivamente diante de atrocidades como a que acometeu a existência do pequeno Vitor. Digo isso, porque muitos dirão que a morte desse menino não tem motivações preconceituosas, mas que é fruto da violência urbana banalizada e naturalizada no país. Este é o perigo do reducionismo: não enxergar a profundidade das coisas, limitando-as a fatalidade. Muito embora seja verídico que a violência seja uma constância na sociedade, por que ela só encurta a vida das minorias? Simplesmente porque elas não existem.
A invisibilidade matou Vitor Pinto. Como matou também Eduardo de Jesus, garoto assassinado com um tiro de fuzil na cabeça por um policial no Complexo do Alemão, favela do Rio de Janeiro. Outro crime absurdo foi o do estudante Rafael Melo, de 14 anos, morto a paulada e pedradas no Espírito Santo, pelo próprio tio do garoto que não aceitava o jeito afeminado da vítima. Índios, negros, pobres, gays, mulheres, dentre outros grupos minoritários, tiveram seu momento de destaque em 2015, quando foram noticiados longa ou rapidamente pelas mídias nacionais por serem vítimas da opressão, do desrespeito e do desamparo, social e legal, que rege esse Brasil de desiguais.
Desses clichês, resgata-se outro em forma de questionamento: e se fosse o inverso? E se um índio tivesse matado uma criança branca, como a sociedade reagiria? Temo em pensar nas respostas para tais questões, pois sem usar de tais artifícios os indígenas já são massacrados, imagina se estes revidassem? Aliás, se todas as minorias usassem da violência física para reivindicar seus direitos, nosso país superaria facilmente os campos de concentração nazistas, pois o que não falta por aqui é preconceito e preconceituosos para serem combatidos. Entretanto, se violência resolvesse muita coisa, nossos ex-presidiários seriam fortes candidatos ao Papado.
O enfrentamento da injustiça perpassava o choque. A nação ficava de boca aberta quando um crime bárbaro se tornava manchete midiática. Hoje as reações variam, porém há uma naturalização da criminalidade, como se esta já fizesse parte do todo diário da existência humana. A violência até pode listar entre as características humanas, mas o crime é um fenômeno social e deve ser combatido. Por isso, quando garotos são assassinados frequentemente dentro desse sistema significa dizer que a sociedade está na linha tênue do não retorno. Não retornar implica pensar que estamos caminhando para a barbárie suprema, aquela da qual o espetáculo maior será matar, não viver.
Infelizmente, isso já vem ocorrendo na prática. São cadáveres que protagonizam no palco da intolerância o seu pior papel: o de corpos baleados, cortados, perfurados, usados como marionetes por aqueles que lavam sua ignorância com sangue e saem impunes prontos para ceifar novas vidas, daqueles que só passam a existir depois de mortos, embora que por pouco tempo. Foi isso que aconteceu com o pequeno índio Vitor Pinto e que acontece constantemente com todos aqueles que são assassinados por nascerem e estarem em berços ou em posições desprivilegiadas social e moralmente.
A morte de Vitor Pinto, como a de todos os outros anônimos brevemente notáveis de 2015, deixa claro a necessidade de se rever o abismo que há entre os aceitos e os não aceitos. Como pensar em um 2016 melhor depois de saber que na virada do ano um garoto, que poderia ser meu filho, não estará entre nós para crescer e lutar pelos seus direitos? Em que panorama se encontra a sociedade atual para não ir as ruas alardear solidariamente em prol desse garoto, evitando que a sua morte tenha sido em vão? Qual o papel da rede social, em meio a esse mundo cibernético, em promover uma discussão que não polemize, mas que problematize as razões que levam alguém a tirar a vida do outrem baseado apenas em estigmas?

Em meio a tais reflexões, cansa saber que ao final desse texto, eu terei que lamentar a morte de mais um indivíduo, que igual a mim, não escolheu ser que é, apenas é. E ser no Brasil significa morrer. Hoje foi o índio, amanhã pode ser o negro, a mulher, o gay, o deficiente, a prostituta, o pai de santo... e assim a vida segue entre corpos, cadáveres, caixões e cinismo daqueles que conhecem as razões de tanta carnificina, possuem as armas para combatê-las, mas não o fazem. Enquanto isso, eu lamento por sua morte, Vitor, como lamento a de todos os outros que são levados precocemente pelo preconceito. Espero profundamente que sua partida não tenha sido em vão, todavia não posso te garantir otimismo nessas palavras. As únicas garantias que te dou são: você não será o último e de que não deixaremos de lutar pelos nossos.

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