05 abril 2015

A velhice é uma conquista e não uma tragédia - por Déa Januzzi


       Cidade do Futuro, 21 de março de 2050 – Estou com 97 anos. Como eu, o Brasil também envelheceu. Faço parte das estatísticas que comprovam que sou uma entre cinco pessoas com 60 anos ou mais. Uma das cerca de 8,5 milhões de mulheres com 80 anos ou mais. Estou bem, parei de fumar aos 65, mas ainda bebo três taças de vinho por dia na hora do almoço. Minha alimentação é simples: como de tudo, mas pouco, e dou preferência aos orgânicos.

Como parte de uma geração que mudou costumes no século 20, com o advento da pílula anticoncepcional e a revolução sexual, sempre fui dona do próprio corpo, senhora de mim, livre para escolher os diferentes caminhos. Acompanhei a transformação tecnológica e, hoje, mesmo de óculos para perto e cirurgia de catarata nos dois olhos, estou escrevendo minha autobiografia, que inclui as lembranças decisivas do fim dos anos 1960 e década de 1970, como os movimentos feministas e estudantis, a luta contra a ditadura, a busca pela paz, pelo autoconhecimento, o respeito pela natureza e por um mundo melhor.

            Estou com 98 anos e há tempos providenciei o meu Testamento Vital, aprovado em 2012 pelo Conselho Federal de Medicina, sobre como quero chegar ao fim, sem qualquer ação médica e hospitalar que seja extraordinária, inútil ou fútil. Ou seja, sem intervenções que prolonguem ainda mais a minha vida. No meu Testamento Vital, registrado em cartório, testemunhado por meus médicos de confiança e pelo meu único filho, que tem 62 anos hoje. Não quero ser ressuscitada no caso de parada respiratória ou cardíaca. Quando chegar a hora, prefiro estar com o meu filho, netos e tantos sobrinhos-netos à minha volta. De preferência, no lugar onde moro, uma casa com janelas sempre abertas para as montanhas de Caeté, na Região Metropolitana de BH, onde o entardecer é uma oração. Dá vontade de rezar quando o Sol se põe atrás das montanhas. É um lugar onde continuo produzindo muito, mas com a calma e a sabedoria de uma quase centenária.

Depois de 40 anos no mercado de trabalho formal, continuo escrevendo. Sei hoje que o texto não envelhece, muito menos o desejo. Apesar de o corpo dar sinais de envelhecimento, a ciência e a medicina hoje têm solução para a sua população de velhos. Continuo escrevendo, conversando com os amigos e usufruindo do que a tecnologia oferece, sempre ao lado da minha cachorra, companheira de todas as horas. No quintal tenho flores que invadem a casa com o perfume das lavandas e madressilvas. Daqui a pouco vou cuidar da minha mandala de ervas e fazer alongamentos no jardim, todo florido nesta primavera.

Como parte de uma geração com estilo de vida alternativo, experimentei a alimentação macrobiótica, depois vegetariana, a culinária viva, ainda tomo toda manhã o suco verde com as raízes germinadas e me sinto muito bem. Ainda gosto de ouvir Chico Buarque e Caetano, Gilberto Gil e Zeca Baleiro, mas digo que a minha geração teve que fazer outra revolução para chegar até aqui: tirar o velho da invisibilidade, batalhar para que as políticas públicas fossem implantadas, acabar de vez com a gerontofobia ou a fobia contra os velhos. Mas não sei se conseguimos. Ontem mesmo num canal de televisão, a novela mostrava duas personagens lésbicas de mais de 80 anos que se beijavam na boca, com tamanho afeto que eu aplaudi, mas uma senhora do meu lado, de 60 e poucos anos, disse que não iria mais assistir, porque era demais ver duas velhas se beijando. Imaginem só: mesmo em 2050, os velhos não devem fazer sexo nem se apaixonarem. As personagens da novela sofreram ao mesmo tempo de duas fobias – a homofobia e a gerontofobia. Olha que fizemos a revolução dos velhos nesses anos todos.

Quando eu tinha 60 anos, em 2012, os especialistas apontaram uma nova fase da vida – a gerontolescência. O momento de estar envelhecendo sem se sentir decrépita nem doente, mas em forma para viver emoções translúcidas, leves como penas. Mas parece que nem todos entenderam que a velhice é uma conquista e não uma tragédia. Que a velhice é uma fase instigante da vida. Como disse o teólogo Leonardo Boff, “a velhice é a última etapa do crescimento humano. A última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora a palavra de São Paulo: ”Na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma medida rejuvenesce o homem interior. A velhice é uma exigência do homem interior. Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Essa identidade devemos encará-la face a face.”

Envelhecer é estar mais perto do sagrado, das coisas que realmente importam. Não há mais tempo para a mesmice, para apontar o dedo, para condenar o outro, para julgar e criticar. Envelhecer é aprender a viver, mesmo que já não haja mais tanto tempo.

Visto no: Portal Geledés

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