22 junho 2014

Chauí, a Copa e a “Nova Classe Média”


Por Fernando Horta*, Sul 21 

Em 2013, num evento que reuniu o ex-presidente Lula, o cientista político Emir Sader e o economista Márcio Pochmann, a filósofa e professora da USP Marilena Chauí virou vídeo viralizado em redes sociais. No vídeo faz um pronunciamento em que afirmava que a “classe média é uma abominação política, uma abominação ética e uma abominação cognitiva”. Um discurso forte que recebeu críticas de grupos que, pela conceituação de Chauí, sequer foram atacados. Em realidade, o desconhecimento sobre exatamente o quê Chauí atacava provocou celeuma por toda a rede. O fato é que depois do lamentável fato ocorrido na inauguração da Copa de 2014 – quando a área VIP do estádio passou a ofender a presidenta com palavras de baixo calão, machistas e sexistas – temos que reconhecer: Marilena Chauí tinha razão.

O argumento da professora Chauí é bastante antigo e tem sua base num trabalho do sociólogo americano Charles Wright Mills publicado pela primeira vez em 1951 chamado “White Collar: The American Middle Classes”. Nesse trabalho, o cientista americano argumenta que ao passar a ganhar uma maior remuneração por cargos de chefia, coordenação, planejamento e etc. esse grupo de trabalhadores (“White Collars” para Mills) se sente diferenciado do simples proletariado (aqueles que vendem sua força de trabalho) criando, literalmente, toda uma cultura de alteridade. Fazendo isso, esses indivíduos – que são tão proletários como qualquer outro – passam a desenvolver padrões comportamentais, culturais e argumentativos que os distanciam dos grupos “subalternos”. Ao mesmo tempo, esses indivíduos se aproximam das mentalidades das elites comprando suas posições políticas, seus padrões de consumo, seus gostos culturais e negando sua origem econômica de fato. Desse modo, o termo “nova classe média”, tal qual usada pela professora, não é o mesmo que “classe dos que ganham mais ou menos” e tampouco se confunde com os profissionais liberais que compõem a clássica classe média.

Essa “nova classe média” tem padrões culturais e sociológicos bastante claros que estudiosos de marketing, publicidade e propaganda, sociologia e antropologia já mapearam com sucesso: ela é conservadora, materialista, paternalista, machista, religiosa (mesmo não tendo credo único), tem um senso de dever que se traduz no acúmulo de bens materiais duráveis, é avessa ao risco e dá uma importância ímpar a uma educação de caráter funcional. Educação voltada para o mercado de trabalho (medicina, engenharia, direito, arquitetura e etc.) e não uma educação de erudição ou voltada para a ciência como forma de pensamento teórica. Um traço interessante do comportamento dessa “nova classe média” é que ela não aceita que seus filhos tenham um nível cultural menor que os pais. O caminho da faculdade (o terceiro grau) como o caminho da redenção social é um culto sagrado. Mesmo que hoje saibamos que existem carreiras técnicas que trazem tanto ou maior retorno financeiro, esse culto ao bacharelado por anos inflou nossos vestibulares e transformou as universidades públicas em recintos redentores das gerações filhas da “nova classe média”. Gente empurrada a fazer faculdades para “agradar a família” e assim internalizando de fato uma diferença pedagógica crucial, como se existisse um trabalho para “fazer dinheiro e melhorar de vida” e aquilo que realmente se gosta de fazer é apenas “hobbie”.

O grande problema é que diante do processo da ditadura brasileira, em que foram suprimidas matérias como sociologia, filosofia, teatro, línguas e etc … e onde o tempo na nossa educação de ensino básico e médio (antigo primeiro e segundo graus) destinado às disciplinas de história, literatura e geografia se viu extirpado pelo aumento da matemática, química e física, se consolidou uma educação aos moldes dos interesses dessa classe média e do regime ditatorial: educação para a o mercado. Sem uma base sólida de conhecimento humanístico o conservadorismo se tornou reacionário, o machismo se tornou homofóbico, a diferenciação de espaços de trabalho se tornou preconceito de classe e de raça, a religiosidade se tornou extremista e o apego aos bens materiais tomou forma num anticomunismo anacrônico que ainda (em pleno século XXI!!) aparece em textos de “meninos maluquinhos” e “jornalistas opinativos” por alguns meios de comunicação em nosso país afora.

Ao mesmo tempo, se consolidou um dito repetido à exaustão durante o período ditatorial brasileiro: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Ávidos a suprirem a demanda dessa “classe média” os cursos superiores passaram a retirar de seus currículos disciplinas formativas como filosofia, sociologia, história e etc. Assim os cursos de Direito perderam a filosofia, a ciência política e a história trocando por “Teoria Geral do Estado” ou “História das instituições brasileiras”. Cursos de jornalismo, pasmem, não trazem em seu currículo história do Brasil como disciplinas formativas e obrigatórias. O fazer e o pensar se separaram completamente, criando uma geração inteira de pessoas com diplomas de terceiro grau que não são capazes de entender o sentido do termo “ética” ou diferenciar o Brasil do século XX da antiga URSS. Médicos se formavam sem conhecimentos sociais, engenheiros construíam casas para uma sociedade que desconheciam e amigos não mais discutiam “futebol, religião ou política” pois a vida privada, vigiada pela ditadura, separava-se claramente da vida pública e do exercício da cidadania. Quanto mais afastado da política um cidadão estivesse mais “correto” ele parecia aos olhos dessa sociedade distorcida. Se criou uma ojeriza pelas teorias, um desdém pelos livros não técnicos, rápidos e funcionais do tipo “faça você mesmo”, “guia de auto-ajuda” ou “guia politicamente incorreto” de alguma coisa …

Voltando à Chauí, ela diz que essa “nova classe média” é uma “abominação política” por não se reconhecer como NÃO parte da elite e é frequentemente cooptada por esta, sendo usada como “pelego” para manter a plebe distante. O interessante é que, como já chamava a atenção Mills, a elite não cede em nada seu poder político ou material para essa “nova classe média” é um jogo de sedução social (simbólica) e nada mais. No vídeo-viral inclusive, a filósofa clama para que essa “nova classe média” assim não se sinta, que não deixe de ser veículo de mudança sócio-histórica para virar bastião do conservadorismo político porque alcançou alguma (falsa) estabilidade econômica. No mesmo vídeo ela chama esse grupo de uma “abominação ética” uma vez que frequentemente a radicalização do conservadorismo em preconceito, do machismo em homofobia, e do anticomunismo em preconceito de classe gera violência. Violência que vemos travestida em bordões como “bandido bom é bandido morto” e que está nos levando de volta à Idade Média quando lincham pessoas simplesmente pela acusação de bruxaria. Para terminar, Chauí ainda acusa esse grupo de ser uma “abominação cognitiva”, pois, segundo ela, essa classe média abandonou o conhecimento formativo (não voltado ao mercado). Nossas publicações de literatura minguam ano a ano e o teatro-reflexão é confinado a uma parcela significativamente pequena da população.

Nossas orquestras dependem de verbas governamentais, pois a música se não mercantilizada não sobrevive. Gasta-se mil reais em celulares último tipo, mas um livro ou um ingresso a uma peça de teatro no valor de oitenta reais é considerado caro. É uma “classe média” que acredita que seu conhecimento funcional se basta em si mesmo, que desconhece as fundações daquilo que compra culturalmente, que não conhece a sociedade em que vive, que não tem capacidade de crítica e não sabe seu lugar no tempo. Aqui a mídia tão bem se serve. Dizendo o que é certo e o que é errado. O que deve ou não ser consumido. Um vestido que apareça em novela da Globo esgota-se na loja quase que imediatamente. E um hoax falso na rede se alastra como rastilho de pólvora.

Críticas à parte, depois do ocorrido na abertura da Copa, como não dar razão à Marilena Chauí? Abominações políticas, éticas e cognitivas que podem gastar três ou quatro salários mínimos em apenas uma bela tarde de futebol.

*Fernando Horta, historiador, professor, doutorando em Relações Internacionais UNB.

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