De todas as artes existentes, talvez a música seja a
que mais toca a alma humana. Por retratar dilemas sentimentais e sociais, ela
emociona, choca, nos faz pensar na vida e, em alguns casos, até nos aliena. A partir
deste último ponto, poderíamos mencionar diversos estilos musicais, atuais e de
outrora, que foram responsáveis pela alienação de grande parte da sociedade
brasileira. A rigor, no entanto, é importante destacarmos um gênero musical que
tem ganhado extrema visibilidade no país atualmente, o funk ostentação. Nele,
pessoas de comunidades carentes assumem o papel de poderosos endinheirados e
propagam em suas letras uma vida bem distinta da vivida por alguns deles mesmos
fora das luzes da ribalta. Com isso, uma perigosa mensagem é perpassada por
esses artistas que, talvez, inconscientes e inofensivamente estejam propagando
um modelo de vida, do qual ostentar, a todo custo, é a palavra de ordem.
Segundo a definição dicionarizada, a palavra ostentação
significa “ação ou efeito de ostentar,
afetação na ação de exibir riquezas ou dotes”. Numa sociedade onde a
pobreza ainda não foi erradicada nem minimizada, soa contraditório encontrar
indivíduos que esbanjem bens, enquanto outros vivem à míngua. Mais incoerente
ainda é quando pessoas que se enquadram nos grupos mais miseráveis da escala
social fazem de tudo para ostentar benesses superficiais, como se quisessem
incluir-se em um mundo onde o ter é mais importante do que qualquer coisa. É o
que acontece hoje com o chamado funk ostentação. Nele, os Mcs, como são conhecidos,
incorporam os personagens dos quais o poder brota do exibicionismo monetário,
na tentativa de inserir-se na atmosfera daqueles que na sociedade só tem valor
se tiverem posses. Isso acontece, porque, infelizmente numa nação apartada pela
pobreza, muitos indivíduos procuram se refugiar no ilusório mundo onde o sonho de
ser rico passa a ser realidade por alguns instantes.
Casarões, carros importados, joias, bebidas, mulheres
bonitas e, claro, muito dinheiro, é o que enfatiza as letras e clipes desse
gênero musical. Uma mega produção é criada para retratar o onirismo desses
cantores, com direito até da participação de famosos. Entretanto, falta em
algumas letras à ideia de como um jovem, que vive à margem da sociedade, irá
conquistar tantas riquezas da noite para o dia. Fora do subjetivismo musical,
sabemos que para enriquecer num país como o nosso é preciso nascer em berço de
ouro, herdar milagrosamente alguma herança, ganhar na mega sena, virar
celebridade instantaneamente, fazer parte da política corrupta do país, jogar
futebol ou cometer atos ilícitos. De todos estes, talvez seja o último que leve
muitos adolescentes a esbanjar o que não podem, sobretudo através do submundo
do crime, controlados nas favelas pelas armas e pelas drogas.
Cercados pela pobreza e, muitas vezes sem perspectiva
de vida, muitos jovens se encantam com esse universo de faz de conta da
ostentação e acabam fazendo de tudo para se incluir nele. Evidentemente que nem
todos ingressam na marginalidade para mudarem de vida. Muitos são os casos em
que os indivíduos, através da música como os Mcs, conseguem ascensão social de
forma honesta. Agora, o público, incipiente e facilmente manipulado, nem sempre
absorve de forma correta a mensagem das letras do funk que tem como foco
ostentar um modelo de vida discrepante do grande público. Como explicar, por
exemplo, a uma criança de oito ou dez anos de idade, fã desse gênero musical e
moradora das grandes favelas do país, que ostentar só é válido se, e unicamente
se, o indivíduo for capaz de adquirir suas riquezas através de muito suor? Além
disso, como, a partir do funk atual, minimizar a marginalização desses infantes
que, vivendo hipnotizados nesta sociedade de consumo, não veem outra alternativa,
a não ser melhorar de vida, custe o que custar?
Essas questões parecem ter sido tangenciadas por alguns
Mcs, preocupados apenas em retratar seus sucessos pessoal e profissional
através de suas músicas. Muitos deles nem sequer vivem uma vida de luxo. Ao
contrário disso, boa parte ainda não saiu da comunidade onde mora e sobrevive
dos shows que fazem nos famosos bailes funks. Nessa Neverland periférica, é
compreensível a priori, a atitude desses rapazes. Como não sonhar com um mundo
de luxo, onde não haja mais fome, miséria nem violência. Um lugar maravilhoso
com fartura em alimento, casas confortáveis, um carro e, se possível dinheiro
extra para gastar. Uma favela imaginária, recriada a partir do desejo desses
indivíduos que nasceram num país onde ser favelado é ser desfavorecido de todos
os direitos mais básicos da cidadania.
É por isso que, a posteriori, fica fácil entender o
fenômeno do rolezinho que causou, e ainda causa, polêmica no Brasil. Nada
melhor do que o shopping, epicentro do consumismo e, por isso, da ostentação,
ser o palco para os protagonistas das regiões mais pobres do país estrelarem. Nele,
os rolezinhos invadiram e foram marginalizados, pois não houve um entendimento
por parte da sociedade sobre o porquê desses jovens, repentinamente, terem
invadido um espaço destinado a outras classes sociais. A multidão de renegados
representava a revolta de um grupo social cansado de ser esquecido pela outra
grande metade da sociedade acostumada a tratar os favelados como marginais. Ao mesmo
tempo, no contexto musical, não podemos esquecer que na cultura do funk
ostentação, estes jovens podem tudo para realizar seus desejos de consumo,
inclusive invadir espaços públicos como o shopping, para deleite deles e
desesperos dos presentes.
Os perigos do funk ostentação residem, portanto, na
ausência de explicação das letras musicais, das quais o ter está nitidamente
acima do ser. Também é perigoso, em qualquer escala social, difundir o
consumismo a todo custo sem explicar como o indivíduo deverá conseguir tanto
dinheiro para viver uma vida regrada a luxo. Sabemos que a música quer passar
uma mensagem e, no caso do funk ostentação, a palavra de ordem é superação. E isso
é valido, pois não há nada mais significativo do que buscar alternativas para
mudar de vida. Porém, o hedonismo dessas canções não pode ser tomado como regra
por uma sociedade ainda cerceada pela pobreza e controlada pelo crime
organizado. O prazer, de que todos buscam e tem direito, deve vir com muito
trabalho e não do “nada”. Se isso não ficar bem marcado em nossas mentes, muito
em breve veremos indivíduos diversos fazendo de tudo para ostentar o que não
têm. Se é que isso já não esteja acontecendo.
Simplesmente perfeita sua reflexão ... Parabéns ...
ResponderExcluirQue texto maravilhoso!!!
ResponderExcluirquerido, primeiro o seu texto é simplesmente, retrata oque penso sem tirar nem por.Pois ao ouvir, as musicas do funk ostentação, sempre me pergunto, mas de onde vem esse dinheiro todo, para eles poderem esbanjar, já que em suas letras nada fala da forma como esse dinheiro é conquistado. também concordo com você,pois tenho a mesma sensação que esse tipo de musica ajuda o aumento da violência nas comunidades carentes do nosso ,país já tão desigual
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