23 dezembro 2013

Bairro da liberdade


Dois garotos caminham de mãos dadas na calçada da avenida mais movimentada da Boa Vista. A cena ainda é pouco comum em outras partes do Recife, mas tornou-se paisagem cotidiana nessa área a partir dos anos 1970, quando o bairro virou epicentro gay. “Homossexuais que assumiam uma postura política sobre sua sexualidade, ainda nos anos da ditadura militar, escolheram a área central da cidade como um território de liberdade”, diz o professor de história Sandro Silva, autor da dissertação de mestrado Quando ser gay era uma novidade: aspectos da homossexualidade masculina na cidade do Recife na década de 1970 (UFRPE). A programação é diária, extensa e diversa, incluindo bares, boates, saunas, cinemas e o shopping que leva o nome do bairro e funciona como ponto de encontro.
Às 16h, várias mesas da praça de alimentação são ocupadas por casais de homens. Diego Ferreira, 19 anos, saiu do trabalho para se encontrar com um paquera. “A gente se conheceu aqui mesmo, há um mês”. Diego frequenta o bairro desde os 16 anos e já demonstra uma certa nostalgia. “Era massa quando tinha a Fun Fashion (bar que também batizou um movimento que tomava toda a Rua do Giriquiti, atrás do Shopping Boa Vista, juntando gays de diferentes tribos, de góticos a emos e malhadões). Toda sexta-feira eu estava lá”. O som — muito alto, que sempre gerava reclamações dos vizinhos — vinha dos carros. A bebida era vinho Carreteiro e cerveja. A festa, quase um carnaval, acabou há cerca de dois anos, quando migrou para a Praça do Arsenal, no Bairro do Recife, aos domingos.



A gerente de loja Karla Diniz, 26 anos, é paraibana de Campina Grande e não chegou a presenciar essas farras porque começou a trabalhar no shopping há um mês. Acabou há pouco uma união de cinco anos com outra garota. Ela costumava frequentar bares em Boa Viagem, perto de casa, mas agora que está solteira já conheceu a maioria dos points perto do trabalho. Conchittas, bar com alta frequência de meninas, é uma das paradas obrigatórias. O público ocupa uma calçada da Rua Manoel Borba, na esquina com a Rua das Ninfas. Basta atravessar a via para ir ao Santo Bar, extensão mais tranquila da Boate Metrópole. Karla também costuma frequentar o Pit Hausen, na Rua do Giriquiti com a Rua José de Alencar. A paquera é sempre bem-sucedida. “Tanto que nem estou mais na fossa”, ri. Na verdade, ela nem precisaria sair do trabalho para conquistar alguém. “Já aconteceu várias vezes de eu estar na loja e chegar uma menina querendo me conhecer, perguntando se sou comprometida”.
Boa parte de quem circula pelo shopping vai ao Pit Hausen, o bar pequeno, com mesas espalhadas pela via, fundado há mais de 20 anos e hoje comandado por Raquel e Chico Caldas. “98% dos nossos clientes são gays”, diz a dona, enquanto cumprimenta os amigos pelos vocativos de “senhora” e “bicha”. Raquel veio de Sertânia para estudar na capital. Como a maioria dos colegas, morava no centro, e vivia intensamente a rotina da Boa Vista.



Raquel fez muitos amigos e, com o pessoal da vizinhança, frequentava o bar, até o dia em que o antigo dono, Gaúcho, que ia voltar para o Sul, decidiu repassar o ponto. “Antes, ninguém podia se abraçar nem se beijar. A primeira coisa que fiz foi liberar geral o beijo na boca”.
Pouco mais à frente, na Rua do Progresso, a sauna Progresso Club é exclusiva para homens, que passeiam pelos ambientes apenas de toalhas. Às 15h, começa o movimento. Do lado de fora, a fachada branca, com varanda gradeada e árvores em volta, não deixa ninguém desconfiar do que se trata. É possível ver apenas alguns senhores na recepção. Entre as atrações, gogo boys, shows, música eletrônica, bar e quartinhos para encontros.
Do outro lado da Avenida Conde da Boa Vista, na estreita Corredor do Bispo, uma travesti imensa, montada num salto 15 e com cabelos bem longos, desfila a calça branca colada e o biquíni cortininha. Entre uma cerveja e outra, é assediada pelos homens que estão em frente à boate MKB (sigla para Meu Kaso Bar). Na boate, às sextas-feiras, há concurso de performances de travestis no palco principal. Na porta da casa, Eva, de peruca morena e vestidinho preto nada básico, recepciona a clientela distribuindo camisinhas. Algumas pessoas não aceitam. “Ai meu deus, tu não usa?”, pergunta Eva, reforçando o discurso de sexo seguro adotado pela maioria dos estabelecimentos voltados para os gays no bairro.
escola de sereias
Nas quartas-feiras, as noites são de karaokê no Santo Bar, embalado por músicas pop. Imagens de santos pintadas nas paredes e até uma fotografia do papa Francisco presenciam a animação na pista de dança, repleta de gente sem vergonha para cantar ou dançar. Ao som da clássica Take On Me, da banda A-Ha, lei nas discotecas que relembram os anos 1980, uma dupla de meninos arrasa nos agudos, enquanto as meninas vibram ao redor.
Na área externa, sentada na mesa, só prestando atenção nas músicas, está Latipha Silvia Castilho de Biasi Montarroyos. Quem olha para o rapaz de boné virado para trás, bermuda e camiseta não imagina um nome tão digno de duquesa. Acontece que Latipha fica “na caixa”, brinca, e só dá a graça da sua presença nos dias de balada. Sua transformação para diva da noite inclui vestido rendado, pérolas, saltos altíssimos, peruca loira e lentes de contato azuis, que deixam o rapaz irreconhecível. Durante a semana, ele deixa os pelos da barba e do corpo crescerem e esconde as roupas e acessórios para produção.  Fica tudo guardado no quarto de uma amiga. “Minha mãe só sabe que eu sou gay, não que eu sou transformista”.
No Facebook, assumiu a identidade da travesti. Todas as fotos são de diva sensual, que cai na farra com tudo a que tem direito, e as postagens seguem o mesmo tom. Sempre no feminino. Nunca quis fazer cirurgia para mudança de sexo e não toma hormônios femininos, porque acha que não adianta mais. “Se eu quisesse ter forma de mulher, tinha que ter começado a tomar aos 13 anos. Para ficar com cintura, afilada. Conheço muita gente que fez”. Na balada, o lugar preferido é o fumódromo, onde passa horas ouvindo casos de vida e dando conselhos. Cada um com um conflito, uma insegurança, um medo. “Essa vida não é fácil. Muita gente tem dúvidas sobre a própria sexualidade, precisa se esconder da família ou depende de algum cara pra viver. É muito comum um gay que vive às custas de alguém, numa situação de completa submissão sexual, afetiva e financeira”, conta. A própria Latipha passou por uma situação parecida quando se mudou para o Rio de Janeiro para viver com um namorado. Diz que apanhava de ficar ferida, marcada, vivia sob violência psicológica e física. “Um amigo me ajudou a comprar uma passagem e a fugir de lá, voltei para cá escondida”.



Toda sexta-feira tem concurso de travestis na MKB

Eva, a recepcionista da boate MKB, também gosta de se travestir, mas com um tom bem profissional. É mais um ator, que se monta na noite para fazer shows de bate-cabelo. Trabalhava em outra boate gay quando foi convidada pelo proprietário da MKB para se juntar à equipe, na época em que a casa foi inaugurada, em 2000. Para fazer a divulgação das festas, ficava nua, só com uma tanga fio dental, distribuindo panfletos no Recife Antigo.
De dia, Eva se chama Fábio, e passeia de bicicleta para cima e para baixo, vestido de homem. “Fico tão discreto que não dá nem pra imaginar que eu sou gay”, ri. Só trabalha às sextas, sábados e domingos. Durante a semana, resolve detalhes de figurino, performance e programação da boate. Na casa onde mora com o namorado, na Rua José de Alencar, na Boa Vista, empilha mais de dez malas só com roupas de travesti. Tem de tudo: pedrarias, brilhos, rendas, bordados. Reforma as próprias roupas, criando várias personagens. Expostas sobre a cama, se enfileiram dezenas de perucas, das mais diversas cores,  incluindo fios arco-íris. Uma para cada estado de espírito.
te encontro na pista
Na Metrópole, na Rua das Ninfas, o clima esquenta. A pista de dança do primeiro andar ferve ao som de brega e pagode. Todos requebram ao som de “encaixa, encaixa, remexe e agacha”, fazendo a coreô da suingueira. “Eles se olham e já sentem se rola interesse ou não. Não tem muito jogo de conquista, é mais pegação mesmo”, diz a gerente da boate, Tereza Montarroyos, que trabalha na casa há 12 anos.  Para quem quer mais privacidade, o destino é o dark room (quarto escuro), onde rola de tudo.



No Pit Hausen, há algumas regras. “Já teve casos de gente transando no banheiro. Se não deixamos muito claro o que é permitido, rolam coisas que não são legais. Fico de olho, para o pessoal não extrapolar”, diz Raquel Caldas. O amigo Cláudio Coutinho, de 48 anos, que trabalha numa empresa de turismo, frequenta o Pit Hausen quase todos os dias. É assíduo na Boa Vista desde que era aluno do Colégio Militar do Recife. Quando era mais novo, os olhares controladores na rua impediam a livre expressão. “Ainda assim, era nessa parte da cidade que ficavam os lugares onde podíamos assumir a sexualidade”, conta. “A boate Fefé era fina, por trás do Cine São Luiz. Ao lado da Dorinha, mais simples, onde todo mundo se soltava”.
Ele lembra de várias outras opções, como a lendária Misty, que funcionou de 1979 até 1993. A primeira versão ficava na Rua do Riachuelo.  Depois, a boate se instalou onde hoje fica a Metrópole. O Da Zi Bao, na Rua do Progresso, fazia sucesso por conta do bar no quintal, com árvores e local para namorar. O Mangueirão, perto da Unicap, tinha um clima vespertino, tipo matinê. E muita gente ainda recorda da boate Dalí, em cima do Pit Hausen, e do Poção Mágica, na Rua José de Alencar.  “A gente catava aqui, catava ali, não tinha isso de ficar a noite inteira no mesmo lugar”, lembra Cláudio.



Cláudio Coutinho é frequentador assíduo da Boa Vista. Adora o clima do bairro e não dispensa uma cerveja no Pit Hausen

Apesar da história gay do Mustang — o bar era uma referência neste cenário até 2005—, os donos do bar, fundado em 1969, preferem não associar sua marca a esse público. Uma das proprietárias, Vanessa Souza, disse que o local, na Avenida Conde da Boa Vista, nunca ofereceu atrações específicas para homossexuais. “E se a gente recebia muitos gays, não fazia muita diferença para o bar, porque ninguém era assumido. Eram frequentadores como qualquer outro”, afirmou. “Estamos criando uma atmosfera familiar. Colocamos ar-condicionado e parquinho”. Em 2005, em frente ao bar, cerca de 200 pessoas se beijaram em forma de protesto: um casal de lésbicas havia sido expulso do Mustang por estar se beijando. Na época, um dos donos do bar, Wellington Carlos, pai de Vanessa, informou que elas estavam constrangendo os clientes e que, em mais de 30 anos de bar, nunca havia existido situação parecida. Desde então, a relação entre o bar e o público gay anda abalada.

Visto na: Aurora

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