Amanheceu. São 5:20 da manhã. Mais uma vez sou acordado pelo som atordoante do meu despertador, no toque repetitivo da melodia escolhida por mim. Olho para ele e tento fingir que ainda não está na hora de levantar. Resisto o máximo que posso, mas o aparelho insiste em me retirar do meu merecido relaxamento. Levanto-me, então, contra vontade, e sinto o peso do meu sono atraindo o meu corpo para a cama novamente. Vou até ao banheiro e tento desesperadamente reavivar as minhas energias com um banho de água fria, um choque límpido natural, uma última tentativa de acordar de fato. Passado esse momento, olho para o relógio e só tenho meia hora para tomar o meu café da manhã, trocar de roupa e pegar um coletivo em direção ao trabalho. Corro contra o tempo para cumprir cada etapa, e ainda chegar bem no trabalho.
Nessa jornada, enfrento o primeiro obstáculo, como muitos outros trabalhadores desse país, pegar um ônibus. Na parada desse coletivo, pessoas na mesma situação que a minha, lutam para chegar ao seu local de trabalho, num frenesi alucinante do qual muitas delas esquecem o conceito da palavra civilidade e acabam guerriando entre si para garantir um espaço, no já lotado transporte. Numa viagem desconfortável, vou torcendo para que no caminho eu não seja surpreendido por algum engarrrafamento que possa prejudicar a minha chegada ao meu local de trabalho. Mesmo com o trânsito lento, geralmente consigo chegar na hora certa. Desço do ônibus e não ando muito até chegar ao meu destino. Dobro uma esquina, caminho alguns metros e enfim chego na escola da qual trabalho.
Esqueci de dizer que sou professor. Desde já peço desculpas por isso. Trabalho numa escola pública pela manhã, a tarde e a noite dou aulas em alguns cursinhos para complementar a renda. Isso mesmo, “cursinhos”. Ensino em três deles durante a semana, pois só o dinheiro que é pago pelo governo não é o suficiente para levar a vida medíocre que levo. Ensino Língua Portuguesa, Literatura e Redação, sendo esta última uma das minhas maiores paixões, por acreditar na força ideológica que o texto exerce nas nossas vidas, como instrumento de ratificação e, sobretudo retificação da realidade. Me formei há pouco tempo, mas ensino desde o primeiro período da faculdade, pois sabia que pegar prática no ofício seria cabal para a minha formação enquanto profissional. Até hoje muitas pessoas me perguntam por quê eu escolhi essa profissão. Pensei muito tempo numa resposta para essa indagação, porém, por alguma razão que eu não sabia explicar, sempre evitava respondê-la. Acho que isso é o reflexo do descaso que a nossa profissão sofre, ou talvez pela falta de incentivo governamental, ou ainda pela ausência de credibilidade ofertada pelos alunos, pais e profissionais da área. Acho que um pouco de tudo isso. Não sei ainda.
Tenho alunos de várias idades e de várias classes sociais. É impressionante como nós, professores, vemos o raio x da sociedade através da sala de aula. Nos confrontamos com os olhos tristes das crianças carentes, com o curiosidade de alguns poucos alunos que, por alguma razão, despertam bem cedo a sede pelo conhecimento. Entretanto, temos outros perfis, como os de alunos que já apresentam algum tipo de comportamento violento, baseado em alguma forma de preconceito que leva a discriminação e a formação de grupos distintos. Além, é claro, da grande maioria de estudantes que, devido a inúmeros fatores, já trazem para a escola as marcas da dificuldade do ensino, estas sendo ampliandas pela má qualidade da rede pública de ensino vigente neste país. Na rede particular, muitos dessses atos se repetem. A diferença é que lá os estudantes têm maiores condições estruturais e a participação massiça dos pais. No entanto, ambas, tanto as escolas públicas quanto as particulares e os cursinhos, nutrem algo em comum, a desvalorização do professor, esquecendo da sua importância para a formação profissional e intelectual da sociedade.
Após uma longa semana entre escola e cursinho, alunos indisciplinados, notas para fechar, cadernetas para preencher, chega o tão esperado final de semana. Para muitos, o momento perfeito para descansar e recarregar as baterias para a semana que se inicia, mas não para mim. Tenho que corrigir algumas redações, corrigir também algumas provas que ficaram pendentes e ainda preparar as aulas da próxima semana. Tudo isso sem remuneração adicional ou qualquer crédito extra, nem que seja um elogio, um cumprimento discreto. Têm momentos que eu sinto que a minha mente vai explodir. Em outras ocasiões fico deprimido e perguntando para mim mesmo por quê a vida me encaminhou para esse tipo de serviço. Eu podia ser bombeiro, ou policial, e estar ai salvando vidas, como meu pai tanto queria. Ou, quem sabe, ser advogado e lutar pelo direito das pessoas, como a minha mãe fazia questão de enfatizar. Poderia ser médico, astronauta, químico industrial, sei lá, qualquer coisa, mas no fim escolhi ser professor.
Mesmo com o dedicação exacerbada que a profissão exige, com a falta de reconhecimento do governo e da sociedade, com os baixos salários e com as precárias condições de trabalho. Mesmo sabendo que levarei uma vida medíocre e com as minimas chances de ascender socialmente. Mesmo assim, amo a minha profissão. Isso mesmo. Descobri que ela é o portal que leva muitas pessoas a uma dimensão segura e transformadora. Aprendi que o meu papel aqui na terra é poder dar condições para que essas pessoas sejam felizes, aprendendo o necessário para melhorarem de vida. Compreendi que para isso eu terei que fazer inúmeros sacrificios, pois, como tudo na vida, alguém tem que perder para que o outro ganhe. Aceitei a tarefa de perpetuar os ensinamentos que aprendi para os olhos questionadores dos meus alunos, como um legado que passa de pai para filho, de geração a geração. Isso tudo respondi o por quê da escolha dessa profissão. Não é simplesmente repassar conhecimento, mas sim preparar o indivíduo para a vida, para um vida digna e de qualidade.
Perdoe se falei demais. É que quase nunca tenho tempo de escrever alguma coisa sobre mim ou sobre o que penso, tarefa da qual eu sou apaixonado. Estou em casa, em frente ao computador e resolvi deixar as obrigações um pouco de lado e escrever um pouco sobre a minha rotina. Contar um pouco sobre a dura vida de um professor brasileiro que luta para ser reconhecido e, como muita gente, melhorar a própria qualidade de vida. Tentei também representar a realidade de muitos que, como eu, passam pela mesma situação. Mas, infelizmente tenho que ir. Já passam da meia-noite e amanhã começa tudo outra vez.
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ResponderExcluirUfa! que rotina..
ResponderExcluirAdmiro quem leciona... Era louco pra ser professor...
São mestres que merecem todo nosso respeito...
Forte abraço!
Escreva outros posts sobre vc.Adoro saber da vida dos blogueiros.
ResponderExcluirBeijos,querido.