Eu
nunca fora antes à boca de cena. Era o segundo bis. Fomos para lhe estender as
mãos como quem pega de Ariadne o fio. Fomos para sentir o perfume do vento.
Eu
começo do fim para adiantar que o instrumento da voz nos alcançou. “Canções e
Momentos”, mais que prólogo e epílogo, é presságio. “Sangrando” também o é
(quando eu soltar a minha voz, por favor entenda: é apenas o meu jeito de viver
o que é amar). As metacanções não falam só de arte, mas principalmente da vida
de quem se lança nesta aventura aqui – ai de quem não te canta, oh vida. E
temos a chave para a decifração de mais um espetáculo emblemático de Maria
Bethânia. Neste, a força está nas palavras tão bem amarradas no roteiro
assinado em parceria com Fauzi Arap.
“Salmo”,
essa quase oração que a intérprete já trouxera à memória do Brasil no disco
Oásis..., retorna. É uma canção que quase não está no espetáculo, mas como
está! Seus dois excertos, mencionados ao começo e ao final, são pontas do fio
narrativo do show e, mais, amarram arte e vida, ou, se preferirmos, a realidade
da intérprete à ficção de suas personagens. Afinal, dizer “Não quero ter
calmaria / Eu quero ser tempestade / Eu quero ser ventania” é anunciar o jorro
das cartas ao vento que serão lançadas na sequência e reiterar a essência eólica
da Iansã que se confessa inteira no palco: “o meu olhar tem a força do raio /
que vem de dentro do meu coração”. É Maria Bethânia, mas não é.
Começa
o delicioso jogo das personas que a cantoratriz exibe em cada
show. É ela (e não é) quem traz de volta um dos textos mais intensos de sua
carreira. Como é forte vê-la materializar os olhos de ironias e cansaços que
nunca vão por caminhos já traçados. A ayabá redemoinha aos ventos, levanta a
sua loucura como um facho que arde. Grita “não enche”. E vai incendiar a
fogueira da personagem que sofre pelo amor perdido. Não é fortuito
dramaturgicamente que ela (já falo da personagem) confesse a quem lhe feriu:
“mais breve que o tempo passa, vem num galope o meu perdão”. Mas a ventania não
cessa, faz barulhos para acordar orgulhos (geme, como geme o arvoredo).
Transforma-se em leve brisa descendo os penhascos das colinas.
A
interpretação não mente. Maria Bethânia transforma-se em outras, ocupa porções
diversas do palco, marcações diametralmente opostas na arena, como quem envia
com mãos expressivas cartas de amor, dela para si mesma, cindida entre o
parceiro que se lanha no sofrimento e o outro que se deleita com o sofrer. Tudo
está minuciosamente organizado.
O
espetáculo é pancada: altos e baixos sem perdão. E essa estrutura justifica um
roteiro que se faz como um gráfico sinuoso: ora percussões efusivas, ora pianos
chorosos; ora o grito, ora o sussurro; ora a vingança, ora a confissão
apaixonada. Um roteiro que escancara o ser camaleônico de uma artista que pode
ser todas que quiser: a metamorfose é instantânea, como ocorre às grandes damas
do teatro. Trata-se de um diálogo epistolar. São cartas, meus caros. De amor.
Todas ridículas, tal qual as criaturas que nunca escreveram cartas de
amor. As missivas cruzam o palco, levam mensagens. Nunca trazem o
recado esperado.
As
personagens que as enviam são identificáveis por sutis signos cênicos ou pelo
próprio texto cancional. São dois que sentem de forma diversa o amor. Um
vacilante, que repousa e não ousa viver, entre o medo e a ansiedade. O outro, o
que se atira na loucura, no fogo da fantasia. É ele que canta a “Fera Ferida”
irônica, leve como sua essência de vendaval constante que despetala flores que
existiram, mas que não resistiram. É este que sai incólume e é conduzido para o
segundo ato à medida em que seus fantasmas são levados para longe. De
que serve voltar, se a casa está vazia?
E o
primeiro ato, todo introspectivo, ganha o mundo na segunda parte do show. Se
antes as lâmpadas de Bia Lessa guardam interiores, transformam-se agora na
amplitude do céu. Começa uma viagem – para o Nordeste da pisada do maracatu,
para as raízes dos fevereiros de Santo Amaro e (por que não?) para um passado
romântico de encantos e luas brancas. A personagem amadurece nostálgica,
relembra o seu pedacinho de terra. A vida, chega um tempo, é só lembranças. E o
coração amansa em busca de outros corações crescidos. Hora de encontrar alguém
para viver em estado de poesia. A canção de Chico César é toda metáfora.
Reconcilia a dimensão geográfica do viajante que parte rumo ao sertão profundo
com a dimensão sentimental do indivíduo que deixa a vida de ciganias para
embrenhar-se nos sertões de um amor (nunca esquecer que o sertão é dentro da
gente).
Ela faz
do seu próprio itinerário um lar. Na maturidade, outras moradas são possíveis e
passamos a entender que nossa casa é onde a gente está. Seja na Marambaia, seja
no Recôncavo, seja em Fès. O teto estrelado também tem luar e estrelas
cadentes.
Após
todos os périplos, Bethânia chega à terra-natal. Ela aconchega-se no próprio
peito (pulsante como o samba de roda). A reverência com a mão direita sobre o
coração na menção a Dona Canô não é uma homenagem isolada. Todos os versos
deste trecho parecem ser uma celebração saudosa do amor, da festa e da devoção
da Eterna Matriarca. A costura de sambas é das maiores pérolas de seus últimos
roteiros. A intérprete usa de matéria-prima popular para fazer alta poesia,
alta dramaturgia – não por ser “elevada”, mas por falar alto aos sentimentos
mais simples e verdadeiros.
Em tudo
a voz de sua mãe: a apoteose guarda o legado dela. Para fazer um samba com
beleza é preciso um bocado de tristeza, disso sabem os mais sábios. A menina
foi embora, a menina foi embora, foi embora e nos deixou. Mas os pássaros
precisam continuar o seu canto e me fazem lembrar uma frase de Cioran na
epígrafe de um lindo livro de Lucia Castello Branco: “Em um mundo sem
melancolia, os rouxinóis se poriam a arrotar”.
O
espetáculo segue para o fim falando de solidão. Cruzam-se as fronteiras da
ficção e, num jogo teatral, somos reconduzidos aos momentos iniciais, às
antigas histórias de amor de uma personagem que já arranhou toda a garganta
atrás de alguma paz. No roteiro, o “Velho Francisco” é central. Faz pensar em
tudo que a vida vem e nos leva – de bangalôs a palácios. Mas Bethânia também
nos faz lembrar tudo o que a vida nos deixa – o respeito, a reverência, a
fortaleza, a fé imensa. Aí a mensagem brota de seu engenho de escritora: ser
como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta. A “Carta
de Amor” (o texto-canção) é uma ode à integridade do homem e ao mistério do
sagrado, um acinte à debilidade moral, pelas mãos de uma mulher madura e sábia.
Uma
mulher que é redemoinho. Que liga a ancestralidade da poesia ao futuro da
ópera. Que canta a vida - e faz da vida e do canto profissão. O epílogo liga-se
ao prólogo como a chamar a atenção para essa matéria sublime e essencial que se
mantém intacta ao longo da travessia. Eis o sentimento inexplicável (o mesmo na
plateia e na voz) que levamos para o labirinto de existir quando saímos do
teatro agarrados ao fio de Ariadne.
Renato Forin Jr.
Visto no blog: Maria Bethânia Re(verso)
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