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10 abril 2018



É indescritível a sensação de estar desencaixado do resto do mundo. Das tantas minorias que partilham desse sentimento, sem dúvidas nós, o público LBGT, somos os que o sente em plena profundidade. Isto porque, desde sempre somos deslocados da sociedade, ignorados por um sistema religioso/cultural/político/social responsável por não encarar nossas demandas com a mesma empatia dos demais grupos sociais. Ao invés disso, somos assediados pela violência LGBTfóbica durante toda a infância e adolescência; nos espaços onde a inclusão, respeito e legitimação deveriam ser os protagonistas: em casa e na escola. Sem direito a pertencer a nenhum lugar, somos violentados deliberadamente, nossas necessidades são negligenciadas, patologizam nosso comportamento como doentio e criminalizam nossa existência. O agravo em meio ao assombro dessa realidade se dá quando nos falta representatividade, deixando-nos mais vulneráveis do que já somos. Felizmente, ícones LGBT’s têm se insurgido contra este panorama, trazendo mais que palavras de conforto, mas a esperança de que é possível mudar esse panorama. Pabllo Vittar é uma dessas representantes.

É inegável o peso de ter uma Drag Queen/Cantora na sociedade aplaudida por milhões de pessoas, muitas delas heterossexuais. Significa um avanço tanto para o cenário musical quanto para a visibilidade LGBT no Brasil. Só em tê-la no palco maquiada, de salto alto, dando pinta, e sendo bem recebida por isso, já seria o bastante. É uma afronta emergencial. Porém, muitos não enxergam politicidade em certos fenômenos culturais facilmente, ainda mais quando os símbolos em destaque foram, e são, marginalizados. Pabllo Vittar, talvez sem ciência disso, estampa claramente a luta de milhões de LGBT’s brasileiros apenas em estar montado no palco. É fato que esta Drag não cantava músicas de cunho explicitamente político, mas sua presença, à revelia de tudo, já é um ato político. Ela é a própria bandeira desse movimento, colorindo o Brasil com uma onda de tolerância nunca antes vista. Como qualquer artista em evidência, a Pabllo foi hostilizada por sua voz, analisada por muitos como feia, desafinada. Quem se agarra a isso de fato não compreende a dimensão de sua existência. Tais critérios se tornam irrelevantes quando analisamos o todo que está em jogo.

Indestrutível, música lançada hoje por ela, é a confirmação daquilo que a Pabllo já vinha fazendo desde o início: militar em prol do público LGBT, mas sem alarde. Deixem os embates desnecessários para os intolerantes e resistentes ao novo. Ela foi minando nossas barreiras com hits dançantes, deixando-nos viciados, ao passo que ignorávamos cada vez mais quem estava por trás daquelas letras: uma DRAG QUEEN! Sorrateiramente, funcionou. O país e o mundo conhecem e estão apaixonados por ela. Agora foi preciso politizar sua carreira. Mostrar para aos mais contumazes que não se trata apenas de mero entretenimento. É militância, denúncia, enfrentamento, sobrevivência, perseverança. O clipe de Indestrutível é um misto disso, ao retratar o bullying homofóbico vivido por milhões de jovens no Brasil, cuja impunidade segue rente até os crimes de motivação de ódio semelhantes, ou piores, aquele cometido contra a transexual Dandara há pouco mais de um ano. Trata-se do fortalecimento de uma geração através da arte, indivíduos tocados pelo discurso de empatia, o qual resvalará na formação de novos cidadãos mais tolerantes.

A música, o clipe, a cantora, marcam história também por trazerem à luz a indiferença à realidade LGBT, a qual não se limita ao bullying. Por eras os costumes sociais, fincados numa visão distorcida de fé, privaram nossos direitos. Nossa forma de amar não encontrava espaço nos grandes romances vendidos pelo mundo. A TV/mídia brasileira tenta há anos representar fidedignamente nossas lutas, mas só consegue nos estereotipar, ora ridicularizando nosso grupo, ora padronizando nosso comportamento. O beijo gay é uma prova da adjetivação dos nossos sentimentos, assim como todas as tentativas cômicas de nos caricaturar para atrair a audiência. O inverso, porém, tardou a acontecer: a politização das nossas lutas, reivindicações simples que se resumiam apenas em uma palavra: respeito. Conseguimos nos casar, adotar crianças, andar nas ruas de mãos dadas, o que já são grandes conquistas. Todavia, falta a naturalização da nossa sexualidade. Carece discutir com mais humanidade sobre essa assunto, sem invocar o divino para intervir em questões de cunho meramente social.

Por isso nos tornamos indestrutíveis. Ao longo da história, inúmeras foram as tentativas de reverter a nossa essência: de exorcismos, a experimentos científicos, passando por práticas de eletrochoque, internações em manicômios e cura gay, todos indiscutivelmente falharam. Fruto dessa tradição medieval, muitos lares infligem maus-tratos aos seus filhos quando descobrem suas preferências distintas da “normalidade”. Sem diálogo, esses jovens são espancados, humilhados. Quando são travestis/transexuais, o público mais vulnerário entre os LGBT’s, o destino é pior: a rua. Nas escolas, uma extensão de todas essas violências irrompe os muros, perpetuando ainda mais preconceitos, seja por meio do bullying, seja pelo despreparo pedagógico de muitas instituições. Tamanha discriminação se ancora na tentativa fracassada de nos corrigir. Tolos! Não é possível reverter a natureza humana. O que somos está alheio a nossa vontade. Caso a mãe natureza nos desse o poder de escolha, muitos optariam pelo tradicional, para se enquadrar naquilo que é visto como “certo”, “natural”, “aceito”. Então, irresolutos, continuamos a resistir a todas essas tentativas de nos destruir, pois o que nos mantêm inabaláveis é certeza de que nada nos diferencia dos demais.

Portanto, que reflitamos sobre a palavra título do novo hino da Pabllo Vittar, Indestrutível. Para mim é a nossa I Will Survive à brasileira. Trata-se de um convite à reflexão, que tanto tarda a ocorrer quando a pauta em foco é a problematização da realidade LGBT no Brasil. O tempo de sermos ignorados (as) já cessou. Vivemos momentos de levante, cuja as palavras preconceito e discriminação cedem lugar a representatividade e empoderamento. São vocábulos grandes do tamanho das nossas lutas. Palavras indestrutíveis como aqueles que as representam. Somos nossa própria bandeira, corpos hasteados por sobre esse Brasil de intolerância que nos fere, física/moral e emocionalmente, testando nossa resiliência. Porém, as marcas indeléveis que trazemos são tão profundas que se tornaram armaduras. Às vezes podem nos enfraquecer, semeando em nós o artifício da dúvida, quando questionamos se somos nós os errados, os pecadores, os devassos, os doentes.  É quando lembramos que fazemos parte do mesmo universo, e desse sentimento de pertença soerguem-se as armas para guerrear contra aqueles que nos oprimem. Nada de violência. Não respondemos com a mesma sanha selvagem dos nossos opressores. O troco é dado com algo mais Indestrutível do que qualquer empenho em nos excluir: o amor. Então, como cantou a Pabllo: “E quanto mais dor eu recebo, mais percebo que sou Indestrutível. Somos! É o que nos move.

20 fevereiro 2018


Vivemos uma revolução musical no Brasil. Nunca na história nacional tantos artistas assumidamente LBGT’s encaram a cena artística do país. O momento para isso não poderia ser mais oportuno. Em meio às mídias sociais, os grupos de militância estão ganhando cada vez mais força, com discursos de empoderamento contrários aos preconceitos de gênero, orientação e identidade. Porém, tanta visibilidade tem um preço. É o que a Drag Pop brasileira Pabllo Vittar tem sentido na pele. Ícone das atuais transformações musicais, e culturais, do país, ela já foi ignorada em entrevista, atacada com discursos homofóbicos na rede e há pouco teve seu canal do YouTube Hackeado. Isso deixa claro o desconforto causado não apenas pela existência da cantora Pabllo, mas pelo sucesso que ela tem conquistado para além do público gay.

Apesar do que dita o preconceito, música não tem gênero, tão pouco sexualidade. Mesmo assim, durante anos, a sociedade foi construída a partir de versos cantados de hétero para hétero. A exceção se dava quando tinha como foco a comicidade. Atualmente, porém, há diversos cantores preenchendo esta lacuna. Liniker, Johnny Hooker, Rico Dalasam, são exemplos disso. Em suas canções são representados os dilemas vividos pelo segmento LGBT, os quais são ignorados pelo público em geral. A Pabllo não se destaca nesse sentido, pois suas músicas não trazem uma plataforma política como discurso principal. A ideia é dançar, se divertir, rebolar, bater cabelo, gritar, pular, coisa que independe da sexualidade da plateia. Por essa razão ela agradou tão rapidamente uns e desagradou a outros, por romper o padrão heteronormativo também existente no ideal de artista.

Evidentemente que entre os opositores da Pabllo nem todos são heterossexuais. Há muitos gays que afirmam não gostar da artista, seja por causa da voz, do estilo da música, pela falta de empoderamento em suas letras ou por ela ser afeminada (pasmem!). Os motivos são variados e, em alguns casos, compreensíveis. Deve ser difícil digerir uma drag cantora quando o país nem sequer sabe direito lidar com questões ligadas a sexualidade. Todavia, uma coisa é indiscutível, a Pabllo é um ícone, um fenômeno, pós marco iniciado lá atrás por artistas como Ney Matogrosso. Para os céticos, basta listar as conquistas recentes dela: parceira com Anitta e Major Lazer, convites para programas de auditório, clipes com milhares de visualizações no YouTube, shows lotados e uma legião de fãs nas redes sociais. Além dela está colocando o país na cena Pop Internacional como poucos cantores nacionais já o fizeram.

Claro que ninguém encara a fama de uma determinada celebridade da mesma forma. Enquanto uns aceitam e entendem o porquê da representatividade existente na Pabllo, há outros que simplesmente a ignoram. Sem problemas nisso. Até porque, a arte toca cada pessoa a sua maneira. Contudo, há um abismo entre não gostar e repudiar. Entre a mera rejeição e a declarada censura. Entre o ato de trocar de rádio ao de violar o canal da artista no YouTube. Percebam a ruína existente na completa aversão da artista quando se leva em conta que o real motivo para tudo isso está em sua performance no palco. Trata-se de um homem de peruca, vestido com roupas típicas do que se entende como “universo feminino”, cantando com uma voz fina e com a face exageradamente maquiada. Esse é o olhar grosseiro direcionado pelo preconceito, ignorando qualquer sutileza artística que há na apresentação daquela drag e o porquê dela está tão plena no palco.

É a inveja. Ela é responsável por menosprezar o triunfo alheio. Quando o outro é assumidamente LGBT esse pecado capital ganha novos contornos. Isto porque, temendo aquilo que não se conhece, e/ou não se permite conhecer, o invejoso cobiça para si o que ele considera que não pode ser do outro. No caso dos gays seria a liberdade de ser e de se expressar como se é. Para isso vale de tudo para anular tal êxito, desde xingamentos, espancamentos e mortes. Quantos LGBT’s são mortos porque somos uma sociedade que julga a homossexualidade de dia e se deleita dela à noite, através das estereotipadas travestis, pelos michês e tantos outros arranjos sexuais condenados pelos puritanos? Inúmeros. Nem saberíamos mensurar. Então, a Pabllo Vittar fomenta a inveja alheia por dar voz a tantos jovens da idade dela, que encaram a sociedade de frente, com suas identidades e construções sexuais diversas.

Em contrapartida, nem todos os famosos tiveram a mesma sorte dela. Vivemos num país onde há muitos artistas gays ainda nas coxias, temendo ir a público para não perder contratos e, o pior, o respeito adquirido às custas de uma farsa hétero. No Brasil, os poucos que se rebelaram sabem o quão penoso isso foi para suas carreiras. Os Cantores Netinho e Daniela Mercury são provas disso, que mesmo na grande mídia, não detém o prestígio social de antes. Acontece que a Pabllo já veio montada, de salto alto, blush e muito brilho. Ou seja, ela abriu caminho para que muitos outros artistas renegados aos guetos das boates, saunas e tantos outros espaços destinados ao público gay, ganhassem o grande público. Neles há transformistas, drags, cantores(as), comediantes, atores/atrizes, incríveis, mas que não têm oportunidade de mostrar nacionalmente seus talentos. Talvez a Pabllo tenha se tornado a fada madrinha dos próximos artistas que abrilhantarão a cena artística do país.

Enquanto uns jogam pedra na Pabllo, provavelmente a mesma lançada contra Geni na canção de Chico Buarque, estes deixam de observar o teor transgressivo que há na existência de uma grag cantora num país ditado pelo preconceito. A Pabllo Vittar subverteu o sistema através da forma artística mais acessível entre as massas, a música. A voz dela mostra que é possível sim ser gay, estar montada no palco e não necessariamente fazer um show voltado apenas ao público LGBT. As letras das canções dela, mesmo sem a pretensão de problematizar nada, já o fazem apenas por serem entoadas pela boca perfeitamente delineada de uma drag. Aliás, há muitos cantores(as) héteros com letras sem reflexão alguma e isso nem sequer é atribuído como argumento negativo para suas carreiras, porque com uma artista gay isso seria relevante? Possivelmente para sabotar seu trabalho. O que é uma pena, pois mostra que a inveja, o despeito e o preconceito continuam estampados na nossa cara, ops, na sua cara.

05 abril 2015


           Estava conversando com uma amiga, dia desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa, que eu não conhecia. Descreveu-a como sendo boa gente, esforçada, ótimo caráter. "Só tem um probleminha: não é habitada". Rimos. É uma expressão coloquial na França — habité — mas nunca tinha escutado por estas paragens e com este sentido. Lembrei-me de uma outra amiga que, de forma parecida, também costuma dizer "aquela ali tem gente em casa" quando se refere a pessoas que fazem diferença.
          Uma pessoa pode ser altamente confiável, gentil, carinhosa, simpática, mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros pra dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja longe de ser má referência. Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato, é um país de contos de fada onde tudo funciona, onde todos são belos, onde a vida parece uma pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma ebulição que a salve do marasmo.
          Retornando ao assunto: pessoas habitadas são aquelas possuídas, de fato, por si mesmas, em diversas versões. Os habitados estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas, mas não são menos felizes por causa disso. Não transformam suas "inadequações" em doença, mas em força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não se amedrontam com transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar o diálogo. São pessoas que surpreendem com um gesto ou uma fala fora do script, sem nenhuma disposição para serem bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam pela verdade pessoal que defendem. Além disso, mantêm com a solidão uma relação mais do que cordial.
            Então são as criaturas mais incríveis do universo? Não necessariamente. Entre os habitados há de tudo, gente fenomenal e também assassinos, pervertidos e demais malucos que não merecem abrandamento de pena pelo fato de serem, em certos aspectos, bastante interessantes. Interessam, mas assustam. Interessam, mas causam dano. Eu não gostaria de repartir a mesa de um restaurante com Hannibal Lecter, "The Cannibal", ainda que eu não tenha dúvida de que o personagem imortalizado por Anthony Hopkins renderia um papo mais estimulante do que uma conversa com, sei lá, Britney Spears, que só tem gente em casa porque está grávida. Zzzzzzzzzzz.
             Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo único mal que possam fazer é nos fascinar e nos manter acordados uma madrugada inteira. Ou a vida inteira, o que é melhor ainda.

Por: Martha Medeiros
Fonte: Jornal O Globo

19 janeiro 2015


ABRAÇAR E AGRADECER
Chegar para agradecer e louvar.
Louvar o ventre que me gerou
O orixá que me tomou,
E a mão da doçura de Oxum que consagrou.
Louvar a água de minha terra
O chão que me sustenta, o palco, o massapê,
A beira do abismo,
O punhal do susto de cada dia.
Agradecer as nuvens que logo são chuva,
Sereniza os sentidos
E ensina a vida a reviver.
Agradecer os amigos que fiz
E que mantém a coragem de gostar de mim, apesar de mim...
Agradecer a alegria das crianças,
As borboletas que brincam em meus quintais, reais ou não.
Agradecer a cada folha, a toda raiz, as pedras majestosas
E as pequeninas como eu, em Aruanda.
Agradecer o sol que raia o dia,
A lua que como o menino Deus espraia luz
E vira os meus sonhos de pernas pro ar.
Agradecer as marés altas
E também aquelas que levam para outros costados todos os males.
Agradecer a tudo que canta no ar,
Dentro do mato sobre o mar,
As vozes que soam de cordas tênues e partem cristais.
Agradecer os senhores que acolhem e aplaudem esse milagre.
Agradecer,
Ter o que agradecer.
Louvar e abraçar!



Sempre adoro como nossos baianos, novos, velhos, eternos, cantam e encaram Deus, ou deus, ou deuses, forças

Passei a noite do 31 com minha mãe Iná, em sua casa no Flamengo. A primeira virada sem meu pai. Jantamos no quarto, onde havia ar-condicionado. Esquecemos os fogos e a chuva lá fora. Brindamos com espumante rosé e sorvete de passas ao rum. Ela lembrou do primeiro flerte com Leonardo, o ruivo rechonchudo que furou uma onda em Copacabana, o areal, e, como um golfinho, emergiu diante dela. Num gesto ousado, Iná espirrou água no seu rosto. Ele a ameaçou: “Da próxima vez que fizer isso...” Ela reagiu: “O que você vai fazer? Hem?”. E ele: “Da próxima vez, te dou um beijo”. O beijo veio meses depois. O resto da história durou 50 anos e se encerrou em novembro.
Ela quis dormir na sala, e eu fiquei no quarto, deixando o lugar de papai vazio, e o cão Yossi quis ficar por ali. Juntos, sentimos a falta do golfinho de barbas e de tempos solares. Mas foi uma noite doce. Cedinho mamãe apanhou Yossi para um passeio e continuei a roncar. No início da tarde lá estava de novo o cão, aninhado. Acordei. Minha irmã havia voltado da festa da Narcisa e contava os babados. Que conversara muito com Elke. Que mulher inteligente! Sabia que ela nasceu na Rússia, Leningrado?
Despedi-me das duas e vim para casa pela Lagoa. No iPhone, que estava em aleatório, surgiu Maria Bethânia cantando “Alguma voz”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. Quando eu ouço alguma voz/ Na janela do horizonte/ De alguém cantando por nós/ É Deus cantando defronte. Sempre adoro como nossos baianos, novos, velhos, eternos, cantam e encaram Deus, ou deus, ou deuses, forças. Nem sempre creem nele(s). Mas sempre creem na sua expressão, na fé do povo, na relação do símbolo divino com os homens e as mulheres através da palavra, dos sons, das vozes da natureza. Caetano, crítico sensível daquilo que, de Deus, os homens fazem, estudioso dos vínculos secretos que o tempo reserva em mil níveis; Gil, panteísta, quântico, oriental. Uma vez em Montreux, anos 1990, quando perguntei se voltaria à política, respondeu: “Estou mais para líder religioso”. Na verdade, está mais para entidade cosmológica.
Bethânia, ela, sim, é mais devota: um tanto de orixás, um pouco dos santos, a cruz, altiva, luas e estrelas. Orações, atos, práticas. Longe, porém, das pulsões proselitistas, dos constrangimentos, do masoquismo. E, para complementar, aquela cara-sorriso de “judia e moura”, como na canção de Caetano, o iemenita.
A voz de Bethânia, tão bonita e particular, não se quer a maior das vozes ou das técnicas (ela vive como se fora obstinada aprendiz, tecendo loas às outras vozes, não a si). Mas é uma voz que carrega tanto do teatro (presente nos modos espectrais e físicos das festas do candomblé) quanto desse canto indizível que Dori enxerga no horizonte, talvez o tal do sentimento oceânico de que Freud fala, incapaz, ele mesmo, de senti-lo, e que, desconfiado, só consegue explicar como o sentimento do útero saudoso e até da projeção da morte em paz.
Foi bonito sair assim da casa de minha mãe e cair no colo de Bethânia, filha de Canô, de Menininha e de tantas mães, ela mesma um tipo de mãe para mim e um mundão, cada vez mais bela e jovem, transitando pelo palco com seus pés descalços, coberta de folhas cadentes e luzes de cidadezinha de interior.
Foi bonito e útil: eu estava pensando no que escrever na primeira crônica do ano, e o advento da canção de Dori, sobre as vozes, na voz dela, me fez lembrar de seus 50 anos de carreira que coroam a cabeça de 2015 (amanhã, no Segundo Caderno, edição especial sobre este meio século tão importante).
Aí cheguei em casa e mandei bala no teclado. E aqui estou lembrando dos vários encontros que tive com Bethânia. Nunca nos tornamos amigos naquele sentido de convivência periódica, do confessionário de compadres, mas, através de alguns textos, nos aproximamos, um recado de cá, um recado de lá, admirações e homenagens. Uma vez eu a ajudei a achar um gravadorzinho portátil MP3 que ela avistara na mão de outro jornalista e ficara obcecada pelo microfone pequenino, bojudo e acolchoado que havia no vértice do aparelho. Queria que queria um igual. Saí à procura e acabei achando na Avenida Rio Branco.
Dias depois, fui entregar-lhe como se fosse uma dessas oferendas a uma mãe de santo. Tem gente que diz que Bethânia é uma, e que é até mais. Quem já foi ao camarim de Bethânia após um de seus shows saiu sempre com a impressão de que ela dava passes a cada um de seus admiradores e amigos, pois o que sai de gente chorando (eu já molhei os olhos) depois de abraçá-la não está no gibi.
Ela gosta desse assédio, mas não no sentido da vulgar celebridade. Pois aquilo cansa, e essas romarias duram horas, e ela se dedica com amor. Bethânia gosta é de abraçar a gente mesmo. De ouvir e dizer palavrinhas no ouvido. De ser devota do outro, carne, mente, sangue, perfume. O que há para além disso ninguém sabe. Muita gente sente. Intui. Vê e até ouve vozes. Não sei tampouco no que Bethânia crê, pois ela crê em tanta coisa que não importa muito o que vem deste ou de outro mundo, da intuição, da síntese a priori ou de catarse a posteriori, sabe lá...
Eu creio em Bethânia. Ela existe e multiplica o divino no espelho de sua voz grave, de seus gestos que iluminam o palco, de sua raiva desabafada nos ápices das canções de amor, a ponto de apertar-se toda, incrédula, diante de certas estrofes; de seus passeios aplicados pela poesia, de seu respeito doce e fofamente professoral pela cultura brasileira. Que bom que Bethânia está entre nós. “Como uma deusa”, diria o hit brega. Chique e humana. Maria, minha mãe, parabéns.


.Visto no: O GLOBO