A patroa e duas domésticas. Um depoimento justo, digno e surpreendente, que serve de exemplo para todos que reagiram com ódio à ampliação dos direitos das domésticas
Leonardo Sakamoto, em seu blog
Tenho recebido muitas mensagens de pessoas questionando meus elogios às mudanças constitucionais que trouxeram mais direitos às empregadas domésticas. “Quero ver defender isso no dia em que você tiver filhos”, “Não posso mais pedir para ela preparar algo para eu comer à noite porque vou ter que pagar hora extra?” e – aquela que adoro – “Já que gosta de ficar defendendo empregadinha, por que não vem ajudar minha faxineira aqui então”. Sobre esse último ponto, recomendo a leitura de notícia do The piauí Herald.
Pensei que era apenas mais um ataque do pessoal que surfa nas ondas cibernéticas conservadoras, mas meus colegas também têm recebido o mesmo tipo de achaque em suas caixas postais jornalísticas. Daí, achei por bem pedir um texto a alguém na mesma situação e condição que os missivistas chorões. O único pedido dela foi o de manter o anonimato, pois não quer se indispor (ainda mais) com amigos e família. Segue:
Sou uma mulher branca, de 42 anos, curso superior completo, cinco filhos, dois casamentos. Trabalho fora de casa o dia inteiro. Sou adequadamente remunerada pelo que faço e exerço meu trabalho em condições de liberdade, equidade e segurança, o que me garante uma vida digna. Para conciliar minhas responsabilidades familiares com as exigências do meu trabalho, conto com os serviços de duas empregadas domésticas em minha casa.
Sou consciente de que meu arranjo trabalho-família só é possível porque está lastreado nas desigualdades sociais do meu país. Se o Brasil não fosse um país tão desigual, tão injusto, a diferença entre o que ganho e o que uma empregada doméstica ganha seria muito menor e eu, certamente, não poderia pagar por um serviço tão caro.
Se fossemos mais iguais, as duas empregadas que cuidam dos meus filhos e da minha casa teriam estudado em boas escolas, como eu estudei, e seriam profissionais qualificadas, como eu sou. A vida delas seria muito melhor do que é. Ambas ganhariam melhor e não teriam que deixar seus filhos de segunda a sexta-feira com outras pessoas, para cuidar dos meus.
Mas a minha vida também seria muito melhor. Minha demanda por serviços domésticos prestados por outras pessoas seria a menor possível (por razões econômicas) e tudo dentro de casa seria diferente: todos os adultos teriam que cuidar de sua própria roupa, da limpeza dos ambientes que usam individualmente; as crianças teriam mais consciência sobre a necessidade de manter a ordem dos objetos que usam; a preparação das refeições e a limpeza dos espaços comuns seria uma linda oportunidade de colaboração entre todas as pessoas da casa; haveria uma economia brutal de recursos já que todos seriam mais conscientes da carga de trabalho envolvida em lavar, limpar, passar, cozinhar.
Cresci em uma casa onde sempre houve uma empregada doméstica prestando serviços e estou certa de que isso me fez muito mal. Naturalizou a desigualdade dentro de mim, quando criança, e me fez sentir que o trabalho doméstico não era para pessoas como eu e sim para os pobres “que não se esforçaram, não estudaram porque não quiseram e agora tem mesmo que fazer esse trabalho”.
Parecia justo. Tive que chegar à vida adulta para perceber que não havia justiça nenhuma nessa forma de pensar. Que os pobres são pobres não por serem preguiçosos e sim em função de um caminhão de injustiças sociais acumuladas desde sempre. Mesmo assim, o fato é que repliquei e sigo replicando esse modelo até hoje dentro da minha própria casa. Vejo meus filhos crescendo com a mesma inconsciência, achando que no universo as coisas naturalmente se arrumam (já que tem sempre uma empregada doméstica arrumando tudo) quando o que acontece é o contrário: tudo se desarruma o tempo todo e é preciso um esforço constante de por ordem nas coisas.
E aí, espetacularmente, a PEC das empregadas domésticas é aprovada. Alegria real em meu coração! Um passo a mais no rumo da justiça. Solto foguetes coloridos, quero mais é que tudo mude mesmo. Que a trabalhadora doméstica seja olhada com todo o respeito com o qual se olha para qualquer outra pessoa trabalhadora. Que o trabalho dela seja cada vez mais protegido e bem remunerado. Que seja tão digno quanto o meu. Vai pesar mais no bolso de empregadores? Vai haver demissões em massa por conta disso? Me poupem… O impacto no bolso de quem emprega vai ser mínimo. Milhares de empregadas domésticas nem sequer têm suas carteiras de trabalho assinadas e ganham menos do que o salário mínimo. Nesse cenário, como assim demissão em massa? Estamos falando do mesmo país?
Incendiária, quero tocar fogo nas revistas semanais desta semana. Truculenta, tenho vontade de bater boca com várias mulheres que empregam domésticas e que, injuriadas, reclamam dessa lei que vai dar mais direitos para essas empregadas “que não merecem nem um centavo a mais, que são péssimas, que dormem na nossa casa, comem demais, trabalham pouco, são desatentas, são preguiçosas, ficam grávidas, tratam mal as nossas crianças…” Meu Deus…
Entendo o que é fazer uma reclamação sobre o serviço de uma empregada: tal pessoa cozinha mal, lava mal, não corresponde às expectativas. Já reclamei nesses termos e me parece natural num processo de ajuste em torno dos acordos de trabalho feitos. Mas esse tom, que faz referência “às empregadas” é muito nocivo e injusto. Me perdoem, mas lembra sim uma relação escravagista. Temos muito caminho pela frente em termos de curar essa relação de trabalho e até lá, pessoalmente, declaro minha alegria e minha satisfação de me sentir parte de uma sociedade que caminha num rumo melhor depois da nova lei.
Visto no: Blog do Sakamoto
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