26 janeiro 2016

Mariana: os dramas e as culpas pela tragédia - por HUDSON CORRÊA, SAMANTHA LIMA E RAPHAEL GOMIDE

O agricultor José Patrocínio de Oliveira, o Zezinho, de 86 anos, teve apenas cinco minutos para decidir. Por volta das 18 horas do dia 5, um grupo de policiais chegou de moto a Paracatu de Baixo (Minas Gerais), gritando para os moradores deixarem as casas rapidamente. Zezinho pegou apenas os documentos e subiu à parte alta do local com os filhos. Na quinta-feira, dia 12, uma semana após orompimento das barragens, Zezinho sentou-se em um tronco de árvore na parte alta de Paracatu. Poucos metros à frente via casas soterradas na lama. Na sua ficaram suas economias – R$ 3 mil – dentro de um guarda-roupa e seus bens mais preciosos: os instrumentos musicais e as fantasias da Folia de Reis, que realiza há 50 anos em Paracatu, onde nasceu e teve 24 filhos. “O que vou fazer? Perdi tudo”, diz. Elias, um de seus filhos, circula entre as ruínas inventariando as perdas. Sua moto está dentro de um bloco de barro, ao lado de um galinheiro. “Tem 50 galinhas enterradas aí dentro”, diz. “Suspeito que pode haver gente morta também. Tenho sentido um cheiro diferente.”
José Patrocinio de Oliveira em frente a sua casa que foi destruida. (Foto: ALEXANDRE C. MOTA/Nitro/ÉPOCA)
Carro da Samarco que impedia o acesso à instalação de antenas (Foto: Hudson Corrêa)
Zezinho pode dizer que teve sorte. Poderia ter sido um dos engolidos por cerca de 62 milhões de toneladas de lama, rejeito da exploração de minério de ferro, que vazaram após o rompimento das barragens de Fundão e Santarém, mantidas pela mineradora Samarco, uma sociedade entre a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. As toneladas de lama tomaram Bento Rodrigues de assalto, caíram no Rio Doce e vão chegar ao mar, no litoral do Espírito Santo, a mais de 100 quilômetros de distância. Bento Rodrigues se transformou em ruínas. Até o final da semana passada, dez mortos haviam sido encontrados, 18 pessoas estavam desaparecidas e 612 (inclusive Zezinho) desabrigadas. Ainda é cedo para dizer se algum dia será possível recuperar o solo de Bento Rodrigues. A água do Rio Doce, que abastece mais de 500 mil pessoas, está ameaçada. Trata-se de um dos maiores desastres ambientais do país. O desastre é resultado de uma combinação de negligência e descaso, que torna tais tragédias tristemente comuns no país.
Vista do que sobrou de Paracatu de Baixo Minas gerais (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
O acidente poderia ter sido evitado?
Sim. Há no país 401 barragens de rejeito enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens, 317 delas em Minas Gerais. AComissão de Segurança de Barragens classificava a do Fundão como de “baixo risco” de rompimento, mas de “dano potencial alto”. A classificação considera o risco estrutural, a documentação, o volume de rejeitos acumulado, se há habitações próximas e infraestrutura voltada para onde correm as águas do rio. Grandes barragens, como a do Fundão, da Samarco, devem ser monitoradas em tempo integral. Barragens devem ter sensores para identificar pressões ou deformações. Inspeções visuais devem ser feitas para identificar trincas, infiltrações e crescimento de vegetação. A Samarco não informa se fazia monitoramento nem se percebeu sinais de falha da barragem.
Vítimas da tragédia estão provisoriamente em um ginásio da cidade de Mariana, a Arena Mariana (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
Autor de uma dissertação de mestrado para a qual analisou 125 barragens em Minas Gerais, o professor de engenharia Anderson Pires Duarte afirma ser impossível a Samarco não saber o que estava prestes a acontecer. “Uma barragem não se rompe de um dia para o outro. Dá avisos, sinais. A questão é se havia monitoramento para captar esses sinais”, afirma. “É como uma pessoa que adoece: percebem-se os sintomas. Não sei por que rompeu, mas garanto que a Samarco tem esse monitoramento.” 
Morador  de Barra Longa tenta limpar a sujeira dentro de sua casa, dois dias depois do rompimento de duas barragens de rejeitos de mineração, de Fundão e de Santarém, ocorrido na tarde da quinta-feira (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
A Samarco teve culpa?
Esse tipo de rompimento de barragem pode ser causado por fatores extremos, como um abalo sísmico grande. Um dos motivos levantados inicialmente é que houve um pequeno tremor de 2,3 graus na escala Richter na região, mas especialistas avaliam que um abalo desses não seria suficiente. Resta a possibilidade de falha técnica. Apenas uma investigação poderá dar uma resposta definitiva. Entretanto, o Ministério Público de Minas Gerais afirma que a empresa, sim, tem culpa. A subprocuradora-geral da República Sandra Cureau, coordenadora da Câmara do Meio Ambiente do Ministério Público Federal, afirma que a punição aos representantes da Samarco deve ser “exemplar” porque houve “negligência” e “omissão”. O Ministério Público mineiro abriu um inquérito para investigar o caso. Uma força-tarefa, composta de 15 promotores e dez técnicos ambientais, deverá concluir o trabalho em 30 dias. Uma equipe de peritos que não prestaram serviço antes para a Samarco ou suas donas, a Vale e a BHP Billiton, foi contratada. “Ainda é cedo para dizer qual foi a negligência, imprudência ou imperícia. Mas houve alguma, com certeza”, diz o promotor Mauro Ellovitch, do Ministério Público mineiro.
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Barragens como as da Samarco são construídas aproveitando-se o vale e as montanhas que o formam como paredes. A frente é fechada com o próprio rejeito mais sólido e granulado, que retém a parte mais líquida e fina. Desde maio, duas empresas faziam para a Samarco obras de elevação da altura da barragem, chamada de alteamento. “Isso evidentemente tornou o rompimento da barragem mais provável”, diz Sandra Cureau. “Uma obra de alteamento não é um puxadinho. É uma obra complexa, precisa de uma análise rigorosa”, afirma Geraldo de Abreu, da Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais. A Samarco fazia também uma obra para fundir a barragem do Fundão à de Germano, muito maior.
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Em 2013, quando a Samarco pediu novo licenciamento para a barragem do Fundão, um laudo técnico do Instituto Prístino, encomendado pelo Ministério Público de Minas Gerais, apontou um risco de “colapso da estrutura”. O licenciamento foi concedido pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais. Em 2014, a Samarco aumentou a produção na unidade de Mariana em 33%. A Samarco será responsabilizada mesmo que o acidente tenha causas naturais, segundo o promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, do Ministério Público de Minas Gerais. “A Samarco será obrigada legalmente a reparar todos os danos e compensar os estragos irreversíveis ao patrimônio cultural e ao meio ambiente.” Nos últimos 14 anos, quatro barragens romperam-se em Minas Gerais.
Bombeiros fazem buscas por desaparecidos no distrito de Bento Rodrigues, tres dias depois do rompimento de duas barragens de rejeitos de mineracao, de Fundao e de Santarem (Foto: Daniel Marenco / Ag. O Globo)
A Samarco cumpriu as regras de segurança?
A investigação do Ministério Público vai determinar como foram os procedimentos da Samarco. A lei de segurança para as barragens determina que a empresa tenha um plano de ação emergencial para lidar com desastres. Parte desse planejamento consiste numa “estratégia e meio de divulgação e alerta para as comunidades afetadas”. Depois da ruptura das barragens em Bento Rodrigues, a Samarco afirma ter feito o aviso por telefone. “Não houve sirene, houve contato via telefone com a Defesa Civil, prefeitura e alguns moradores”, afirmou o engenheiro Germano Lopes, gerente-geral de projetos da Samarco, sem especificar o número de moradores comunicados. Todas as testemunhas ouvidas pelo Ministério Público negam ter havido comunicação. Na tarde da quarta-feira, dia 11, funcionários de uma empresa de telefonia contaram a ÉPOCA ter instalado sirenes na área afetada naquela tarde, seis dias após o acidente. O sistema permitiria à Samarco alertar a população em caso de risco. ÉPOCA foi ao local onde foi colocada uma antena, que emitirá sinais para disparar as sirenes, mas uma caminhonete da Samarco bloqueava a entrada. “Se houvesse um bom plano para evacuar a área, não haveria tantos desaparecidos”, afirma Jefferson Oliveira, professor de engenharia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
A lei brasileira sobre barragens é boa?
Especialistas afirmam que a legislação brasileira está dentro dos padrões internacionais, mas é muito recente e não foi regulamentada. A lei não exige, por exemplo, o uso de mecanismos modernos de aviso, como sirenes e envio de mensagens pelo telefone celular para avisar em casos de acidente, comuns em países como o Canadá. O papel da regulamentação seria justamente determinar detalhes como esse. Monica Zuffo, doutora em segurança de barragens pela Universidade de Campinas (Unicamp), diz que a lei não é falha ao definir o que deve ser feito, mas sim em especificar quem deve fiscalizar. “Não há interesse em atribuir responsabilidades claras”, diz. O texto não regulamenta que órgão é responsável por fiscalizar o quê; nem define uma instância máxima de fiscalização federal. “Fica subentendido que os incidentes com barragens no Brasil são ‘culpa da ira divina’, pelo excesso de chuva, por exemplo”, diz Monica.
Infográfico sobre a tragédia na cidade de Mariana  (Foto: Época )
Falta fiscalização de barragens no Brasil?
Sim. Fazia três anos que um técnico do governo federal não comparecia a Bento Rodrigues para vistoriar as barragens que se romperam. A última vez que um fiscal do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) visitou a área atingida foi em 2012. Depois disso, as barragens já passaram por reformas significativas, como o alteamento, sem nunca terem sido monitoradas. A fiscalização é falha por falta de organização e recursos. Quatro órgãos, subordinados a ministérios diferentes, fiscalizam todo tipo de barragem no Brasil. As mais de 660 barragens de minério, como as da Samarco, ficam sob a guarida do DNPM. Contudo, o DNPM não exige que as empresas emitam relatórios anuais sobre a segurança de suas barragens. O DNPM tem 220 fiscais para cuidar de 27.293 empreendimentos.

Na semana passada, o ministro das Minas e Energia, Eduardo Braga, admitiu que o DNPM gastou neste ano apenas 13% do orçamento destinado à fiscalização. “Como as punições em caso de acidente demoram a ser aplicadas, já que as empresas recorrem das decisões, não há um efeito pedagógico”, afirma o procurador da República Eduardo Santos de Oliveira, responsável pelo caso de Cataguases, de 2003, vazamento de barragem que contaminou a água de 600 mil pessoas, ainda sem punição dos responsáveis. Há também falta de estrutura estadual. No caso de Minas Gerais, há oito fiscais para fiscalizar 735 barragens. “Os técnicos avaliam dentro de sua sala de trabalho”, afirma o advogado Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental (ISA).
As leis lá fora são mais duras que a brasileira?
Quando comparada com a de outros países, a legislação brasileira é falha no aspecto de atribuição de responsabilidades. Nos Estados Unidos, a Federal Emergency Management Agency (Fema) é claramente o órgão máximo de fiscalização. No Canadá, essa figura não existe, mas as províncias monitoram as barragens com extrema seriedade. Desde 1995, existe um Guia de Segurança em Barragens, que descreve tudo o que deve ser feito. No Brasil, muitos Estados nem sequer aprovaram legislação sobre o tema. “Esse é o paradoxo brasileiro: nossa legislação sobre águas é das mais exigentes do mundo. Mas a aplicação das leis não é”, diz Monica Zuffo, da Unicamp.

Nos Estados Unidos, os governos estaduais são responsáveis por regular 95% das barragens do país, mas cabe à Fema liderar a fiscalização, através do Programa Nacional de Segurança em Barragens. A tarefa da Fema é garantir que os Estados tenham condições, recursos e treinamento no monitoramento de acidentes com barragens e que cada Estado siga rigorosamente as diretrizes definidas no programa nacional. Isso inclui compilar em um banco de dados na Universidade Stanford, na Califórnia,  todos os relatos de incidentes nas quase 80 mil barragens do país. A Austrália começou a regular a segurança em suas barragens em 1978. Em 2000, o governo aprovou um código que prevê que toda barragem tenha um relatório anual de segurança e um programa de fiscalização elaborado por um engenheiro de segurança. O Reino Unido começou ainda mais cedo a regular suas barragens: o primeiro conjunto de leis é de 1930. Esse decreto foi aperfeiçoado em 1975 e está vigente até hoje. A lei obriga que dois técnicos nomeados pelo governo façam a medição diária do nível dos reservatórios e produzam um relatório anual.  
As empresas multinacionais que atuam no brasil seguem os mesmos procedimentos de segurança que adotam no exterior?
Não. As empresas seguem as leis locais, de acordo com seu rigor. Além do Brasil, a BHP explora minério de ferro na Austrália. Lá, em 2012, o departamento público de Meio Ambiente australiano obrigou a BHP a fazer uma avaliação ambiental detalhada da região onde atuaria e de áreas próximas. Teve de divulgar seu relatório para o público, com um texto simples e claro, e com as fontes de informação, de forma que pudessem ser checadas. Esse tipo de acompanhamento pode até ser sugerido pela lei, mas não é prática no Brasil. A Vale não informou se adota os mesmos padrões em todas as suas operações e disse cumprir as legislações específicas de cada país onde atua.
Quais as consequências ambientais do acidente?
A lama que vazou da barragem em Mariana contém elementos considerados pouco tóxicos. Mesmo assim, o distrito de Bento Rodrigues pode nunca mais ser recuperado, pois a lama secará, impermeabilizará o solo e impedirá a vegetação de ressurgir. Embora não contamine o solo, o material pode assorear rios, nascentes e margens. “Os rejeitos podem alterar o hábitat aquático e as terras aráveis”, afirmou o consultor americano David Chambers. O assoreamento muda a profundidade e a largura dos rios, afetando a reprodução e a alimentação dos peixes. “Se não limpar, não tem material orgânico nenhum para plantas. Nada se desenvolve por dezenas de anos. Se deixar por conta da natureza, essa área toda vai ser estéril”, diz o professor Maurício Ehrlich, do Coppe, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O abastecimento de água nas cidades do Vale do Rio Doce será um problema por enquanto. Especialistas ainda não sabem dizer se o impacto no rio será permanente. Na quinta-feira, dia 12, o Ministério Público Federal e o MP do Espírito Santo, junto a entidades ambientais e a uma associação de pescadores, iniciaram a Operação Arca de Noé para retirar espécies de peixes do Rio Doce antes da chegada da lama. Os peixes irão para duas lagoas.
Quais punições poderão ser aplicadas aos responsáveis pelo acidente?
Na semana passada, o Ibama aplicou duas multas à Samarco, que somam R$ 250 milhões – uma pelo despejo de dejetos no rio e outra por danos à biodiversidade. A Samarco foi autuada por cinco crimes ambientais. O Ministério Público deverá propor uma ação civil pública exigindo pagamento de indenização. O Deutsche Bank calculou em US$ 1 bilhão os custos para eliminar o passivo ambiental causado pela tragédia. De acordo com a subprocuradora-geral da República Sandra Cureau, as pessoas físicas responsáveis podem ser punidas com multas ou com até quatro anos de cadeia. “Me parece impossível que a empresa e seus responsáveis não venham a ser condenados pela prática do crime, pelo menos na modalidade culposa”, afirma.
Houve acidentes similares no brasil e no exterior?
Em outubro de 2010, o vazamento de lamas vermelhas de um reservatório de uma fábrica de alumínio na cidade de Ajka, na Hungria, atingiu duas aldeias: Devecser e Kolontar. Cerca de 1 milhão de metros cúbicos de lama cáustica vazaram, matando dez pessoas, ferindo 120, devastando plantações e a fauna local. Os resíduos chegaram ao Rio Danúbio. A operadora da fábrica era a MAL Hungarian Aluminum, que recebeu uma multa de € 470 milhões pelos danos ambientais.

No Brasil, um dos casos mais notórios foi o rompimento da barragem da Indústria Cataguases de Papel, em 2003, em Cataguases, também em Minas Gerais. Embora não tenha havido mortos, foram liberados 1,4 bilhão de litros de licor negro (lixívia) que atingiu o Rio Paraíba do Sul e deixou 600 mil pessoas sem água. O consórcio responsável pela barragem foi condenado a pagar R$ 177 milhões, mas recorreu da decisão.
A mineradora Samarco não respondeu aos pedidos de informação feitos por ÉPOCA. Em comunicados que divulgou, afirma ter colocado em ação, poucas horas após o desastre, seu “plano de ação emergencial de barragens, validado pelos órgãos competentes”. A empresa afirma também que o rejeito que vazou das barragens é inerte. “Não apresenta nenhum elemento químico que seja danoso à saúde”, diz o texto. A mineradora diz que está tomando as medidas apontadas pelo governo do Espírito Santo para corrigir as consequências do avanço da lama no Rio Doce e que está fornecendo caminhões pipa e água potável para as cidades afetadas pela falta de água. As mineradoras Vale e BHP prometem criar um fundo para recuperar as cidades.
Vazamento da barragem do Rio Pomba, em Cataguases (MG) (Foto: Patrícia Santos/Folhapress)
Vista de Ajka, na Hungria, onde um vazamento de rejeitos  de alumínio contaminou o Rio Danúbio (Foto: Gyoergy Varga/MTI/AP)
Colaborou: Graziele Oliveira

Visto: Época

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