São quase duas da manhã, madrugada de domingo para segunda-feira, começo do mês de abril. Sem sono, eu penso em inúmeras coisas enquanto rolo de um lado para outro na cama. Vencida pela insônia, eu pego o celular para me distrair. Menos de um minuto depois, um número não registrado, que com certeza vira que eu estava online, me chama:
– Professora, eu não sei por onde começar.
Num lapso, eu rapidamente penso: “Não acredito que um aluno vem falar de trabalho a essa hora. Maldita hora em que eu fui compartilhar meu WhatsApp nas salas de aula”.
Decido não responder a mensagem e me desconectar, mas meu interlocutor é mais ágil. No mesmo instante em que eu tomara a decisão de desligar o celular, uma outra mensagem chega.
– Eu sei que não é hora, mas eu não tenho ninguém para falar. Me desculpe incomodá-la.
– Seu trabalho é para amanhã? – eu pergunto secamente, na tentativa de encerrar o mais breve a conversa.
A essa altura do diálogo, eu já havia reconhecido pela foto do perfil que quem me procurava àquela hora era uma aluna do ensino médio. Para preservar sua identidade, vamos chamá-la de Mel.
Mel respondeu:
– Essa noite é a segunda vez que eu tento suicídio.
Penso no peso e na responsabilidade que a conversa adquire e confesso que por alguns segundos não sei o que responder, nem como agir. Apenas consigo pensar que naquele momento dizer “não faça isso!” não ressoaria em lugar algum.
Começo a digitar alguma coisa, alguma frase de efeito, não me lembro, quando chega outra mensagem da Mel:
– Tento lutar, mas parece impossível. É horrível. Não aguento mais!
Ela então desabafa comigo e imediatamente eu percebo a gravidade da situação.
Passei a madrugada conversando com a Mel, ouvindo-a e fazendo com que me ouvisse. No dia seguinte, ela procurou ajuda psicológica e psiquiátrica na rede pública e até onde pude acompanhar, sua depressão é crônica e os remédios demoram a fazer efeito, o que, segundo ela mesma, causa “altos e baixos”, ou seja, momentos de euforia e tristeza profunda. A família diz que ela está sendo tratada e acompanhada.
Dia 24 de abril. Os principais jornais do país, como O Globo e O Estado de S. Paulo, noticiam que dois alunos do ensino médio do Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais e conceituados de São Paulo – como fazem questão de frisar nas chamadas das matérias – suicidaram-se em casa em um intervalo de pouco mais de dez dias. A mesma matéria no jornal O Estado afirma que houve um caso no mesmo mês no Colégio Agostiniano e, no ano passado, um caso no Colégio Vértice. Os pais, preocupadíssimos, insistem que as escolas particulares debatam o assunto entre os alunos.
Leio a matéria e penso na Mel e em todos os meus alunos (todos eles de escolas públicas) que já se automutilaram, que tentaram suicídio e/ou têm depressão. Penso também nas estatísticas expostas na matéria, que afirmam que suicídio é a segunda causa de morte de jovens e adolescentes no mundo. Segundo a notícia fornecida pelo jornal, que se baseia nos dados mais recentes fornecidos pelo Ministério da Saúde, os casos de suicídios no Brasil têm crescido nos últimos anos: foram 722 mortes em 2015, na faixa etária de 15 a 19 anos. A segunda causa de morte de jovens e adolescentes é o maior tabu das escolas, que evitam falar sobre o tema com receio, inclusive, de incentivá-lo.
Segundo as reportagens, por pressão dos pais, as escolas particulares decidiram refletir sobre o assunto, colocando-o em pauta e ouvindo os alunos. Mas, e nas escolas públicas, como debater esse assunto?
No ano passado, pela primeira vez, depois de quase uma década de prática docente, eu decidi ceder um tempo (de cinco a dez minutos) durante os últimos minutos da minha aula, para que algum aluno (por livre e espontânea vontade) fosse até a frente da sala (num cantinho que juntos intitulamos de cantinho do desabafo) e compartilhasse com os demais colegas algum problema ou algo bom que estivesse acontecendo naquele momento na vida dele.
De início, pensei que eles hesitariam em falar. Então coloquei em pauta: Por que os jovens relutam em falar sobre os próprios problemas? A escola deveria ser o lugar mais democrático do mundo, mas infelizmente, é o local onde nos deparamos pela primeira vez com as diferenças de maneira hostil e excludente. Diz ser inclusiva, mas pratica uma inclusão seletiva – na maioria das vezes prolifera a exclusão que há na sociedade.
Diante da resistência, eu mesma então decidi estrear o espaço, contando um pouco da minha vida, dos meus problemas pessoais e, mais especificamente, como foi a minha adolescência como uma garota negra, pobre e estudante de escola pública. Na época, eu havia acabado de me separar, passava por problemas financeiros e sofria com a ausência do meu pai. Mostrei a eles que eu tinha tantos problemas quanto eles.
O fato é que o “cantinho do desabafo”, que a princípio começou como uma maneira dinâmica de terminar as aulas de filosofia, tornou-se algo sério, parte da aula, de modo que os próprios alunos me cobravam a dinâmica já no começo da aula. Esses términos de aula fizeram com que eu percebesse que a maioria dos meus alunos sofrem de depressão e ansiedade.
Compartilhando sentimentos não nos sentimos sozinhos, pois constatamos que todos nós somos frágeis, todos nós temos problemas, todos nós nos sentimos sozinhos diante das adversidades da vida.
Albert Camus (1913-1960), conhecido como o filósofo do absurdo, em seu ensaio O Mito de Sísifo, afirmava que “existe apenas um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois”.
Na mitologia, Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar repetidamente uma rocha até o topo de uma montanha para vê-la cair novamente. Para os deuses, não havia castigo pior do que a ação monótona, repetitiva, ilógica, sofrida, absurda. Ao chegar no topo da montanha a rocha despencaria e não haveria nada a fazer.
Assim como Sísifo, fazemos as coisas de forma rotineira e chata, muitas vezes sem entender o porquê das ações e os seus resultados.
Assim, para Camus, é preciso aceitar o absurdo, a falta de razão e lógica da vida para assim vivermos bem, para assim aceitarmos o fato de que podemos viver a vida sem um sentido. Entrementes, a vida ser absurda não significa que as pessoas tenham que sofrer, pois mesmo vivendo num oceano de perguntas sem respostas, não há o porquê de se desistir da vida. Pelo contrário, temos que enfrentá-la com toda a sua incoerência e absurdidade, sem trapaceá-la. Para Camus, aprender essa verdade (o absurdo, a falta de lógica da vida) é aprender a viver. Como ele afirma quase nas páginas finais do seu ensaio: “É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Apesar de ser um assunto delicado, o melhor que temos a fazer é falar claramente sobre o suicídio com os nossos jovens e adolescentes. O Japão é um exemplo que demonstra ser o diálogo o melhor caminho. Até 1998, o suicídio era considerado tabu no Japão, de modo que era proibido discuti-lo publicamente. Os japoneses perceberam que não falar sobre o assunto aumentava o número da incidência de casos e mortes. Até que, a partir de 1998, o governo decidiu desenvolver medidas de saúde públicas no país para diminuir o número de suicídios, o que deu certo, pelos indícios de suicídio diminuírem a cada ano.
No Brasil, devemos seguir o mesmo exemplo dos japoneses e debater sobre o assunto em casa, na comunidade, nas escolas. Se a escola é o espaço onde, pela primeira vez na vida, nossos jovens e crianças se deparam com as contradições e frustrações intrínsecas a nossa própria existência, ela é, portanto, recinto em que o diálogo sobre a maneira de lidar com as contradições e frustrações da vida deve ser inserido.
Luanda Julião é Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Professora nas escolas da rede pública do município de São Paulo. Autora dos livros “Fiar o tempo” e “A Ária das Águas”.
Visto no: Justificando
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