A história tem nos
mostrado o quão perigoso é para quem detém o poder instruir as minorias. Em
várias partes do mundo, tolher o direito universal da educação é manter
restrito o sistema hegemônico desse seleto grupo de indivíduos, formado por
políticos, donos de veículos de comunicação/publicidade, grandes indústrias,
empresários, em sua maioria, mantenedores de suas riquezas às custas da
exploração e silenciamento dos socialmente excluídos. Aqueles que ousam minar a
ordem vigente tornam-se alvos fáceis para a fúria dos ditos poderosos,
sobretudo se o embate for direto, preciso, voltado a desmascarar suas
incongruências, na busca por um ínfimo espaço de dignidade entre os demais.
Evidentemente nem todos são capazes de violar o que vem sendo pré-estabelecido
há gerações. As razões para isso vão desde a alienação vendida a doses
homeopáticas pelos mais influentes; seja por indiferença, sentimento oriundo da
descrença de qualquer mudança positiva, seja ainda pelo temor à retaliação,
principalmente de ordem física. Entretanto, para alguns, quando o que está em
jogo é a formação educacional do ser humano, nenhuma ameaça é capaz de impedir
a consolidação de certos ideais.
A história de Malala
reafirma o penoso caminho que alguns mártires precisam trilhar para ter
assegurado coisas mínimas para si e os demais como o acesso à educação. No
livro escrito por Viviana Mazza, nos deparamos com a história de vida desta
Paquistanesa, que na época era menor de idade, mas a tenra faixa etária não a
impediu de enfrentar o regime ditatorial dos talibãs, na região de Mingora,
onde ela, família, amigos e toda uma história de vida quase foi extinta, se não
fosse pela coragem dela. Dentre as inúmeras proibições infligidas pelos
extremistas, muitas delas eram voltadas às mulheres, tolhendo suas
individualidades, liberdades e autonomias: uso irrestrito de burcas,
confinamento em casa e impossibilidade de acesso aos estudos. De todas essas
repressões, foi justamente a última que mais inquietou Malala. Vinda de um lar
onde a educação sempre foi uma prioridade para os pais, a menina cresceu
apaixonada pelos livros, cuja fonte inesgotável de conhecimento a instigava.
Estudiosa, rapidamente se destacou entre as demais, sendo considerada várias
vezes como uma das melhores alunas daquela região. Entretanto, em meio a isso,
ela vê sua terra natal envolta em conflitos de ordem “religiosa”/política, com
embates sangrentos que resultavam em destruição de cidades, deslocamento de
refugiados e morte de inocentes.
Um cenário dessa
natureza seria o suficiente para fazer com que muitos se acovardassem,
principalmente uma garota de 15 anos. Mas não foi isso o que aconteceu. Malala
contrariando as probabilidades fez do enfrentamento ao regime talibã sua
bandeira pessoal. Não se tratava apenas de lutar pelo direito pessoal à
educação, que por si só já seria legítimo, mas expandi-lo as demais garotas,
todas proibidas de adquirir conhecimento, a não ser aquele ditado pelos
extremistas. Então, mesmo após escolas serem fechadas, livros incendiados,
militantes assassinados em praça pública, nada disso foi capaz de intimidar
Malala de levar a cabo seus ideais. O preço pago por ela não poderia ter sido
mais caro. Os talibãs atentaram contra à sua vida, quase ceifando-a por
completo. Os tiros desferidos, porém, surtiram o efeito contrário: de
estatística, Malala se tornou porta voz das atrocidades vividas pelos
Paquistaneses, em especial as Paquistanesas, em Mingora, levando ao mundo as
imagens horripilantes de uma garota ensanguentada após receber vários tiros
apenas por querer a permanência dos estudos para as garotas de sua terra.
Felizmente, ela sobreviveu, provavelmente movida pela força emanada pelos seus
livros, pois, quando estava recobrando a consciência, a primeira pergunta dela
ao pai questionava se seus livros estavam a salvo. Algo comovente, diante do
seu imenso sacrifício.
O caráter de
importância dado aos livros por Malala merece nossa atenção. Do Oriente Médio
ao Brasil, passando por várias outras partes do mundo, apenas a leitura é capaz
de oferecer as ferramentas para a transformação da realidade, ainda mais em
territórios hostis, dominados pela violência extrema. Tanto no Paquistão quanto
aqui, muitas minorias veem confinados os privilégios educacionais, responsáveis
por oportunizar melhores condições de vida a todos e todas. Há um temor em
permitir o contato ilimitado ao saber pelos excluídos. Isso não se dá à toa.
Quando temos garantido a efetivação da educação, possuímos as chaves para a
modificação das nossas realidades, transcendendo barreiras construídas para nos
estagnar, ao passo que incentivamos outros marginalizados a percorrer os mesmos
caminhos. Educar é, nesse sentido, encorajar os que vivem às margens a fazer
suas próprias revoluções. É a escada de fuga do fosso de onde somos lançados à
ignorância. Antes de tudo, significa reconstruir as bases humanitárias da
formação do indivíduo, oportunizando a ele um leque de possibilidade para si e
os seus, dando voz as suas causas e relevância as suas lutas. Por essa razão,
quando uma menina de 15 anos teimosamente quebra o silêncio, fortalece toda uma
cultura enfraquecida pelos horrores da guerra a combater a opressão e não se
calar. O maior medo dos talibãs, portanto, não foi o atrevimento da garota, mas
seu empoderamento, fruto de algo maior de que qualquer poder destrutivo humano,
a educação.
Portanto, é do
conhecimento absoluto que as tiranias mais temem, por isso se esforçam tanto em
oferecer tão pouco ao povo, quando não privam esse ínfimo a porções ainda mais
insignificantes de saber, pois assim permanecerão oprimindo os menores sem que
estes tenham total ciência disso. Desse ciclo inacabável de desrespeito contra
a intelectualidade humana surge os incontáveis abismos, onde mulheres, negros,
pobres, índios, entre outros grupos, são arremessados. Malala, porém, foi uma
das poucas que conseguiu escapar com vida desse desfiladeiro, mesmo assim não
está totalmente livre de ser lançada nele. Nenhum de nós está. Por essa razão,
ler a breve história desta garota Paquistanesa, contada por Viviana Mazza, é
crucial para que certos levantes continuem sendo feitos. Sentir em palavras a
narrativa dessa jovem é um soco nas nossas pusilanimidades. Trata-se de ter
ciência de que somos capazes de nos rebelar contra quaisquer injustiças quando
fazemos isso motivados por questões altruístas, e não simplesmente por
egocentrismos. É um exemplo palpável de que a mudança está em nós, nossas
escolhas, decisões e metas. Outrossim, é uma ode à educação inclusiva, postulado
máximo de muitas culturas, mas pouco exercido na prática. No mínimo, é
encantador a maneira como essa garota encontrou nos livros a convicção
necessária para alicerçar um mundo melhor para si, sem perceber que sua noção
de mundo iria se ampliar para todo o globo. Se ela foi capaz de fazer tudo isso
naquelas condições, imagina o que poderíamos ser capazes de fazer com a nossa
realidade? Melhor, quantas tragédias no mundo poderiam ser evitadas se crianças
como Malala tivessem contato com a educação, com os livros?
Precisamos beber de sua
coragem e não sucumbir ao primeiro fracasso.
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