Definitivamente, somos
uma sociedade leiga no quesito artístico, ainda mais quando esta seara percorre
caminhos mais políticos pautados na representatividade de determinados grupos e
temas, bem como na tomada de discussões pertinentes a toda a população.
O que se vendeu às
massas, e continua sendo manufaturado pela grande mídia, é a arte mais vulgar,
mas nem por isso sem valor, apenas mais palatável por não suscitar maiores
questionamentos, servindo meramente a degustação momentânea. Isso não seria de
todo mal, caso os demais fazeres artísticos tivessem seu lugar ao sol,
sobretudo os intimamente carregados de significância dado aqueles que os
produzem e o momento histórico em que estão inseridos.
As Drag Queens fazem
parte do grupo dos injustiçados. Renegadas aos guetos das boates, hoje elas
transpõem seus limites, levando ao grande público seus talentos, a relevância
de seus trabalhos e a coragem de se reinventar no país da intolerância.
O travestismo com viés
artístico é algo bastante antigo e antes da popularização das Drags, era
popularmente conhecido como transformismo, pelo menos aqui no Brasil. Sua
intenção é bem conhecida: homens vestidos e maquiados com elementos do universo
feminino de forma exagerada, com intuito de comicidade, extravagância, capazes
de entreter públicos diversos, muitos embora, durante muito tempo, ficaram
confinadas aos redutos gays, como boates e bares do gênero.
Apesar de haver
clássicos como o filme “Priscila, a
Rainha do Deserto”, elas não conquistaram de imediato o público
heterossexual, educado preconceituosamente ao que diz respeito a aparência
andrógena desses personagens. Então, durante anos, grandes maquiadores,
costureiros, estilistas, viviam vidas duplas: exercendo suas funções pré-definidas
durante o dia e, a noite, incorporando a alcunha de mulheres famosas, ou
simplesmente aquelas inventadas pelos próprios, para mostrar uma forma de
feminilidade artística contida em seus íntimos. Devido ao preconceito, muitos
viviam essa misancene em total
sigilo.
Entretanto, quando há
verdade no que se faz e, principalmente, capricho, a arte tende a sobreviver as
intempéries, alcançando patamares inimagináveis. No caso das Drag Queens,
chegar à mídia televisiva foi um grande passo no Brasil. Há décadas elas
aparecem timidamente em programas de auditório, com suas performances bem
elaboradas, dublagens incríveis e suas primorosas caricaturas.
Algumas conquistaram
espaços como repórter, ganharam destaques em determinados quadros, contrariando
todo o conservadorismo de ontem e hoje. Isso só foi possível, além da
persistência dessas profissionais, do seu inegável talento, que surgi da mera
observação de seus ídolos, fora a autodidata capacidade delas de metamorfosear
o ideário feminino em algo contemplável, mas sem o apelo a sexualização do
corpo da mulher, ou sua redução aos estereótipos construídos pelo machismo
vigente.
As Drags, ao invés
disso, levam em carne e osso um ideal artístico de mulher vivo, como se um
quadro ganhasse vida, permitindo ao público tocar, conversar, tirar uma foto
com o criador e a criatura ali personificados.
Evidentemente as
influências estrangeiras foram determinantes para a mudança de paradigma do que
é ser Drag Queen no país. Essa transformação tem nome, sobrenome e apelido, RuPaul's Drag
Race. Esse reality show foi
declaradamente um divisor de águas, levando ao grande público a pirotecnia
dessas artistas, antes reféns dos poucos universos LGBT´s.
Para a
surpresa dos mais conservadores, aqueles homens travestidos de mulheres,
disputando entre si para conquistar o título de a melhor Drag, conquistaram
telespectadores para além do público gay, de idades e classes sociais bem
distintas. Soma-se a isso a redemocratização do acesso à internet, há a
popularização de Drags YouTuber’s, com seus tutoriais impecáveis de maquiagens;
outras lançando-se de vez na comédia, com personagens próximos da realidade
brasileira; algumas conseguiram se destacar na TV e na rede ao mesmo tempo,
seja fazendo shows performáticos, seja como convidadas; outras participam de
filmes, seriados, se lançam no mercado da música.
O que
se vê é uma invasão de Drag Queens, com influências bem distintas, de épocas e
contextos bem particulares, levando sua arte a um público cada vez mais
receptivo, apesar de muitas vezes não compreender bem o que está sendo
produzido para seu entretenimento.
Com a ascensão
meteórica da Drag mais famosa do Brasil, Pabllo Vittar, a sociedade se depara
com outra face dessas artistas, a música. Antes, a dublagem era o que compunha
os espetáculos Drag. Agora muitas delas têm canções próprias, com repertório
que agrada gregos e troianos.
Infelizmente, porém,
toda repercussão “repentina” leva muitos a olhar de cara feia para essas
artistas, alegando pobreza artística, sobretudo quando há o quesito voz
envolvido. Todavia, os opositores focalizam num ponto e desconsideram o todo.
Muitas Drags cantam
mal, assim como muitos cantores não Drags também. A questão não se reduz a
isso, mas a representatividade que tais indivíduos proporcionam a milhares de
pessoas, que se veem excluídas por uma cultura que invisibiliza certas
demonstrações de arte por puro preconceito.
Decerto, a ausência de
talento vocal não pode inferiorizar o cuidado com a construção de um personagem
feito exclusivamente para transmitir alegria a todos que o assistem. Ainda mais
o poder político-ideológico dessas artistas num Brasil onde qualquer tentativa
de macular o que se elaborou como do universo masculino pode resultar em
diversas formas de violência, às vezes até morte.
Aos que se opõem a
chegada das Drag Queens ao mercado consumível nacional, não pensem que elas
vieram do nada. A trajetória do transformismo em todo o mundo é bem antiga,
assim como as razões que levam essas pessoas a se aventurarem em se fantasiar
do sexo oposto. Ninguém faria isso se não houvesse um propósito maior.
E a arte é o lugar onde
a nobreza do talento das pessoas mostra sua face mais criativa, através da
valentia daqueles que se utilizam do inconformismo para, suavemente, lançar
suas críticas à sociedade. Afinal, nada mais imperceptível do que problematizar
a realidade por meio da arte.
É isso que as Drags tem
feito há anos: questionar o que é ser homem e mulher; ressignificar os
espetáculos teatrais; ri das hipocrisias da sociedade que as aplaude; se
infiltrar nos espaços binários e garantir sua morada; apresentar um trabalho
sério, custeado muitas vezes pelo próprio bolso, com pouquíssimo ou nenhum
retorno financeiro; demonstrar um respeito descomunal pelo palco, pelos
artistas que nele estrelaram, oportunizando que outras Drags possam garantir
seu lugar na ribalta; além de presentear o público com um misto de arte (dança,
música, interpretação, maquiagem, pintura, costura, criação, etc.), digno de
grandes artesãos.
Por tudo isso, as Drag
Queens vieram para ficar sim. O quão bom é isso para a sociedade? É cedo dizer.
Então, só resta o
espanto da contemplação.