Sempre que leio um
clássico da literatura universal, sinto como se não tivesse captado todas as
nuances de suas páginas; como se fosse preciso regressar ao início e reviver
aquela leitura para empreender algum conceito palpável a tudo o que deveria ter
sido absorvido por mim e permanece flutuando em profusão na minha cabeça.
Talvez seja esta a definição mais pungente de ignorância literária a qual fui
capaz de esboçar até aqui. Evidentemente que este aparente fracasso interpretativo/compreensivo
não se dá em todos os clássicos mas, sobretudo, naqueles que mimeticamente se
aproximam da realidade espectral do ouvinte, ferindo-o, tocando-o, revelando os
recônditos dos seus segredos mais obtusos, ou, no geral, autorretratando um panorama
de passionalidade que muito se assemelha ao recriado pelo enredo, mesmo sendo
necessário guardar as devidas proporções entre a obra e este humilde leitor.
Decerto, a paixão ensandecida de Humbert Humbert pela Lolita resgatou
profundamente em mim as nuances deste sentimento.
Vindo de relações mal
sucedidas no Velho Mundo, Humbert se vê hipnotizado pela pequena Dolores Haze,
uma garota de doze anos, que desperta nele os pensamentos mais lascivos, mas
nunca levados a completude da cópula tradicional. Dessa alucinação, uma série
de acontecimentos faz do cínico personagem, o lastimável sofredor, lânguido,
determinado, sanguinário amante/padrasto/companheiro da garota. Seu cinismo
merece relevante atenção porque dele deriva toda a empatia criada pelo narrador,
numa controversa jogatina literária a qual nos faz compadecer diante da
desfaçatez das atitudes de Humbert, tratando-o, a priori, não como um obsceno
senhor de meia idade, abusador de menores – e que ao longo da narrativa ganha
outros simulacros criminosos – mas como um louco apaixonado, irremediável em
suas ações e nem por isso indigno de realiza-las. É como se a insolência dos
atos infligidos aquela menina fossem menos importantes do que sentimento
urgente vivenciado pelo personagem ora narrador em sua sofreguidão.
Não obstante, não
podemos incorrer pelo risco que categorizar a obra em algum limiar estritamente
erótico, como fora deveras feito em sua época de publicação. Eu mesmo calhei
nesta falha mesmo antes de folhear as primeiras páginas do romance. Se serve de
justificativa, meu engano se deve a forma como Lolita é perpassada por alguns
leitores, editoras e o senso comum, todos desavisados sobre as tramas envoltas
no livro, ou desrespeitosamente desvirtuando-a para, a partir de uma polêmica
pífia, atrair mais vendagens ao clássico, artificio por si só vulgar, que
provavelmente suscitaria a revolta do autor, caso este estivesse neste plano. O
correto, porém, é afirmar que Lolita nem de longe passa a fazer parte de uma
obra obscena, mesmo que olhares mais puritanos consigam encontrar indícios
disso. É um romance de paixão e loucura, metáforas e clarezas, encontro entre
mundos físicos, sociais e psicológicos, trazendo à tona uma profundo
entendimento dos desejos humanos, não apenas os sexuais, mas também outros tão
abstratos tanto, sem enveredar para os legados, às vezes clichês, das meras
reflexões.
Das poucas obras lidas
até agora, poucos livros me proporcionaram momentos tão risíveis quanto Lolita.
Meu riso vinha naturalmente em várias passagens, ora de maneira incontrolável,
ora por incômodo, por mero compacto de ideais, por desdenhosa similaridade com
o que vivenciava o personagem; muitas vezes era um arquejar de dentes autômato,
como se o autor quisesse arrancar do leitor alguma comicidade capaz de safá-lo
do seu total impudor. Não entendam risos aqui como gargalhadas, analisando
precipitadamente a obra como burlesca. Não seria verdade. O cômico funciona
como justificativa, mais um dos muitos recursos de Humbert Humbert para
permanecer a cabo dos seus planos amorosos, mesmo que para isso precise se
utilizar de uma sutil comédia. Funciona. Em meio às barbaridades feitas pelo
autor, esquecemo-nos temporariamente de suas ações quando somos confrontados por
seu senso de humor, refinado, mordaz e definitivamente descarado.
Refinamento que se
atribui também a linguagem.
Uma das possíveis dificuldades que o leitor amador
(eu me incluo neste bojo) vai encontrar são as constantes passagens em francês
perfiladas pela obra. São muitas, desde pequenas frases até parágrafos inteiros
escritos naquele idioma. Para os não familiarizados noutra língua, haverá uma
ligeiro impedimento em compreender certos enunciados. Outros, porém, o contexto
poderá ser de grande ajuda. Entretanto, mesmo sem uma ou outra alternativa, o leitor
não ficará flanando sobre o enredo, pois sua totalidade nos dá material
suficiente para que o entendamos. A questão vocabular foi outro ponto que me
chamou muito atenção. Poucas obras lidas trazem um léxico tão rico em apenas
trezentas e poucas páginas, sem necessariamente soar verborrágico, algo muito
comum entre obras cujo pedantismo linguístico inibe o melhor entendimento da
narrativa. Então, caso você não seja grande conhecedor da língua, mas apenas um
amante dela, um caçador de códigos como eu, vai certamente aprender muito com a
parte vocabular desse romance.
Seja como for, Lolita
requer mais tempo de leitura e releitura. Acredito que essa será uma obra da
qual eu terei de ler, reler e reescrever mais cautelosamente para merecer uma resenha
da grandiosidade de sua inventividade. Por ora, o que está aqui é um esboço
qualquer de um leitor canastrão, iniciante, como um adolescente que se delicia
dos primeiros prazeres da vida sem saboreá-los parcimoniosamente. O que sei é
que precisava expor as medíocres sensações despertadas em mim a partir da
leitura dessa obra. Retomando a minha incapacidade de preencher todas as
lacunas abertas pelos clássicos, percebo a cada leitura deles que estou perto
do longínquo entendimento do quão importante é a literatura universal para a
transcendência humana. Somos muito pequenos sem esta forma de arte, que nos
desperta questões sensoriais incalculáveis. Talvez por isso sua imortalidade se
justifique, não apenas pelos mecanismos literários ricos ou originais de seus autores,
mas pela impecável capacidade de narrar em algumas páginas questões atemporais,
que apenas mudam de cara, época e corpo físico, mas continuam vívidas em nossas
essências selvagemente humanas a servir de inspiração.
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