Para Eliane Brum, quem melhora o meu olhar.
Nudez
Nosso modo de ver mudou desde a invenção das imagens técnicas. Lembremos do tempo do olho nu, quando se contemplava o céu como um mistério, comparado aos dias atuais em que a astronomia avança na alta tecnologia dos telescópios que nos dão as imagens inimagináveis de planetas distantes. Comparemos nossa forma de ver quando alguma parte exposta do corpo do outro se tornava escândalo tendo em vista que hoje em dia as superfícies nuas dos corpos se tornam mercadorias banais. Lembremos dos corpos dos indígenas, cuja nudez foi tão invejada, a ponto de ser odiada e destruída…
Pensemos no avanço dos procedimentos visual-tecnológicos nos dias de hoje e entenderemos a nudez em seu grau máximo: o feto visto dentro da barriga da mulher grávida.
Nossa nudez atual não tem mais muito a ver com a antiga nudez. Estamos nus por uma simples operação tecnológica que muda por completo o que experimentamos como “Visão” e como “Nudez”.
E, apesar de tanta tecnologia que nos faria pensar que estamos livres da superstição, ainda estamos na época do olho gordo. Para muitos isso pode parecer uma contradição. Mas a hipótese mais interessante nos propõe pensar se as tecnologias não especializaram essa nossa “capacidade” arcaica…
Uma erótica política, uma política tanática
Nosso olho é órgão erótico. Em outras palavras, é um órgão do desejo. E o desejo – em tudo parecido com a popular “curiosidade” – nos faz buscar a nudez. A nudez era para os antigos filósofos, uma manifestação da “verdade”, um des-velamento, que tinha a ver com abrir os olhos para ver melhor, além, mais longe. Na época das ciências e tecnologias, a verdade se tornou um conceito frio, ela é um efeito da investigação que se contenta com o resultado imediato – e literal – da técnica. Parece até que a técnica, em vez de nos ajudar a ver, e a pensar, nos impede, ou nos livra de ver, e de pensar…
A visão – o ato de ver – é a manifestação de um desejo de ir além de si. Isso quer dizer que a visão não é vazia, mas carregada de uma dúvida. Por isso, ela encantou os filósofos desde o começo. Ora, quem nunca abriu uma bonequinha russa para ver aquela outra que ela tem por dentro de si? O desejo é como uma bonequinha russa que no seu vazio carrega outra bonequinha russa. Isso explica a relação entre desejo e olhar: quando vejo, desejo a bonequinha russa que esta dentro da bonequinha russa. O desejo gosta da surpresa, realiza-se na novidade, e quando se acostuma a ela, quer mais.
Se é verdade que o desejo é desejo do outro, isso só pode querer dizer que o desejo do outro está sempre além do outro. É o que eu espero nele, mas além dele. Por isso, quando amo, amo o desejo do outro, o desejo que o outro tem por outros, por outras coisas, até o desejo que o outro possa ter por algo que sou “eu mesmo”. E há algo de espantoso, de surpresa nisso. No campo do desejo trocamos desejos de desejos. Oferecemos desejos, oferecemos o desejar em geral. A vida das relações humanas é feita disso, desse desejar incessante. De um movimento erótico que é, em si mesmo, um movimento alegre, que tem mais a ver com a potência da alegria da qual falava Spinoza, do que com a armadilha do sexo com que toda uma cultura confundiu a simples alegria de viver (na qual o sexo é apenas parte e não pode ser o todo) que define o que estou chamando aqui de “erótica”. E podemos falar de uma erótica da vida em geral. E essa erótica é sempre política, porque tem a ver com o que fazemos uns com os outros. Uma tanática política é todo um momento de impotência como o que vivemos hoje.
Por isso, talvez não haja nada mais triste do que a ausência de desejo. O desejo é a nossa potência, o que nos faz ir além do que somos e, desse modo, nos permite estar em nós. Assim: somos essa tensão que não se contém em si e por isso mesmo permanece contraditoriamente inteira enquanto está em falta.
Administração da inveja como um meio para a burrice.
Mas já não vivemos tempos eróticos. Vivemos tempos “tanáticos”. Lembro aqui da oposição clássica entre Eros e Tanatos (vida e morte) que faz parte do pensamento psicanalítico e que tem tudo a ver com a oposição spinoziana entre alegria e tristeza, entre potência e impotência.
O momento “tanatológico”, esse contrário desejo de morte, ou desejo de tristeza, ou impotência para a alegria, que vivemos agora, tem tudo a ver com a impotência das impotências caracterizada pela inveja. Talvez possamos entender como chegamos a este estado de fascistização da sociedade e da mentalidade entendendo o elo nefasto entre a produção social da burrice – não como ignorância filosófica, aberta e generosa, como é sempre bom deixar claro, mas como ignorância prepotente, fechada e autoritária – e a administração da inveja como um meio para a burrice.
Em nossa época poderíamos dizer que a publicidade e a televisão administram o desejo, nos fazendo comprar, votar e crer. Mas justamente comprar o que não precisamos, votar em quem não nos representa, crer no que não cremos, nos deve fazer pensar em uma estranha forma de viver esse “desejo”.
Se nosso desejo está administrado, é bem provável que ele tenha se tornado alienado. E desse modo, impotente. E assim como a inteligência impotente chama-se burrice, o desejo impotente chama-se inveja.
Ora, entre a inteligência e o desejo há uma correspondência. Do mesmo modo entre a burrice e a inveja. A burrice é alcançada por tentativas frustradas do desejo de conhecer. Diante de respostas ou de estímulos negativos à nossa inteligência como capacidade de investigar o mundo, o outro, a sociedade, como busca por entender, como desejo de nudez, somos “tapados”; nossos olhos que desejariam ver mais longe, ampliar sua visão de mundo, são tapados, encobertos, enceguecidos, nublados, com véus finos até muros cimentados, até o cimento da morte que é a “burrice máxima” em termos cognitivos e políticos. Que o poder atual se valha dela, é uma questão também administrativa.
Podemos, por isso, dizer que a televisão e a publicidade (às quais a experiência política e religiosa estão atreladas ao nível das instituições), administram, na verdade, a inveja.
Inveja é desejo impotente, é desejo cancelado, mutilado. Assim como a burrice é uma mutilação cognitiva e moral, a inveja é uma categoria que precisa ser vista de um ponto de vista moral e cognitivo. Ela é, assim, como a burrice, produzida e manipulada.
A nossa dificuldade de aprender certas coisas vem da produção da burrice por meio da inveja. Todo indivíduo inteligente é desejante. Todo indivíduo cognitivamente impotente é invejoso.
Importência
Quando sentimos inveja nos sentimos “burros”, mas ocultamos isso. Há uma estranha realização nisso. A contraditória realização que nos traz toda irrealização. Somos despreparados para o desejo do outro porque somos despreparados para o outro. Somos preparados para o desejo do outro pelo rosto espelhado do outro. Desde pequenos temos que ser olhados e convidados à linguagem pelo outro. Mas podemos ser mal recebidos, o outro pode se apresentar a nós como uma promessa não cumprida. Então nos tornamos fechados para ele.
Então nos contentamos com o mero ver o rosto do outro como um outro e não como um espelho. Eu invejo aquilo que eu nego como espelho.
Não se trata no ver da “inveja” de uma contemplação do rosto do outro (da sua identidade, do seu modo de vida). Aliás, a contemplação é da ordem do pensamento aberto, filosófico, meditativo. Ela requer uma postura diante do espelho que sempre experimentamos diante de qualquer pessoa que nos olha ou que poderia nos olhar. Pensar é ter a noção da distância com esse rosto. é perceber a diferença. A inveja não possui essa chance de pensamento. Falta-lhe espelho, logo falta distância ou tudo parece distância, o que dá no mesmo.
O olho do invejoso está morto para o outro, parado, destrói no ato mesmo de ver. Ele vê o outro como um morto. E destrói por sua impotência. Destrói porque a impotência em si mesma é destrutiva, já é desejo destruído antes de ter nascido. Onde algo deveria existir, onde algo deveria nascer, onde algo novo poderia surgir, é antes devorado pela força da pura impotência. Fingindo-se de morto, ele se dá ares de “importência”, um misto de importância com impotência, que mascara a dor de não poder ser nada senão alguém que queria ser o outro que ele julga estar melhor do que ele, completo, total.
Assim diante das vitrines, das televisões, das telas dos celulares, nos tornamos “importentes”. Então compramos, votamos, e praticamos outras aberrações da crença.
É na etimologia da palavra que está guardada a sua verdade histórica. Invidia, mais que falta – a falta do seio da mãe que amamenta o irmão nas Confissões de Agostinho – põe em jogo algo como um excesso de ver. Esse excesso de ver que não deixa espaço para a dúvida, essa “gordura” de quem devora tudo, sem deixar espaço vazio para a digestão que é o pensamento reflexivo – o ruminar de que falava Nietzsche – é a forma básica da inveja.
Uma cultura em que a inveja se tornou o afeto regulador da vida só pode dar em fascismo.
Invidia ou uma visão de merda: sinais para pensar mais
Santo Agostinho nos dá de uma vez a fórmula do ver e da inveja: “video, sed non invideo”, se vejo, mas não in-vejo é porque vejo na medida dos meus olhos, porque meu olhar não é mais que a visão que contempla. Não invejar é o desafio. Por que a inveja implica querer tomar o lugar do outro. Ver é externo à coisa. Ver é tátil, tangencia àquilo com que se relaciona. O simplesmente ver define que há olhos abertos ao outro em busca de informação, reflexão, pensamento. A inveja não se contenta com o contemplar, ela quer mais, ela quer devorar com o olho.
A mistura da função do olho com a função da boca, essa “fome do olho” (sobre a qual falei em meu Olho de Vidro) é uma fome insaciável. Ela é a própria inveja. No caso das tecnologias visuais que nos atacam com obsessão na viciante cultura do espetáculo (nos termos da sociedade fissurada), define a inveja como uma espécie de fome louca em relação à qual temos aquele efeito de “larica” que nos faz querer mais sem poder usufruir do prazer de comer, porque a fome artificial, produzida por um droga, devorou todo prazer.
O olhar que caracteriza a inveja como uma função não é só análogo à boca, mas também ao furo anal. Ela tem relação com o ato de reter aquilo que não quer perder. Lembro do meu “olho de vidro”, a metáfora para a televisão como prótese de conhecimento. Assim o “olho de vidro” que é a televisão (esse aparelho pedagógico da inveja) é, como no sonho do Homem dos ratos de Freud, aquilo que se põe no lugar dos olhos. O homem dos ratos via excrementos no lugar dos olhos da filha de Freud. Segundo Freud, o estrume no lugar dos olhos da garota mostrava o desejo do homem dos ratos. Ele se casava por dinheiro muito mais do que por seus “belos olhos”. O fato de que ele visse os olhos com estrume informa-nos que ele fantasiava esses olhos como ânus (lembremos de Bataille e sua “História do olho”). A fantasia necessariamente informa de um desejo, mas além do desejo anal, e do erotismo anal sobre o qual podemos hipotetizar, muito mais o que surge é a passagem entre uma coisa e outra: “vir para fora do reto pode ser representada pela noção oposta de mover-se para dentro do reto (…) e vice-versa”. Em resumo, nesse registro, a inveja seria uma visão de merda.
O estrume é ele mesmo a prótese, como o dinheiro é prótese, substituto ideal – e por isso universal – de objetos e coisas em geral que, diante dele se tornam meras mercadorias. A inveja é este olhar que retém fezes como um orifício anal, como um cofrinho retém moedas.
Aquilo que não se quer perder deve ser devotado aos olhos. A cultura visual é uma cultura da retenção, do medo à perda, da evitação do luto das coisas que senso vistas, são guardadas como coisas mortas. A inveja é, assim, espécie e olhar que não deixa de ver por medo de perder o visto. Invejoso que sou, agarro com meu olho, como com meus olhos. Retenho a minha merda, um mundo que transformei em merda. Um mundo de mercadorias. Mau uso do órgão criativo que é o ânus…
A inveja primeiro é pensada como uma cobiça, como anseio em obter pelo ver, em possuir pelo ato de ver, possuir aquilo que o ânus, ele mesmo oco, possui. A inveja é o olhar transformado em pura intencionalidade, não um olhar que tangencia a coisa, mas ontologicamente a devora para dentro de si e a vomita. Olho devorador e bulímico. A inveja é, assim, não apenas, um olhar que penetra, que invade, mas que, invadindo, elimina tomando para si aquilo que quer negar no instante mesmo de seu gesto secreto.
O olhar que devora as coisas é devorado pela tecnologia que dele apreende o modo de ser e o reproduz devolvendo-o na forma de uma prótese que imita o corpo a que deve servir. Foi a natureza do olho que se modificou no processo, ele mesmo invejoso da própria tecnologia. O orgânico olho humano foi devorado no ato de ser informado pelas tecnologias, elas mesmas informadas por teorias que derivam de um gesto: de um olhar. Não apenas o olho devora, mas ele mesmo é o resultado de uma evisceração. Como se o olho que imita o olho tecnologicamente tivesse sido reimplantado no corpo humano. O olho humano não é mais puro olho.
Olho devorador, somos todos convidados à glutonaria ótica própria do tempo do visual sintetizado na publicidade como forma de vida. É ela hoje o sistema que nos convida à inveja programada diariamente para nos impedir de contemplar e de, assim, desejar verdadeiramente.
A política de hoje tem tudo a ver com isso.
Melhorar o nosso olhar é o que nos cabe antes que tenhamos devorado uns aos outros pelos olhos e aniquilado nossa chance política.
Vista na: Cult
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