08 janeiro 2016

Negro Drama


A precisão musical e a contundência que traziam era equivalente a um novo "Navio Negreiro", de Castro Alves
Leonardo Lichote
Os versos pintam um quadro seco e duro como a base rítmica:
“No último Natal, Papai Noel escondeu um brinquedo
Prateado, brilhava no meio do mato
Um menininho de dez anos achou o presente
Era de ferro com doze balas no pente
O fim de ano foi melhor pra muita gente”

Na letra, o tempo todo, a miséria da periferia paulistana aparece contrastada com a alegria tranquila e abastada da classe média, retratada com termos pejorativos – playboys lavando carro, a vaca loura jogando suas armas de sedução atrás de um homem com dinheiro. O título idílico coroa, com ironia, a denúncia da desigualdade: “Fim de semana no parque”.
A música foi a primeira dos Racionais MCs a romper a barreira do gueto e chegar a rádios de pop-rock do país, na primeira metade dos anos 1990. Surgido no fim dos anos 1980, o grupo já tinha construído pelo menos mais um clássico no cenário do hip hop, “Homem na estrada”, saga trágica de um ex-presidiário “que se recuperou e quer viver em paz/ não olhar para trás/ dizer ao crime: nunca mais”. O ambiente que o cerca é desenhado em pinceladas certeiras: a lógica implacável da guerra do tráfico; a imprensa sensacionalista alimentada por essa lógica; a dinâmica da economia que torna as drogas um negócio rentável para a “diretoria” (ricos que contam os lucros longe da favela).
“Um mano meu tava ganhando um dinheiro,
Tinha comprado um carro, até rolex tinha
Foi fuzilado à queima roupa no colégio, abastecendo a playboyzada de farinha
Ficou famoso, virou notícia, rendeu dinheiro aos jornais, cartaz à policia
Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares… superstar do Notícias Populares
Uma semana depois chegou o crack, gente rica por trás, diretoria
Aqui, periferia, miséria de sobra
Um salário por dia garante a mão-de-obra
A clientela tem grana e compra bem, tudo em casa, costa quente de sócio.”

Naquele Brasil pré-Plano Real, os Racionais MCs traziam em sua música, sem disfarces, o rancor de séculos de opressão racial – rancor personificado na figura sisuda de Mano Brown, sujeito avesso a entrevistas. Apesar de o cotidiano dos morros terem sido temas de inúmeros sambas antes, sempre havia o humor ou o lirismo para atenuar o desenho – enfim, nunca tanta crueza havia sido exposta na canção popular brasileira. A força da chegada daquele discurso (ponta de lança de uma geração do hip hop que vicejava em periferias de todos os cantos do Brasil) – com a qualidade literária (sim, de uso eficaz, criativo, potente da palavra), a precisão musical e a contundência que Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay traziam – era equivalente a um novo “Navio negreiro”, de Castro Alves. Se “Navio negreiro” tivesse sido escrito pelos escravos.
A emergência desse discurso já seria, por si só, algo grandioso. Mas há mais sob a aparente lógica sem tons de cinza dos Racionais MCs, que divide o mundo em preto/branco, certo/errado, mano/playboy. Há uma complexidade insuspeita na dicotomia seca que o grupo expõe – há um Brasil vivo ali, enfim. Há pistas disso já em “Fim de semana no parque”. A faixa tem a participação de Netinho, do grupo de pagode Negritude Jr. (com seu canto-sorriso, seu romantismo açucarado, em tudo oposto ao ideal dos Racionais MCs, de uso da música para conscientização do povo preto). Um dueto que ecoa o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. A ideologia aparentemente monolítica, pétrea, dos rappers, ganha reentrâncias insuspeitas para que se encaixe um velho amigo – Netinho e Mano Brown se conheceram na adolescência. A lealdade da amizade sobreposta à lógica do discurso – Mano Brown também participa de “Gente da gente”, faixa de álbum homônimo dos pagodeiros – se não suaviza, pelo menos oferece novas camadas de compreensão para os Racionais MCs.
Na mesma faixa, há samples (fragmentos) de Jorge Ben Jor, extraídos das canções “Frases” e “Dumingaz”. A presença sempre solar do autor de “País tropical” – que, em letra e música, sempre escolheu ser contundente pelo caminho da alegria, diferentemente dos rappers do Capão Redondo – não está ali como ironia, deslocamento. Tudo é muito mais. Primeiramente, porque “Frases” traz exatamente como personagem um menino “que não é ninguém”, como o garoto de “Vamos passear no parque”. Em segundo lugar, porque Ben Jor é o ídolo maior de Brown e seus colegas de grupo. O carioca é convidado de honra do DVD 1000 trutas 1000 tretas, primeiro dos Racionais MCs, lançado em 2006.
A proximidade de Racionais MCs e Ben Jor emerge da mesma dinâmica que fez com que o líder do grupo incorporasse o nome de James Brown ao seu – tanto o mestre americano como o brasileiro carregam a afirmação positiva, explosiva, celebratória do poder negro, black power, na forma como dizem que black is beautiful, negro é lindo. Mais que isso, essa proximidade Racionais-Ben-Brown tem raízes históricas, na maneira como se desenhou a formação musical dos jovens de periferia brasileiros dos anos 1970. Os bailes (nas ruas) e as vitrolas (nas casas) eram alimentados pela black music americana de James Brown, Marvin Gaye e George Clinton ou pelo sambalanço de Ben Jor (então Jorge Ben), Bebeto, Luís Vagner.  Essa pré-história do hip hop nacional é mostrada pelo própria banda, num documentário dirigido por Mano Brown, extra do DVD 1000 trutas 1000 tretas. O ato de produzir o filme revela que a ambição educativa do grupo vai além de suas letras – há ali o desejo mesmo de desenhar a narrativa na qual os Racionais MCs se inserem na realidade brasileira, por identidade de classe, política, histórica.
Dessa forma, indiretamente, eles atacam a famosa teoria de “linha evolutiva” da música brasileira, lançada por Caetano Veloso – linha que vem do samba, passa pelo samba-canção, por João Gilberto, desemboca nos festivais, na Tropicália e segue se desdobrando até hoje. Ou, se não a contradizem, os Racionais pelo menos apresentam uma bifurcação bastante interessante, com um corte de classe. Marcelo D2 costumava dizer que na sua casa (de classe média baixa, suburbana) não se ouvia Chico e Caetano (em outras palavras, a geração dos festivais), e sim Bezerra da Silva e João Nogueira – sambistas então contemporâneos, que falavam da realidade daquele momento. A lógica é essa. As referências que formaram os Racionais ajudam a entender como eles se posicionam frente à tradição musical brasileira – e à americana, matriz do hip hop.
É ilustrativo o episódio de 2003, dos bastidores da participação dos Racionais MCs no programa “Ensaio”, de Fernando Faro – que documenta há décadas o caminhar da música brasileira. Como revelado em reportagem de Pedro Alexandre Sanches na Folha de S. Paulo, antes da gravação, Faro tentou identificá-los com a tradição dos sambas produzidos por compositores que retratavam a periferia que vivam – no caso, Wilson Baptista, autor de canções como “Mulato calado” (“A polícia procura o matador/ mas em Mangueira não existe delator”) e “Pedreiro Valdemar” (“Fez tanta casa e não tem casa pra morar/ Valdemar, que é mestre no ofício/ constrói um edifício e depois não pode entrar”). Sobre Baptista, eles dizem que não conhecem (“É samba-rock?”). O samba aparece quando Brown lembra que cantava “as músicas conhecidas da época, de Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Leci Brandão, Beth Carvalho”.
Ecoa neles aquilo que Caetano (novamente) chama de “vontade fela-da-puta de ser americano”, que identifica como desejo comum a Raul Seixas e aos rappers brasileiros (“Quando eu passei por aqui/ a minha luta foi exibir/ uma vontade fela-da-puta/ de ser americano/ e hoje olha os mano”, canta em “Rock’n’Raul”). Afinal, os códigos do hip hop brasileiro, do qual os Racionais MCs ajudaram a desenhar a cartilha (antes deles, pioneiros como Thaíde e DJ Hum) estão profundamente arraigados nos códigos do hip hop americano de grupos como Public Enemy e Run DMC. Como Tim Maia fizera anos antes ao traçar um soul brasileiro a partir de seu fascínio com a cultura americana e a música que os negros de lá produziam – o cantor é outra referência central para os Racionais MCs, e é da “fase Racional” de Tim Maia que vem o nome do grupo (e talvez parte do caráter quase religioso, evangelístico do discurso dos rappers, anti-álcool, antidrogas, com doses de misoginia).
A afirmação positiva do poder negro via Jorge Ben Jor e James Brown, a combatitividade dos rappers americanos (e seus antecedentes, como Malcolm X, referência para Mano Brown), a vontade fela-da-puta de Tim Maia, a realidade crua da periferia de São Paulo – exposta não por quem vê de fora, mas sim na primeira pessoa da voz do presidiário, de quem sofre violência policial, de quem tem o desejo do consumo alimentado pela propaganda e vetado pela falta de dinheiro, de quem sofre preconceito de classe e de cor ao circular pela cidade (nas canções do Racionais MCs, tanto quanto no funk ostentação, estão reveladas sementes dos chamados rolezinhos que eclodiram há alguns meses). As bases dos Racionais MCs que o país conheceu nos anos 1990 vêm dessa combinação. E aparece resolvida sem arestas, redonda, com sua força máxima, em Sobrevivendo no inferno, álbum de 1997 que, mesmo lançado de forma independente, ultrapassou a marca de um milhão de cópias vendidas (500 mil oficialmente).
As bases instrumentais do álbum são aparentemente simples, como se houvesse um cuidado para que elas não roubassem atenção das letras – a música está ali para potencializar as palavras, mais eficiência do que surpresa. A gravação de “Jorge da Capadócia”, música de Ben Jor baseada na oração a São Jorge que abre Sobrevivendo no inferno,  é um dos marcos mais bonitos, profundos e significativos da trajetória dos Racionais MCs, ao apontar com clareza raízes ao mesmo tempo em que anuncia novas possibilidades, em música e letra, para os Racionais MCs, para além das dicotomias.
Somente cinco anos depois eles lançariam o álbum seguinte, o duplo Nada como um dia após o outro dia. Ali, eles cantam de outro lugar. Não mais da periferia, mas do lugar de quem a conhece, mas saiu dela pelo trabalho. “Negro drama” dá mais uma volta no parafuso, quando Brown canta que seu “negro drama” segue mesmo quando ele está num carrão. E analisa, provocador, o fascínio da classe média com ele, sua entrada no circuito de popstar – e da própria adoção do hip hop como a grande música pop dos anos 2000, adorada por playboys de todas as latitudes do mundo.
“Inacreditável, mas seu filho me imita
[…] esse não é mais seu
ó, subiu
entrei pelo seu rádio
tomei
cê nem viu
nós é isso, aquilo
o que
cê não dizia

seu filho quer ser preto
que ironia”

De alguma forma, antecipam e documentam a ascensão social de toda uma geração de jovens da periferia – num movimento movido por ações governamentais da gestão lulista (Bolsa Família, ProUni) e pelo controle da inflação implementado por Itamar Franco/ Fernando Henrique uma década antes. A periferia era outra. O próprio amadurecimento fazia com que surgissem raps como “Jesus chorou”, uma ode à lágrima do guerreiro, de um lirismo duro, mas lirismo:
“Clara e salgada
cabe em um olho e pesa uma tonelada
tem sabor de mar
pode ser discreta
inquilina da dor
morada predileta
na calada ela vem
refém da vingança
irmã do desespero
rival da esperança”

A própria lista de samples do disco – que inclui Almir Guineto e Ray Davies Orchestra – aponta o desejo de explorar novas fronteiras. “12 de outubro”, outro exemplo, é uma fala de Brown sobre uma base de um solo de “violão brasileiro”. A complexidade latente em “Fim de semana no parque” começava a se tornar patente. Brown, que por anos se mostrou irredutível por sua posição quanto à Rede Globo, em entrevista no ano passado à Revista Fórum avaliava a conquista de espaço do povo dentro da emissora, via “autores mais jovens”: “Três governos de esquerda eleitos pelo povo, o Brasil pagou a dívida, a classe C tomando espaço e a Globo expondo isso na novela, todo mundo analisando, os autores são mais jovens e começaram a mudar a mente, as ideias começaram a ir pra tela e os movimentos ganhando força a partir das ideias, muita coisa junto”.
Ao mesmo tempo, o episódio do quebra-quebra na Virada Cultural de 2007, no confronto entre público e polícia durante um show do Racionais MCs – e o consequente discurso preconceituoso que nasceu daí para explicar a confusão, responsabilizando o grupo e seu público (“pretos e pobres de periferia” era a mensagem subliminar) – mostrou que tensões das quais eles falavam desde a sua fundação (e que eram filhas daquelas de “Navio negreiro”) ainda estavam vivas.
A última música lançada pelos Racionais MCs, “Mil faces de um homem leal”, tributo a Carlos Marighella (“Um cara de um valor inestimável, gigante para a história do Brasil e para a raça negra também”, disse Brown na ocasião do lançamento, em 2012), tem a agudeza que consagrou os rappers. Mas agora, ligada a um contexto político até então inédito para o grupo: a ditadura militar – e a dinâmica “direita x esquerda” que advém dela e que renasceu no debate político nacional, turbinado em blogs e redes sociais. Para onde vão os Racionais MCs? Para onde vai o Brasil e sua periferia, parece a pergunta certa.
Leonardo Lichote
é repórter e crítico musical no jornal O Globo

Visto na: Cult

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