Em um texto recente sobre a importância de intervir no machismo cotidiano, afirmei
que o feminicídio é o assassinato de mulheres motivado por machismo. Ou seja, a
mulher vítima do feminicídio é morta pelo simples fato de ser mulher.
Isso acontece de diversas formas: um ex-namorado que não
aceita o término do relacionamento porque considera a mulher sua posse, o
marido que assassina a esposa porque ela foi a uma festa sem permissão, um
ex-parceiro que se sente desonrado por qualquer comportamento da mulher que
foge do que ele compreende como “adequado”, entre outros exemplos que evidenciam
uma estrutura de poder e controle sobre a mulher.
A mulher vítima de feminicídio não morre porque reagiu a um
assalto, nem porque tinha um inimigo disposto a assassiná-la; ela morre porque
a punição para seu comportamento fora do padrão é o assassinato. O feminicídio
ocorre em um contexto de relação hierarquizada, em que o homem se baseia em
ideias machistas para exercer controle e opressão sobre a mulher. Em muitos
desses casos, incontáveis outras formas de misoginia já foram exercidas contra
essa mulher, que tem suas roupas regradas, suas amizades monitoradas, sofre
abuso psicológico, vive aterrorizada e é, também, vítima de violência física. O
feminicídio se encaixa em todo um contexto de machismo; é evidente que existe
um ato de repressão contra a mulher embasado em opiniões e valores que a
consideram inferior ao homem.
Por todos esses aspectos, é fato que dar ao assassinato de
mulheres por motivação machista o nome de “feminicídio” não se trata de uma
regalia. Ter, em lei, o reconhecimento dessa realidade não é um privilégio. Não
há vantagem alguma em ser alvo do machismo, algo que elege a mulher como
violável e assassinável por causa de seu gênero. Afinal, a mentalidade de quem
comete um feminicídio é de que se vítima não age de acordo com seu lugar de
mulher – que é ser inferior, submissa e obediente -, ela merece morrer, pois
mulheres não merecem autonomia. Reconhecer o feminicídio como crime de ódio
contra mulheres não é privilégio, é constatar a realidade milenar de que
mulheres são preteridas e oprimidas.
Nenhuma mulher vai tirar qualquer vantagem de ter, em lei, o
feminicídio reconhecido como crime motivado por machismo, uma vez que o preço
desse reconhecimento é sua própria vida. A mulher morta não pode obter
reparação ou indenização por ter sido assassinada.
Isso não quer dizer que homens também não sofram com os mais
diversos tipos de violência. Há, por exemplo, homens que são mortos por serem
negros. Nesse caso, estamos diante de uma violência que atinge homens e que
precisa ser combatida. Esse enfrentamento acontece principalmente por parte do
movimento negro brasileiro, que pauta o genocídio da população negra e confronta
a violência policial. No entanto, não por acaso, as mesmas pessoas que
questionam a validade da lei do feminicídio costumam ser aquelas que não
aceitam refletir sobre o racismo; ou seja, não reconhecem que alguns homens são
tratados como inferiores devido a cor da sua pele. Não seriam essas pessoas as
verdadeiras portadoras de privilégio?
Vale lembrar que uma lei que puna o feminicídio não é a
solução definitiva para o problema. A lei dá nome ao problema social e torna
reconhecido o crime de ódio contra as mulheres, mas ela sozinha não é capaz de
mudar a realidade. Para que ela seja efetiva, o Estado precisa criar e
possibilitar políticas públicas educativas, que ensinem valores de igualdade e
autonomia feminina. Somente quando todas as pessoas enxergarem as mulheres como
seres humanos plenos, capazes, independentes e merecedores de respeito, o
machismo será desconstruído.
Enquanto a luta por esse objetivo acontece, precisamos, sim,
de leis que penalizem feminicidas, assim como há leis que penalizam outros
diversos tipos de crimes. Destaco aqui que me refiro a crimes contra mulheres,
que em muitos casos nem sequer chegam a ser registrados – como o estupro, o
assédio sexual, a violência doméstica e o abuso psicológico. Quando o assunto é
misoginia, ainda é necessário lutar para que alguma atitude seja sequer tomada
a respeito, tornando ainda mais importante a existência de uma lei específica.
E isso vale, também, para as pessoas trans, que continuam excluídas de nossa
sociedade e se encontram completamente desamparadas pela lei brasileira. Uma
lei que pune o assassinato de mulheres também precisa punir o assassinato de
mulheres e homens trans, que também são grandes vítimas da misoginia.
Debater sobre o tema é de tremenda importância; afinal, há
inúmeras nuances e contextos a serem analisados. Precisamos encarar a sociedade
do modo como ela realmente é: uma sociedade punitivista, sim, mas que pune
pessoas muito específicas, de grupos desprivilegiados, e que não pune crimes de
ódio, seja o ódio motivado por racismo, homofobia ou misoginia. Sem fazer essa
separação minuciosa e sem compreender a importância do reconhecimento do
machismo, estamos fadados ao equívoco.
Por fim, precisamos ir além, sempre trazendo à tona as
pessoas que, infelizmente, continuam marginalizadas. Jamais devemos aceitar o
machismo que tenta invalidar as bandeiras históricas da luta das mulheres.
Visto no: Lugar de Mulher
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