19 abril 2015

Feminicídio não é privilégio - por Jarid Arraes



Em um texto recente sobre a importância de intervir no machismo cotidiano, afirmei que o feminicídio é o assassinato de mulheres motivado por machismo. Ou seja, a mulher vítima do feminicídio é morta pelo simples fato de ser mulher.

Isso acontece de diversas formas: um ex-namorado que não aceita o término do relacionamento porque considera a mulher sua posse, o marido que assassina a esposa porque ela foi a uma festa sem permissão, um ex-parceiro que se sente desonrado por qualquer comportamento da mulher que foge do que ele compreende como “adequado”, entre outros exemplos que evidenciam uma estrutura de poder e controle sobre a mulher.

A mulher vítima de feminicídio não morre porque reagiu a um assalto, nem porque tinha um inimigo disposto a assassiná-la; ela morre porque a punição para seu comportamento fora do padrão é o assassinato. O feminicídio ocorre em um contexto de relação hierarquizada, em que o homem se baseia em ideias machistas para exercer controle e opressão sobre a mulher. Em muitos desses casos, incontáveis outras formas de misoginia já foram exercidas contra essa mulher, que tem suas roupas regradas, suas amizades monitoradas, sofre abuso psicológico, vive aterrorizada e é, também, vítima de violência física. O feminicídio se encaixa em todo um contexto de machismo; é evidente que existe um ato de repressão contra a mulher embasado em opiniões e valores que a consideram inferior ao homem.

Por todos esses aspectos, é fato que dar ao assassinato de mulheres por motivação machista o nome de “feminicídio” não se trata de uma regalia. Ter, em lei, o reconhecimento dessa realidade não é um privilégio. Não há vantagem alguma em ser alvo do machismo, algo que elege a mulher como violável e assassinável por causa de seu gênero. Afinal, a mentalidade de quem comete um feminicídio é de que se vítima não age de acordo com seu lugar de mulher – que é ser inferior, submissa e obediente -, ela merece morrer, pois mulheres não merecem autonomia. Reconhecer o feminicídio como crime de ódio contra mulheres não é privilégio, é constatar a realidade milenar de que mulheres são preteridas e oprimidas.

Nenhuma mulher vai tirar qualquer vantagem de ter, em lei, o feminicídio reconhecido como crime motivado por machismo, uma vez que o preço desse reconhecimento é sua própria vida. A mulher morta não pode obter reparação ou indenização por ter sido assassinada.

Isso não quer dizer que homens também não sofram com os mais diversos tipos de violência. Há, por exemplo, homens que são mortos por serem negros. Nesse caso, estamos diante de uma violência que atinge homens e que precisa ser combatida. Esse enfrentamento acontece principalmente por parte do movimento negro brasileiro, que pauta o genocídio da população negra e confronta a violência policial. No entanto, não por acaso, as mesmas pessoas que questionam a validade da lei do feminicídio costumam ser aquelas que não aceitam refletir sobre o racismo; ou seja, não reconhecem que alguns homens são tratados como inferiores devido a cor da sua pele. Não seriam essas pessoas as verdadeiras portadoras de privilégio?

Vale lembrar que uma lei que puna o feminicídio não é a solução definitiva para o problema. A lei dá nome ao problema social e torna reconhecido o crime de ódio contra as mulheres, mas ela sozinha não é capaz de mudar a realidade. Para que ela seja efetiva, o Estado precisa criar e possibilitar políticas públicas educativas, que ensinem valores de igualdade e autonomia feminina. Somente quando todas as pessoas enxergarem as mulheres como seres humanos plenos, capazes, independentes e merecedores de respeito, o machismo será desconstruído.

Enquanto a luta por esse objetivo acontece, precisamos, sim, de leis que penalizem feminicidas, assim como há leis que penalizam outros diversos tipos de crimes. Destaco aqui que me refiro a crimes contra mulheres, que em muitos casos nem sequer chegam a ser registrados – como o estupro, o assédio sexual, a violência doméstica e o abuso psicológico. Quando o assunto é misoginia, ainda é necessário lutar para que alguma atitude seja sequer tomada a respeito, tornando ainda mais importante a existência de uma lei específica. E isso vale, também, para as pessoas trans, que continuam excluídas de nossa sociedade e se encontram completamente desamparadas pela lei brasileira. Uma lei que pune o assassinato de mulheres também precisa punir o assassinato de mulheres e homens trans, que também são grandes vítimas da misoginia.

Debater sobre o tema é de tremenda importância; afinal, há inúmeras nuances e contextos a serem analisados. Precisamos encarar a sociedade do modo como ela realmente é: uma sociedade punitivista, sim, mas que pune pessoas muito específicas, de grupos desprivilegiados, e que não pune crimes de ódio, seja o ódio motivado por racismo, homofobia ou misoginia. Sem fazer essa separação minuciosa e sem compreender a importância do reconhecimento do machismo, estamos fadados ao equívoco.

Por fim, precisamos ir além, sempre trazendo à tona as pessoas que, infelizmente, continuam marginalizadas. Jamais devemos aceitar o machismo que tenta invalidar as bandeiras históricas da luta das mulheres.

Visto no: Lugar de Mulher



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