Sempre adoro como nossos baianos,
novos, velhos, eternos, cantam e encaram Deus, ou deus, ou deuses, forças
Passei a noite do 31 com minha mãe Iná, em sua casa no Flamengo. A
primeira virada sem meu pai. Jantamos no quarto, onde havia ar-condicionado.
Esquecemos os fogos e a chuva lá fora. Brindamos com espumante rosé e sorvete
de passas ao rum. Ela lembrou do primeiro flerte com Leonardo, o ruivo
rechonchudo que furou uma onda em Copacabana, o areal, e, como um golfinho,
emergiu diante dela. Num gesto ousado, Iná espirrou água no seu rosto. Ele a
ameaçou: “Da próxima vez que fizer isso...” Ela reagiu: “O que você vai fazer?
Hem?”. E ele: “Da próxima vez, te dou um beijo”. O beijo veio meses depois. O
resto da história durou 50 anos e se encerrou em novembro.
Ela quis dormir na sala, e eu fiquei no quarto, deixando o lugar de papai
vazio, e o cão Yossi quis ficar por ali. Juntos, sentimos a falta do golfinho
de barbas e de tempos solares. Mas foi uma noite doce. Cedinho mamãe apanhou
Yossi para um passeio e continuei a roncar. No início da tarde lá estava de
novo o cão, aninhado. Acordei. Minha irmã havia voltado da festa da Narcisa e
contava os babados. Que conversara muito com Elke. Que mulher inteligente!
Sabia que ela nasceu na Rússia, Leningrado?
Despedi-me das duas e vim para casa pela Lagoa. No iPhone, que estava em
aleatório, surgiu Maria Bethânia cantando “Alguma voz”, de Dori Caymmi e Paulo
César Pinheiro. Quando eu ouço alguma voz/ Na janela do horizonte/ De
alguém cantando por nós/ É Deus cantando defronte. Sempre adoro como nossos
baianos, novos, velhos, eternos, cantam e encaram Deus, ou deus, ou deuses,
forças. Nem sempre creem nele(s). Mas sempre creem na sua expressão, na fé do
povo, na relação do símbolo divino com os homens e as mulheres através da
palavra, dos sons, das vozes da natureza. Caetano, crítico sensível daquilo
que, de Deus, os homens fazem, estudioso dos vínculos secretos que o tempo
reserva em mil níveis; Gil, panteísta, quântico, oriental. Uma vez em Montreux,
anos 1990, quando perguntei se voltaria à política, respondeu: “Estou mais para
líder religioso”. Na verdade, está mais para entidade cosmológica.
Bethânia, ela, sim, é mais devota: um tanto de orixás, um pouco dos
santos, a cruz, altiva, luas e estrelas. Orações, atos, práticas. Longe, porém,
das pulsões proselitistas, dos constrangimentos, do masoquismo. E, para
complementar, aquela cara-sorriso de “judia e moura”, como na canção de
Caetano, o iemenita.
A voz de Bethânia, tão bonita e particular, não se quer a maior das
vozes ou das técnicas (ela vive como se fora obstinada aprendiz, tecendo loas
às outras vozes, não a si). Mas é uma voz que carrega tanto do teatro (presente
nos modos espectrais e físicos das festas do candomblé) quanto desse canto
indizível que Dori enxerga no horizonte, talvez o tal do sentimento oceânico de
que Freud fala, incapaz, ele mesmo, de senti-lo, e que, desconfiado, só
consegue explicar como o sentimento do útero saudoso e até da projeção da morte
em paz.
Foi bonito sair assim da casa de minha mãe e cair no colo de Bethânia,
filha de Canô, de Menininha e de tantas mães, ela mesma um tipo de mãe para mim
e um mundão, cada vez mais bela e jovem, transitando pelo palco com seus pés
descalços, coberta de folhas cadentes e luzes de cidadezinha de interior.
Foi bonito e útil: eu estava pensando no que escrever na primeira crônica
do ano, e o advento da canção de Dori, sobre as vozes, na voz dela, me fez
lembrar de seus 50 anos de carreira que coroam a cabeça de 2015 (amanhã, no
Segundo Caderno, edição especial sobre este meio século tão importante).
Aí cheguei em casa e mandei bala no teclado. E aqui estou lembrando dos
vários encontros que tive com Bethânia. Nunca nos tornamos amigos naquele
sentido de convivência periódica, do confessionário de compadres, mas, através
de alguns textos, nos aproximamos, um recado de cá, um recado de lá, admirações
e homenagens. Uma vez eu a ajudei a achar um gravadorzinho portátil MP3 que ela
avistara na mão de outro jornalista e ficara obcecada pelo microfone pequenino,
bojudo e acolchoado que havia no vértice do aparelho. Queria que queria um
igual. Saí à procura e acabei achando na Avenida Rio Branco.
Dias depois, fui entregar-lhe como se fosse uma dessas oferendas a uma
mãe de santo. Tem gente que diz que Bethânia é uma, e que é até mais. Quem já
foi ao camarim de Bethânia após um de seus shows saiu sempre com a impressão de
que ela dava passes a cada um de seus admiradores e amigos, pois o que sai de
gente chorando (eu já molhei os olhos) depois de abraçá-la não está no gibi.
Ela gosta desse assédio, mas não no sentido da vulgar celebridade. Pois
aquilo cansa, e essas romarias duram horas, e ela se dedica com amor. Bethânia
gosta é de abraçar a gente mesmo. De ouvir e dizer palavrinhas no ouvido. De
ser devota do outro, carne, mente, sangue, perfume. O que há para além disso
ninguém sabe. Muita gente sente. Intui. Vê e até ouve vozes. Não sei tampouco no
que Bethânia crê, pois ela crê em tanta coisa que não importa muito o que vem
deste ou de outro mundo, da intuição, da síntese a priori ou de catarse a
posteriori, sabe lá...
Eu creio em Bethânia. Ela existe e multiplica o divino no espelho de sua
voz grave, de seus gestos que iluminam o palco, de sua raiva desabafada nos
ápices das canções de amor, a ponto de apertar-se toda, incrédula, diante de
certas estrofes; de seus passeios aplicados pela poesia, de seu respeito doce e
fofamente professoral pela cultura brasileira. Que bom que Bethânia está entre
nós. “Como uma deusa”, diria o hit brega. Chique e humana. Maria, minha mãe,
parabéns.
.Visto no: O GLOBO
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