Eu sou o avesso do que o Sr.
sonhou para o seu filho. Eu sou a sua filha amada pelo avesso. A minha
embalagem é de pedra, mas meu avesso é de gesso. Toda vez que a pedra bate no
gesso, me corta toda por dentro. Eu mesma me corto por dentro, só eu posso, só
eu faço. Na carne externa quem me corta é o mesmo que admira esse meu avesso
pelo lado de fora. Eu sou a subversão sublime de mim mesma. Sou o que derrama,
o que transborda da mulher. Só que essa mulher sou eu, sou o que excede dela.
Ou seja, eu sou ela com um Plus,
com um bônus. Sou a mulher que tem força de homem, que tem o coração trabalhado
no gelo. Que pode ser várias, uma em cada dia da semana. Eu tenho o cabelo que
eu quiser, a unha da cor que eu quiser. Os peitos do tamanho que eu quiser, e
do material que puder pagar. O que eu não trocaria por uma armadura medieval,
uma prótese blindada talvez. A prova de balas, a prova de facas. Uma prótese
dura o suficiente para me proteger de um tiro e maleável o suficiente para
ainda deixar o amor entrar.
Bailarina troglodita de pernas de
pau. Eu fui expulsa da escola de dança e aprovada em primeiro lugar na escola
da vida. Vestibular de morte, na cadeira da “bombadeira”, minha primeira lição.
Era a pele que crescia e me dava a aparência que eu sonhava. Conosco, a beleza
e a morte andam de mãos dadas.
No mesmo trilho de uma vida
marcada por dedos que apontam até o fim da existência.
Na minha esquina. Sim, aqui as
esquinas têm donos. À noite, meninas como eu ou como outra qualquer, usando um
pedaço de tecido fingindo ser uma saia, brincos enormes, capazes de fazer uma
mulher comum perder o equilíbrio e um salto de acrílico de altura inimaginável,
que a faz sentir-se inatingível. Ela merece uma medalha.
Para um carro, um homem ao
volante que deixa em casa sua mulher, e quer ser mulher, até mais feminina que
nós talvez. Porque dessa vez os litros de silicone, os cabelos tingidos, os
brincos enormes, os saltos altíssimos não impressionaram a ele. Seu desejo é
pelo que ela não mostra nas ruas, ela vai ter que se ver como homem mais uma
vez. E a vida segue. Muitas morrem, outras nascem cada vez mais novas. E assim
elas vão desviando dos tiros, esbarrando no preconceito, correndo da polícia.
Mas sempre com um batom nos lábios, um belo salto nos pés e na maioria das
vezes um vazio no coração.
Ela não precisa de redenção.
Texto maravilhoso!
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