19 agosto 2013

Consenso para quê?

– “o aborto não deveria estar no Código Penal… se os homens engravidassem, isto já estaria resolvido há muito tempo”
Ciência Hoje - Durante a Reunião Anual da SBPC, médico da Universidade de São Paulo defende direito da mulher de interromper a gravidez e afirma que aborto é decisão pessoal e não precisa da concordância impossível de toda a sociedade.
 
Por: Marcelo Garcia
 
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Mesmo com legislação que pune aborto com prisão, mais de um milhão desses procedimentos são realizados por ano no Brasil. Para médico da USP, a questão não deveria sequer constar no Código Penal. (foto: Flickr/ Thum – CC BY-NC-ND 2.0)
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O aborto não é uma questão de consenso, plebiscito ou consulta pública. Como uma decisão autônoma e individual da mulher, todas as opiniões devem ser respeitadas. Foi essa a posição apresentada pelo médico Thomaz Rafael Gollop, da Universidade de São Paulo (USP), em conferência na 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com ampla experiência no estudo do tema, ele defendeu o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo, destacou o que chamou de ‘aberração’ das leis brasileiras sobre a questão e ressaltou a importância da proteção ao caráter democrático e laico do Estado brasileiro.
 
Nosso Código Penal prevê pena de um a três anos para mulheres que façam aborto ilegal. No entanto, isso não impede que cerca de um milhão de procedimentos desse tipo sejam realizados por ano no país. “A lei não impede o aborto, na verdade ela só coloca em risco a saúde da mulher”, avaliou Gollop. “Recentemente, num caso aqui no Nordeste, um médico algemou na cama uma mulher que chegou ao hospital com complicações após um aborto; será que enfiar mulheres na penitenciária vai resolver alguma coisa?”
 
Dizer que o SUS não poderia arcar com o procedimento caso fosse descriminalizado não funciona, uma vez que são realizadas 250 mil internações para curetagem por ano, quase todas decorrentes de abortos malfeitos, um custo de 30 milhões de reais
 
A ineficácia da lei fica mais evidente quando se analisa a quantidade de vidas de mulheres que tira, segundo o médico. “Na América Latina, 20% das mortes maternas são decorrentes de aborto inseguro; no Brasil, essa é a quinta causa de morte entre mulheres e em Salvador, onde as clínicas clandestinas são de arrepiar, é a primeira”, ressaltou. “É claro que quem sofre mais com isso é a população negra, de baixa renda e baixo nível educacional; as ricas vão para clínicas sofisticadas.”
 
Do ponto de vista econômico, os abortos clandestinos representam grande custo para o próprio Sistema Único de Saúde (SUS) – e também por isso Gollop defendeu que o tema seja tratado como questão de saúde pública e que as mulheres sejam atendidas no próprio sistema. “O argumento de que o SUS não poderia arcar com o procedimento caso fosse descriminalizado não funciona, uma vez que são realizadas 250 mil internações para curetagem todos os anos – a segunda cirurgia mais frequente do sistema –, quase todas decorrentes de abortos clandestinos malfeitos, o que significa um custo de 30 milhões de reais”, afirmou.
 
Gollop lembrou que, mesmo nos casos em que a legislação brasileira permite o aborto – risco de vida da mãe, gravidez resultante de violência sexual e fetos anencéfalos –, a situação é bem complicada para a mulher. “Em São Paulo, só existe um hospital que de fato acolhe as mulheres nessa condição; outros centros as atendem e despacham – o que é bem diferente, pois o processo é muito delicado”, avaliou.
 
Hoje existe uma proposta de reforma no Código Penal tramitando no Congresso. Pela nova lei, o aborto continuaria sendo crime, mas com uma pena menor (até dois anos de reclusão) e com mais exceções em que poderia ser admitido: se a gravidez fosse resultado do uso técnicas de reprodução assistida sem consentimento, se o feto tiver anomalias graves que inviabilizem a vida fora do útero e, o ponto mais polêmico, por vontade da mãe, até a 12ª semana de gravidez, se um médico ou psicólogo constatar que a mulher não tem condições psicológicas de arcar com a maternidade.

Questão laica

Na raiz de tanta polêmica sobre o aborto no país, segundo o médico, está o uso político do tema e a confusão arraigada sobre o significado de Estado laico. “Em geral, a questão do aborto só ganha destaque no período eleitoral, a imensa maioria fala sem nenhum conhecimento de causa e utiliza o tema como moeda de troca: se precisa de votos evangélicos, então é radicalmente contra”, analisou. “No entanto, a base de um Estado laico é a separação da Igreja, que não deve interferir nos assuntos de Estado, e um respeito a todas as religiões, inclusive aos ateus, que representam cerca de 7% da população”, disparou.
 
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O machismo e a falta de respeito à mulher, tão comuns em nossa sociedade, são apontados por Gollop como uma das questões que fazem do aborto assunto tão polêmico. (foto: Flickr/ xbolotax – CC BY-NC-ND 2.0)
 
A questão da falta de laicidade também aparece na abordagem da Justiça e até da medicina sobre o aborto. “Muitos juízes não autorizam o aborto por serem muito católicos e escrevem isso na sentença, o que é uma afronta ao Estado laico”, argumentou. “No serviço de saúde, médico só pode recorrer à ‘objeção de consciência’, ou seja, se recusar a fazer determinado procedimento por razões pessoais, se houver outro habilitado a realizá-lo, mas não é isso o que ocorre.” Um dado curioso trazido por Gollop: pesquisa recente da Organização Pan-americana da Saúde mostrou que 5 milhões de mulheres brasileiras entre 18 e 40 anos já abortaram – 40% delas têm apenas o ensino fundamental, 15% são católicas e 13%, evangélicas.
 
“A mulher deve ter sua autonomia reprodutiva, dignidade humana e direitos reprodutivos e sexuais respeitados, ser bem atendida na gravidez e no abortamento”
 
A discussão também é, na visão do médico, um mostra do machismo entranhado em nossa sociedade. Sem deixar de reconhecer o direto potencial da criança, ele destacou que há décadas se discutem os direitos fundamentais da mulher, de quem o filho em gestação é totalmente dependente. “O estatuto do nascituro, por exemplo, é absurdo: dá bolsa à mulher estuprada para criar o filho e ainda permite ao pai estuprador visitar a criança”, avaliou.
 
Para Gollop, não cabe ao direito, à medicina ou ao Estado julgar a decisão da mulher sobre o aborto. “Engravidar pode acontecer por muitas razões; a mulher deve ter sua autonomia reprodutiva, dignidade humana e direitos reprodutivos e sexuais respeitados, ser bem atendida na gravidez e no abortamento”, completou o médico, que, ao fim de sua conferência, foi ovacionado de forma quase unânime pela plateia, formada em grande parte por mulheres.

Debate em andamento

Recentemente, o Conselho Federal de Medicina defendeu oficialmente a possibilidade de escolha da mulher de continuar ou não a gestação até 12 semanas. “Foi um enorme passo nessa frente, mas que levou a duras críticas de setores conservadores”, analisou. “Porém, diante de opositores muito organizados e com muito lobby, ainda é preciso muito mais mobilização das instituições que atuam nessa área, para levar uma discussão embasada para a sociedade civil.”
 
Nesse cenário político complicado, o médico também chamou a atenção para a chamada CPI do aborto. “Trata-se de uma manobra da bancada evangélica na Câmara Federal para intimidar os grupos que trabalham com o tema, fazendo acusações absurdas sobre o envolvimento de entidades internacionais no financiamento de abortos no Brasil e sobre interesses escusos na legalização”, argumentou. “Queremos derrubar a CPI não por medo de ‘Marcos Felicianos’ da vida, mas pela baixaria que será; queremos discutir o tema com educação e inteligência, para informar a população.”

Veja uma síntese da opinião do médico Thomaz Rafael Gollop


Visto no: Saúde Global

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