29 julho 2013

Fazer de Francisco um inimigo é inútil ao movimento gay - por Paulo Ghiraldelli

 
De Paulo Ghiraldelli Jr *
 
Cresci vendo Mickey e Pateta criarem os sobrinhos do primeiro. Claro, havia Minie, mas jamais vi aquela ratinha levar um dos sobrinhos ao banheiro! Havia também Donald e Tio Patinhas, que cuidavam de Huguinho, Zezinho e Luizinho. Margarida? Ora, ela não ajudava em nada e, enfim, tinha também suas sobrinhas que, por sua vez, não recebiam nenhuma atenção de Donald. Mickey e Donald nunca cobraram nada da rata e da pata. Eles herdaram aqueles sobrinhos e os criaram em um ambiente bem diferente do meu. Eu fui criado por pai, mãe e avós maternos. A minha família se parecia com a dos manuais de “Estudos Sociais” do meu tempo de escola, as de Donald e Mickey estavam quarenta anos avançadas no tempo, eram mais ou menos o que hoje chamaríamos de “família gay”.
 
Eu cresci e não posso dizer que virei alguém “completamente normal”, uma vez que me tornei ... filósofo! Mas, ao menos eu me garanto, ou seja, consegui casar três vezes, ter dois filhos, perturbar pouco as esposas e dar boa escola aos rebentos. Consegui ter emprego e “ganhar a vida”. E os sobrinhos de Donald e Mickey? Bem, menos bobos que os garotos da Turma da Mônica ou os filhos dos Flinstones – ou talvez mais favorecidos pela indústria do entretenimento – eles não tiveram de crescer. Desse modo, não puderam servir de matéria para estudantes de Humanidades que iriam nos aporrinhar com dissertações e teses sobre eles e sobre a Patópolis governada por quem veio de “famílias gays”! Que a Disney seja abençoada por isso!
 
O certo que temos nas mãos é que, em matéria de educação de filhos e criação de novas gerações, não temos nada de certo.
 
Duvido que a geração que criou a Juventude Nazista a criou para ser a juventude que foi. E isso, mesmo que, se olhamos retrospectivamente, viermos a nos convencer que o filme A fita branca (Michael Haneke, Alemanha, 2009) faz sentido. Mas, para aquela geração de pais que cuidaram de pequenos alemães nas aldeias, a urbanização não seria tomada como tão poderosa a ponto de fazer de seus filhos os inventores e produtores do Holocausto, o genocídio moderno.
 
Sendo assim, é de uma pretensão imensa, e até falta de bom senso, ficar de pé e pronunciar discursos em favor de um ou outro tipo de família, com ar de dono do mundo. Nesse campo, não somos doutores, nenhum de nós é, nem mesmo o Dr. De Lamare! Filho, futebol, sentença de juiz, bunda de criança e mulher menstruada não são como cometas, isto é, previsíveis. Por isso mesmo, cabe aí a experiência, ainda que não o experimento.
 
Do ponto de vista laico, podemos ter objeções éticas ao experimento com humanos, mas nossa restrição se ameniza se falarmos em experiência, a decisão das pessoas de se agruparem para viver como famílias que Disney previu há tantos anos como fórmula corriqueira. Há algum problema se nos tornarmos uma grande Patópolis? Bem, em Patópolis a violência sempre foi menor que a nossa atual – nem se pode dizer que Mancha Negra e os Metralhas eram violentos – e o trânsito jamais se apresentou problemático como o de São Paulo. Caso aquela sobrinhada toda, crescida no estilo gay, tivesse ficado adulta, Patópolis hoje seria ingovernável?
 
Assim, as objeções que temos ao que Disney botou na tela do cinema e nos quadrinhos são até pequenas. Talvez a instituição realmente que tenha voz aí, em matéria de objeção nesse caso, seja a Igreja Católica. Ela desconfia de tudo. E é bom que alguém, nesse mundo, ainda desconfie de tudo. Sua desconfiança, no entanto, não a leva a dizer que uma experiência assim, como a que poderia ter sido a de Patópolis se os sobrinhos ficassem adultos, não dará certo. O que ela diz apenas é que rato é rato, pato é pato e humano é humano. Ou seja, nós não temos que imitar Patópolis, e isso porque somos humanos. E o humano é diferente do animal, de um modo até perverso, na doutrina da Igreja. As práticas humanas são morais, sendo que a Igreja delimita o mores de modo que nossa vida seja compatível com aquilo que as divindades desejariam de nós.
 
Não estou dizendo que a doutrina da Igreja não possa mudar e vir a aceitar a “família gay”. Sabemos que a Igreja muda. Como ela muda?
 
Nós laicos ou semi-religiosos mudamos por meio da política. Discutimos, guerreamos, criamos hegemonias e consensos. Nossas mudanças são relativamente rápidas. Ou assim se parecem. As mudanças da Igreja são antes que exclusivamente políticas, alterações filosóficas e teológicas. Mesmo que se possa dizer, pelos críticos da Igreja, que elas são estratégicas (ou até matreiras), e que visam apenas autosobrevivência, elas continuam tendo um forte componente teológico e filosófico.
 
Uma mudança que se quer tem duas etapas: primeiro, é necessário que se queira efetivamente; em segundo lugar, é necessário que exista uma teologia reconstruída, em bases filosóficas – racionais, portanto – que possa gerar uma nova narrativa a respeito do que é ser cristão. Essa nova narrativa, coesa e razoavelmente harmônica com o que se tinha antes, tem de mostrar ao devoto e ao padre como uma narrativa com a qual Deus estaria de acordo. Essa parte é difícil, depende de intenso e longo trabalho intelectual, que não é feito de modo puro, mas no contexto do embate político que nunca cessa. A nossa pressa de fazer a Igreja mudar esbarra no modo próprio da Igreja caminhar.
 
O movimento gay que não entende isso pode falar coisas incultas, tolas, e acabar por se convencer de que o melhor é entrar em guerra contra a Igreja Católica, como se estivesse lidando com qualquer seita caça-níquel. Ora, a Igreja Católica, bem como as protestantes históricas, são entidades formadas antes de tudo por intelectuais. Esses homens podem muito bem viver em uma Patópolis de um suposto futuro, mas, para assim fazer, eles precisam de construir um pensamento que dê esse futuro como o que possa colocar as coisas na terra em harmonia com aquilo que as divindades celestes pediriam.
 
A Igreja nunca foi uma construção baseada na fé e simplesmente na fé, ela desde seu início se fez a partir de textos, de produção e reunião de textos, preocupada com a produção de uma narrativa unificada, algo completamente diferente de tudo que o mundo greco-romano imaginava como religião, mas sabia o que era como filosofia.
 
Os políticos brasileiros nem sempre entendem isso. Acostumados a partidos cujos programas são desrespeitados, eles acham que a Igreja é mais ou menos como suas agremiações ou, agora, suas Ongs (o Papa insistiu nisso: a Igreja não é uma Ong). Qualquer estatuto pode ser encontrado na internet e pronto, está aí criado ou recriado o clube que irá viabilizar o candidato nas próximas eleições. O movimento gay tem faceta intelectual, mas enquanto movimento social às vezes respira esse clima da política de partido e então desaprende a lidar com a Igreja. Bate de frente na hora que tinha de encostar de lado. Morde na hora do beijinho.
 
Penso que é inútil ao movimento gay fazer de Francisco um inimigo. Aliás, mais fora de sentido, ainda, se isso é por conta do que escuta de uma esquerda argentina que, enfim, está no governo, e que é indisposta com Bergólio por motivos que não são nobres e muito menos vantajosos para os gays brasileiros e do mundo todo. O movimento gay ganha mais se pensar a Igreja como expus, como uma instituição que tem de lidar, antes de tudo, com teologia. O movimento gay perde tempo escutando frases contra o casamento gay e se dá melhor se entender de que modo está evoluindo o pensamento social de Francisco e as questões teológicas do conjunto da Igreja. O movimento gay ganha mais se olhar as coisas antes pela filosofia que pela política.
 
* Paulo Ghiraldelli Jr., 55, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ

Artigo publicado pelo iG

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