Diante de mais de 1 milhão de
brasileiros nas ruas contra tudo e todos na quinta-feira, em 120 cidades, o
sentimento comum entre estudiosos era a “perplexidade”. Estavam perplexos com o
tamanho dos protestos, a temperatura da indignação, a falta de lideranças
claras, a nuvem difusa de reivindicações. Minha perplexidade sempre foi outra.
Não entendia como ninguém saía às ruas contra a calamidade nos serviços
essenciais e no baixíssimo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro.
Era como se fôssemos impotentes para mudar as prioridades do país – já que,
pelo voto, só conseguiríamos mudar o ruim pelo menos pior.
Se o movimento começou com foco em
passagens mais baratas – ou gratuitas – de ônibus, terminamos a semana numa
catarse anárquica. Manifestantes e policiais perderam o controle. Hoje, se uma
causa pudesse unir todos os manifestantes, ela seria: “Hay gobierno? Soy
contra”. O passe livre passou a ser o passo livre. A adrenalina tomou conta de
jovens que se sentiam à margem do processo histórico e político do país, sem
voz, sem ilusões, em busca de ideais. Pouquíssimos conhecem de verdade o que
significa a palavra “ditadura”.
O protesto atual é perigoso para a paz
social? Sim. Mas era mais previsível que a sucessão de estações do ano. Uma
hora o brasileiro cordial estouraria – e seria convocado pelas redes sociais...
porque foi assim em todos os países, independentemente das bandeiras. Não é
isso que nós, profissionais da imprensa, prevíamos? Há anos temos denunciado
escândalos na educação, na saúde, no transporte, na habitação, na
infraestrutura, nos Três Poderes. Há anos nos indignamos com os impostos escorchantes,
a falta de representatividade dos partidos, a corrupção, a impunidade e o mau
uso do dinheiro público.
E nos revoltamos com as alianças espúrias que permitem a um odioso Marco
Feliciano cuidar de direitos humanos e apoiar a “cura gay”.
É triste e assustador ver a ação de
vândalos e arruaceiros que depredam equipamento público, picham, invadem prédios
do governo, quebram lojas, saqueiam, incendeiam. É triste e assustador ver a
ação de policiais de choque que espirram pimenta numa senhora dentro de uma
clínica para ela parar de falar, que jogam bombas em jovens de mãos ao alto
voltando para casa pacificamente com a bandeira brasileira, que encurralam
manifestantes em lanchonetes e jogam gás dentro, que lançam gás lacrimogêneo
dentro de hospitais. Isso é receita de
guerra alimentada por ódio. Quando a revolta escapa ao controle, só favorece
extremistas.
É inadmissível que protestos pacíficos
descambem para a intolerância às diferenças. Mesmo que a maioria dos jovens se
diga apartidária, eles não têm o direito de incendiar bandeiras. Nem têm
direito de hostilizar jornalistas ou queimar carros de empresas de comunicação.
Esse comportamento é fascista.
Faz seis anos que escrevo uma coluna
semanal para ÉPOCA. Uso a arma possível: as palavras. Condenei tantas vezes
Renan Calheiros e a votação secreta, que o alçou ao lugar de seu padrinho José
Sarney, com a bênção de Dilma. Sugeri a criação da Contribuição dos Corruptos
Municipais, Estaduais e Federais, a CCMEF. Listei “10 razões para se indignar”,
no fim de 2010 e de 2011. Fiz campanha contra o voto compulsório. Perguntei ao
leitor “Quando vamos moralizar o Poder?”. Revoltei-me com a informação de que
13 milhões de brasileiros, ou 7% da população, não têm banheiro. Defendi que
“precisam sair do escuro as relações entre as autoridades e as empresas de
ônibus”. Afirmei que “não há vergonha na cara de um país que mata e despreza
seus velhos por negligência” nas filas e corredores de hospitais.
E, depois de escrever tudo isso com
liberdade, não posso vestir a camisa da Editora Globo para cobrir os protestos.
Corro o risco de ser linchada por um grupo minoritário de jovens ignorantes que
confundem tudo, uns desmemoriados que desrespeitam o trabalho de tantos
jornalistas investigativos, entre eles Caco Barcellos. Ou, então, corro o risco
de levar uma bala de borracha na testa ou no olho, disparada por um policial de
choque com sede de sangue.
Posso relevar todos esses atos de
estupidez, de lado a lado, sob um único argumento: a verdadeira democracia
pressupõe um exercício ativo da população, uma vigilância perene sobre as
instituições, uma participação atuante de jovens comprometidos com nossa
história. E o Brasil enferrujou em anos de pasmaceira e populismo. Está na hora
de aprender não só a cantar o hino, mas a respeitar as cidades. Está na hora de
as forças da ordem honrarem sua farda e seu poder. Não ataquem inocentes – os
senhores estão sendo filmados.
Visto na: Época
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