23 janeiro 2013

"Telenovela e LGBT: tudo a ver", por Jean Wyllys



Apesar de uma abertura das telenovelas a novas e produtivas representações da homossexualidade, a regra são tramas e conteúdos que recorrem aos estereótipos de homossexuais como forma de reafirmar e reproduzir as normas que sustentam a superioridade dos heterossexuais, bem como seus privilégios.

Mesmo sendo um dos produtos culturais mais consumidos (certamente é a forma de ficção mais consumida) num país com índices ainda alarmantes de analfabetismo e analfabetismo funcional; onde a educação formal de qualidade ainda é uma meta a ser alcançada; em que a ampla maioria da população não tem acesso às artes vivas nem a exposições de artes plásticas; e com poucos leitores de livros mesmo entre aqueles que estão no – ou concluíram o – ensino superior, a telenovela ainda é alvo do desprezo de parte expressiva da intelectualidade brasileira de esquerda (e, por extensão, alvo do desprezo ou do desinteresse de muitos políticos e lideranças de movimentos sociais orientados ou influenciados por essa parte da intelectualidade de esquerda). Alheios – voluntariamente ou não – às novas teorias sobre a comunicação de massa e ao conhecimento produzido pelos chamados estudos culturais, esses muitos políticos e lideranças acabam por descartar algo que é essencial ao entendimento da mentalidade do povo brasileiro e seus desdobramentos políticos e à disputa pela (re)construção dessa mentalidade: a telenovela. Esse desprezo tem, é preciso dizer, uma genealogia: ele é fruto da crítica marxista que os teóricos da Escola de Frankfurt – mais notadamente Adorno e Horkheimer – fizeram ao que chamaram de indústria cultural, ou seja, a conversão da cultura em mercadoria e o processo de subordinação da consciência à racionalidade capitalista, impulsionados sobretudo pelo advento do
s meios de comunicação de massa (o rádio, o cinema e a TV).

Mas, a despeito desse desprezo em relação à telenovela, é crescente o número de estudiosos e ativistas políticos interessados em seu papel na (re)construção da mentalidade do povo brasileiro e em seus impactos nas relações socioculturais; entre esses ativistas e estudiosos, eu e outros integrantes dos movimentos LGBTs nos incluímos. Nós entendemos que a telenovela faz parte das práticas de significação e dos sistemas simbólicos por meio dos quais os sentidos são produzidos e os sujeitos são posicionados, ou melhor, entendemos que a telenovela é representaçãoe, como toda representação, ela não apenas reproduza realidade, mas também a produz, isto é,desencadeia (re)ações entre os telespectadores. Por isso, não a descartamos.

A telenovela foi e ainda é meio de reprodução e de transmissão de preconceitos sociais de todos os tipos: de raça ou cor ou de origem étnica ou geográfica (racismo); de gênero (machismo); e também o preconceito relacionado à orientação sexual. Como bem explica o doutor em Filosofia e teórico da comunicação Wilson Gomes, o preconceito social é de natureza cognitiva: “Tem a ver com certezas compartilhadas por parte de grupos sociais; tem a ver com certezas às quais se adere irracionalmente, portanto, sem exame dos pressupostos e sem fundamentação racional; tem a ver com juízos – em geral negativos – sobre a natureza de ‘classes’ de pessoas; tem a ver com aplicar esses juízos a priori sobre classes de pessoas para decidir, sem as conhecer individualmente, o que são as pessoas encaixadas naquela classe, os seus comportamentos esperados, o seu caráter e o sentimento que elas nos merecem”. É seguro dizer, portanto, que boa parte das “certezas” que a ampla maioria das pessoas (incluindo aí muitos homossexuais) partilha acerca da homossexualidade, bem como seus “juízos negativos” sobre gays e lésbicas, vem da telenovela (e, por extensão, dos programas humorísticos e séries de TV). Aliás, o fato de boa parte das “certezas” e dos “juízos” acerca da homossexualidade vir da telenovela faz dela igualmente um meio importantíssimo na desconstrução ou erradicação dessas mesmas “certezas” e “juízos”, ou seja, faz da telenovela um meio privilegiado no enfrentamento do preconceito social anti-homossexual e seus estigmas.

Há quem possa dizer que representações de telenovelas são “abstrações” e, como tais, são inócuas. Não é a verdade. As representações são a matéria-prima do pensamento. E o pensamento é a ponte do corpo para o ato (no mínimo para o ato linguístico que é o insulto ou a injúria), para a ação. O preconceito social anti-homossexual e os discursos de ódio contra os homossexuais, bem como os crimes de ódio de que estes são vítimas, são complementares. A essa articulação e operação em conjunto damos o nome de homofobia (aqui esta palavra designa também os preconceitos, discursos e ações contra travestis e transexuais que são motivados menos pela orientação sexual e mais pela identidade de gênero). Milhões de lésbicas, gays, travestis e transexuais são, diariamente, vítimas da homofobia, que se manifesta de diversas maneiras: da piada sobre “bicha” contada nos corredores das empresas em intervalos de almoço ou para o cafezinho até sua manifestação mais grave, que é o assassinato com requintes de crueldade, passando pelos apelidos grosseiros e as humilhações em sala de aula ou em casa e pelas comparações com personagens estereotipados das telenovelas e dos programas humorísticos.

A primeira telenovela da Rede Globo (e eu me refiro mais a essa emissora não só por ser ela a campeã de audiência, mas por ter se especializado na produção de telenovelas, convertendo-as em carro-chefe de sua programação e em seu principal produto de exportação) a apresentar um personagem homossexual foi Orebu, de Bráulio Pedroso, exibida de 4 de novembro de 1974 a 11 de maio de 1975. Nela, Conrad Mahler (Ziembinski) tinha uma relação com o michê Cauê (Buza Ferraz) e assassinava a mulher por quem o namorado se apaixonara. Percebam que essa trama associa os homossexuais com a passionalidade extrema, o desequilíbrio psíquico e a criminalidade. Mais de dez anos depois de O rebu, outra novela da Globo – Roda de fogo, de Lauro César Muniz – reproduzia o mesmo estereótipo: Mário Liberato (Cecil Thiré) nutria uma paixão doentia por seu rival Renato Vilar (Tarcísio Meira) e, numa cena surpreendente para os dias de hoje, em que a representação do “beijo gay” não acontece porque a emissora alega que a audiência não estaria “preparada” para ela, chegou a se esfregar na cama de Renato e a beijar loucamente seu travesseiro, num surto de obsessão, misto de ódio e amor. De lá para cá, a representação dos homossexuais em telenovelas variou para o estereótipo da “bicha louca” ou da “sapatão” (aquele/aquela que deve fazer rir ou de quem se deve rir) e, mais recentemente, para personagens mais positivos e complexos. Essa abertura da telenovela para representações positivas (ou no mínimo produtivas) não é uma simples concessão dos autores e da emissora em que trabalham, mas resultado de uma batalha cultural que inclui as críticas e pressões políticas dos movimentos LGBTs, a conversão da comunidade LGBT em nicho de mercado consumidor, as reações da audiência medidas em pesquisas de opinião e/ou em grupos de discussões, a emergência das tecnologias da comunicação e da informação, em especial a internet, e os enfrentamentos dentro da própria emissora entre artistas e executivos – o que deve nos obrigar a fugir de maniqueísmos ou simplificações grosseiras quando formos tratar do tema.

Por outro lado, não existe uma forma “correta” de representar “o homossexual”. Primeiro porque existem homossexuais (assim, no plural) e, desse modo, uma diversidade de práticas e comportamentos homossexuais. O que acontecia até pouco tempo é que a telenovela se fixava apenas em determinadas características e comportamentos e os cristalizava, fazendo parecer que só existiam essas características e comportamentos. É isso que é o estereótipo: a redução da diversidade a um modelo cristalizado e imutável. Nos últimos anos, os estereótipos têm dado lugar a representações mais complexas, mas também – e infelizmente – à invisibilidade de pessoas LGBTs. Ante a perspectiva de uma nova batalha cultural em torno da representação da homossexualidade – batalha cada vez mais inevitável em razão do crescimento do número de evangélicos, coroado com a ocupação de muitas cadeiras nas casas legislativas por políticos forjados em Igrejas fundamentalistas neopentecostais contrárias à existência da homossexualidade, e da emergência da “classe C” nos doze anos da era Lula – e ante a perspectiva de enfrentar essas forças em oposição, a Globo tem optado algumas vezes por não representar os homossexuais em telenovelas, ou seja, optado por invisibilizá-los.

De forma geral, tem prevalecido, nos últimos anos, a abertura das telenovelas para novas e produtivas representações da comunidade LGBT. Os principais autores da Globo têm sido ousados em criar personagens que, de forma tímida ou não, representam a diversidade dos comportamentos homossexuais. Digo “de forma tímida ou não” porque já houve representações muito mais ousadas antes de a batalha cultural em torno delas se acirrar, como, por exemplo, a que aconteceu em A próxima vítima, de Sílvio de Abreu, em que os adolescentes bonitos, honestos, inteligentes e nada afetados Sandrinho (André Gonçalves) e Jéferson (Lui Mendes) se apaixonaram e foram aceitos pelas famílias; sem falar que um deles era negro e o outro, branco. O casal caiu nas graças da audiência que, anos depois, rejeitaria o casal de lésbicas balzaquianas e bem-sucedidas interpretadas por Christiane Torloni e Sílvia Pfeiffer em Torre de Babel. Aguinaldo Silva também ousou bastante ao criar uma história de amor entre a médica Leonora (Milla Christie), que era competente, honesta e bonita, e a patricinha Jennifer (Bárbara Borges), quase a mocinha da novela Senhora do destino. De todos os autores da Globo, Aguinaldo Silva é aquele que seguramente mais representou homossexuais em suas telenovelas, talvez por ter sido, em sua juventude, ativista do então incipiente movimento homossexual no Brasil. Nessas representações, Silva jamais cedeu aos estereótipos pura e simplesmente: quando recorreu a eles, rasurou-os todos (como nos casos de Uálber, de Suave veneno, e, mais recentemente, de Crô, de Fina estampa, ambos afeminados e engraçados, mas dotados de virtudes que fariam deles os heróis das tramas não fossem os poucos vícios). Silva não quer saber quão madura está a comunidade LGBT para lidar com suas próprias contradições: ele simplesmente as desnuda por meio de personagens que despertam sentimentos ambíguos na audiência que ainda não se livrou do preconceito social anti-homossexual. Outro autor com muitas representações positivas da homossexualidade em suas telenovelas é Gilberto Braga. Embora apele mais à inteligência do telespectador para que este perceba a homossexualidade de seus personagens (um flerte não com os estereótipos, mas com a invisibilidade, também com o propósito de rasurá-la), Braga escreveu, com Ricardo Linhares, a novela Insensato coração, em que não só os personagens homossexuais eram facilmente identificados como tais mesmo sem qualquer vestígio de estereótipos, mas a própria homofobia era um dos temas principais da trama. Braga e Linhares representaram diferentes formas de ser homossexual e os conflitos no interior da própria comunidade LGBT por conta das diferentes identificações (de classe social; étnicas; culturais e religiosas) que interpelam gays e lésbicas. No que diz respeito à representação de homossexuais mais próxima da realidade dos fatos e a serviços prestados à cidadania LGBT, Insensato coração é a melhor novela já exibida pela Globo. Foi ela que sustentou, na esfera pública, a denúncia dos crimes de ódio contra homossexuais enquanto a presidente Dilma enterrava o projeto Escola sem Homofobia por pressão da bancada evangélica no Congresso Nacional e sob o silêncio constrangedor de lideranças dos movimentos LGBTs cooptadas pelo governo do PT.

Hegemonia heteronormativa

Contudo, apesar dessa abertura das telenovelas a novas e produtivas representações da homossexualidade, a regra são tramas e conteúdos que recorrem aos estereótipos de homossexuais como forma de reafirmar e reproduzir as normas que sustentam a superioridade dos heterossexuais, bem como seus privilégios – o que faz delas motores importantes da heteronormatividadeno Brasil. Esta aponta/constrói, como “natural”, a sexualidade para fins procriativos e faz uma correspondência entre sexo biológico e papel de gênero. Qualquer menino que escape, ainda que cedo, do papel de gênero que, segundo a perspectiva heteronormativa, corresponde ao sexo que a natureza lhe deu é imediatamente alvo de insulto. Este se apresenta antes e primeiramente como performance linguística (a língua é performativa: produz sentimentos e ações, afeta os corpos e as relações). Lacan diz que o inconsciente é produto das inscrições profundas da língua em nós, ou seja, as sensações de prazer e desprazer produzidas pela língua desde a mais tenra infância estruturam nosso inconsciente, logo, nossa relação mais íntima conosco além de nossa relação com o mundo. É a língua o primeiro veículo de reprodução e transmissão do preconceito social anti-homossexual por meio do insulto. Mas o insulto se apresenta também na forma da caricatura e dos estereótipos reproduzidos na telenovela, ou seja, ele se desdobra em outros sistemas de representações, como o audiovisual, que inclui o cinema, a televisão e a internet.

Os efeitos da heteronormatividade e do insulto anti-homossexual em LGBTs são a homofobia internalizada e uma inveja estrutural do lugar privilegiado e “superior” que o heterossexual (e em especial o homem heterossexual) ocupa na sociedade. Daí a vergonha de si, a necessidade de camuflar trejeitos, de se passar por hétero, viril, a excessiva polarização ativo × passivo; a aversão e o ódio aos afeminados, travestis e transexuais e a excessiva valorização dos que “são mas não parecem”; a prática clandestina e culpada da homossexualidade, disfarçada na ofensa e perseguição aos assumidos; e a inveja daqueles membros da comunidade difamada que conseguem vencer o estigma e chegar ao lugar privilegiado dos heterossexuais, ao lugar da estima. A homofobia não nos vitima, portanto, apenas exteriormente, mas antes interiormente. As consequências políticas disso são enormes: LGBTs não se identificam ao ponto de se converterem num grupo com objetivos comuns e força eleitoral; não conquistam espaço nas casas legislativas nem no Poder Executivo e, por isso, não conquistam os direitos que lhes são negados; o movimento não cresce e tende a ficar nas mãos de quem não representa a diversidade da comunidade LGBT.

Por isso, a telenovela não pode ser ignorada por intelectuais, por políticos nem por movimentos sociais que estejam seriamente comprometidos com a disputa dos corações e da mente dos brasileiros no sentido de (re)construir uma mentalidade caracterizada pelo respeito à dignidade humana de todos e todas, a despeito de suas diferenças e identificações. Alguns podem considerar as representações dos homossexuais em telenovelas meras “abstrações”. Porém, como bem lembrou Albert Camus em A peste, quando as abstrações se põem a fazer sofrer, humilhar e, por fim, matar, o melhor que fazemos é nos ocupar delas.

Jean Wyllys - Jornalista, escritor, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, professor de Teoria da Comunicação da Universidade Veiga da Almeida e deputado federal pelo Psol- RJ. 


Visto no: Diplomatique

Nenhum comentário:

Postar um comentário