02 novembro 2012

A encapsularização de uma cidade doente


Desde ontem o assunto das redes sociais vem sendo a inauguração do Shopping Riomar. Fotos no Instagram, imagens no Facebook e muitas mensagens no Twitter.
Ontem foi a cerimônia de inauguração do centro de compras, que contou até com a presença do Governador, prefeito, ministro, senadores, deputados e o establishment em geral. O negócio chega a ser tão sério que até o Arcebispo apareceu para abençoar o Shopping.
Foi uma espécie de celebração coletiva de um empreendimento arrojado, mas que só demonstra que algo está errado.
Quando se comemora a abertura de um shopping como se fosse um parque público, é sinal de que a cidade está doente.
Vamos combinar uma coisa: shopping center é coisa de lugar subdesenvolvido. (Americano é subdesenvolvido com dinheiro)
E isso nada tem a ver com questão ideológica ou coisa do tipo. Apenas falo isso porque para um centro de compras neste formato dar certo, é preciso que a cidade esteja uma porcaria, que é exatamente o caso de Recife.
O sucesso de um shopping está diretamente relacionado a uma falha de mercado. Ele cobre todos os aspectos que o Poder Público não consegue atender, que é a qualidade dos espaços públicos na cidade.
 
Me dei conta disso na primeira vez que estive no exterior. Estava em Bruxelas, olhando para os lados e percebi os motivos de ali não ter um shopping: as ruas eram bonitas, seguras, com calçadas largas e bem cuidadas, sem comércio ilegal e ainda fazia um friozinho. (foto acima)
Para que shopping center?
Por aqui é exatamente o contrário. As ruas são fétidas, inseguras e com as calçadas esculhambadas. Para piorar, como o deslocamento da classe média é todo feito de carro, ainda falta estacionamento privado perto dos locais de compra. Na verdade o espaço público está totalmente privatizado, seja por camelôs, construtores que espalham metralha nas calçadas, ou ainda pelos famigerados donos das ruas, chamados aqui de flanelinhas, que hoje são os verdadeiros representantes da esculhambação que se tornou o Recife.
Por tudo isso o shopping center vira um excepcional empreendimento. É mais seguro, não se cai em um buraco, estaciona-se com facilidade e ainda tem o ambiente geladinho.
Engana-se quem acredita que isso é uma luta do bem contra o mal, ou ainda que isso se deve a um empreendedor privado, que no caso é João Carlos Paes Mendonça.
Vamos combinar outra coisa: JCPM é empresário e faz o que bem entender com seus investimentos, e a abertura de um shopping é apenas a percepção perspicaz de uma falha de mercado que pode se tornar uma grande oportunidade de negócio.
Na outra ponta, costuma-se dizer: “Ah…mas aqui em Recife quem manda é o seu grupo e meia dúzia de construtoras.”
Isso não é verdade, quem manda na cidade é qualquer um que queira. Seja ele um construtor, um camelô, um empresário, ou mesmo um flanelinha.
Essa cidade vive um clima de anarquia completa, patrocinada por um Poder Público inerte, tendo à frente um prefeito sem moral, que está à frente de uma cidade sem planejamento algum. Um Prefeito que chega ao cúmulo de fazer uma via pública de acesso ao centro de compras sem calçada, como se ninguém pudesse ir a pé. De bicicleta saindo do centro da cidade então, nem pensar.
A única questão é que este grupo de empresários com visão mais imediatista aposta no estilo de cidade morta a qualquer custo, pois bastaria uma boa reforma urbana em alguns bairros que o cenário mudaria por completo. O único risco está aí.
Por outro lado, temos uma população cujo sonho de consumo é refrescar os fundilhos em um ar-condicionado a qualquer custo.
O nosso padrão de sucesso hoje é morar em um prédio com um muro de 7 metros, descer por um elevador geladinho, entrar no carro e ir passear no shopping center.
É a completa encapsularização do cidadão.
O indivíduo bem sucedido por aqui é aquele que compra um apartamento na praia e vislumbra o mar de um esteira ergométrica de 15 mil reais, pois não se dá nem ao trabalho de ir passear no calçadão da avenida Boa Viagem. Na casa deste cidadão toma-se banho quente com o ar-condicionado do banheiro ligado. Ar puro só é respirado em alguns poucos momentos.
E as argumentações a favor da encapsularização são as mais pobres possíveis, como por exemplo a beleza dos centros de compras. Já outros preferem ser mais agressivos, dizendo que quem é contra está contra a geração de empregos.
Mas o melhor mesmo são aqueles que vêm com a frase mágica matadora: “aposto que você vai frequentar o shoppping”.
Ora, os empregos seriam gerados da mesma forma se as lojas fossem nas ruas. E não nego que, apesar de não gostar, vou frequentar o Shopping porque ali estão os cinemas, restaurantes, etc. É como tentar proibir de frequentar o estádio de futebol adversário.
E esse fenômeno da encapsularização vem acontecendo em quase todas as metrópoles do Brasil. Não acontece na Europa ou em qualquer outro lugar desenvolvido justamente pelo que coloquei acima.
E os argumentos ainda podem piorar, indo até a politização do tema, como se isso fosse uma briga entre esquerda ou direta, ou entre ricos e pobres. Como se a urbanização da cidade devesse ser ideologizada.
Esquecem que o lugar mais valorizado do Brasil, a Zona Sul carioca, se orgulha de ter suas principais lojas nas ruas. Em Ipanema as principais lojas estão todas pelas ruas, como H Stern, Puma, Richards, etc. Estão todas em calçadas bem cuidadas, apinhadas de gente, dando vida ao lugar. Até os cinemas são na ruas, assim como bons restaurantes.
E quando instalaram um centro de compras semelhante a um Shopping no Leblon, a população reclamou porque estava preocupada com a vida do bairro. O resultado hoje é que as lojas deste centro de compras são muito mais baratas do que as instaladas nas ruas, porque é lá que está a vida de uma cidade. E os empregos são gerados da mesma forma, seja em lojas de ruas ou em centro de compras.
E para quem pensa que aqui não é Ipanema, basta relembrar que as ruas eram uma bagunça, até que o então prefeito Cesar Maia resolveu fazer uma reforma na cidade, aumentando as calçadas. A revolta naquele momento foi grande, já que ele pensou no absurdo de tirar uma faixa de carro para dar ao pedestre.
Mas no Rio de Janeiro todos acabaram percebendo que isso foi melhor para a cidade.
Mas por aqui comemora-se com toda pompa a catarse subdesenvolvimentista como progresso.
O pior é que, de um lado temos a galera encapsularizada celebrando o “progresso” modernoso ao gosto do empresariado selvagem. De outro os defensores dos “fracos e oprimidos” camelôs e flanelinhas, que ajudaram na privatização da cidade. E no meio, espremidos como recheio de sanduíche, aqueles que ainda imploram por uma cidade melhor, e mais humana, com melhor transporte coletivo, com mais bicicletas andando em segurança, com as ruas cheios de pedestres em calçadas amplas e bem cuidadas.
Mas está difícil.
Como diz Renato Russo:
Vamos celebrar nossa tristeza,
Vamos celebrar nossa vaidade
Vamos comemorar como idiotas

Visto no: Acerto de Contas

Um comentário:

  1. A minha traumatizante experiência com a abertura ao público dessa catedral do consumo, foi o ter ficado fechado 2h (das 19h às 21h) num ónibus, sobre um viaduto, ao regressar da minha terapia. Isso porque todas as carreiras que se dirigiam para a zona sul foram desviadas para passarem pelo shopping. O engarrafamento era monumental e a fila dos ónibus imensa. Todos praticamente vazios, pois os utentes optavam por descer, se arriscando a caminhar no viaduto rodoviário sem sistema de protecção para pedestres, prosseguindo o seu caminho de regresso a casa no final dum cansativo dia de trabalho, arriscando as suas vidas entre o trânsito.
    Um desrespeito pelos passageiros, pelo qual as empresas de transporte urbano deveriam ser multadas.

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